Velhas direitas e novas direitas: a atualidade de uma polêmica / Boletim do Tempo Presente / 2013

Apresentação

Em 2001 a equipe de pesquisa do Laboratório de estudos do Tempo Presente, da UFRJ, organizou e publicou a obra coletiva “Dicionário Crítico do Pensamento de Direita” (Rio de Janeiro, Editora Mauad, 2001). A edição deste vasto volume gerou, na ocasião, um amplo debate sobre a “atualidade”, menos de dez depois do colapso da União Soviética, da díade “Direita-Esquerda” para a compreensão do cenário político mundial e brasileiro. Depois da “Queda” do Muro de Berlin, em 1989, e subsequente colapso soviético com o fim da Guerra fria, não existiria mais nenhum sentido, ou utilidade teórica, na imagem “geográfica” surgida no interior da Assembleia Nacional durante a Revolução Francesa de 1789.

Contudo, tanto na época, quanto hoje, uma série de fenômenos históricos – desde a emergência do grupo dos chamados “neoconservadores” na esteira da vitória de George W. Bush, em 2001, o papel relevante do chamado “Tea Party”, até a constante reinvenção, ou ressurgimento, dos fascismos (incluindo aí o nazismo) em vários países da Europa (Alemanha, França, Itália, Noruega, Grécia, etc…) e, mesmo em países fora da Europa (como na Turquia, Argentina, Japão, etc…) demonstrariam a constante presença, no espectro político, da definição de um campo “da direita”. Duas advertências, no entanto, devem ser destacadas e analisadas com todo cuidado, evitando análises estereotipas e simples. De um lado, o chamado “campo da direita” é composto por uma gama extremamente variada, ampla, de formas e tendências. Neste sentido, devemos destacar que vários segmentos (auto)assumidos como “de direita”, como o “thatcherismo”, dentro e fora da Inglaterra, caracteriza-se, de forma muito clara, por uma completa adesão ao sistema de valores e às instituições representativas das democracias liberais. Mesmo com forte conteúdo antissocial e regressivo – como o corte de direitos sociais e de conquistas políticas – tais tendências políticas não propuseram a supressão da ordem representativa e, ou mesmo, abandonram o conceito de “liberdade” enquanto um símbolo de sua ação e propaganda política. Mesmo que tal “liberdade” fosse, invariavelmente, voltada para a supressão de direitos e para a melhoria da barganha política e econômica dos grupos dirigentes em fase do conjunto organizado e popular da sociedade (como no caso da tentativa de Margareth Thatcher “desmontar” o sindicalismo britânico e, simultaneamente, impor um sistema de impostas altamente regressivo, como o “poll tax”, nos anos de 1979-1990) ou, hoje, na União Europeia a ação regressiva da chamada “Troika”.

Contudo, reafirmamos, esta direita é parte fundante do espectro político do Estado liberal-representativo e não deve ser confundido e mesclado como formas autoritárias e liberticidas que também compõe o campo da direita, como em vários exemplos apresentados nos artigos que compõe este número da Revista do Tempo Presente. Assim, podemos destacar uma direita “tradicional” – os “Conservadores” britânicos, os Republicanos americanos ou o DEM no Brasil, com grupos – tais como o “Tea Party”, os “Die Republikaner”, na Alemanha, “Os Lobos Cinzentos”, na Turquia ou “A Aurora Dourada”, na Grécia, ou grupos religiosos no Brasil ou EUA, entre outros – que são, resolutamente, anti-institucionais, pretendem um Estado autoritário e liberticida. Estes, para além da “direita tradicional” operam na derivação fascista.

Outro ponto, que devemos destacar, é a inexistência, ao longo da história, de uma essência única no “campo da direita”. Embora alguns temas sejam repetitivos – como a supressão de direitos sociais, a liberdade do uso de armas e a diminuição dos direitos políticos – não podemos criar uma definição única “da direita” atual. Um exemplo clássico é aquele atribuído ao papel do Estado. Em alguns segmentos da direita tradicional ou da direita fundamentalista, como para os Conservadores britânicos ou o “Tea Party” norte-americano, o Estado será sempre um ente “totalitário” e incompetente, perdulário, na gestão da coisa pública – o exato contrário da noção que denominam de “liberdade”. Mas, em outros setores da direita, como nos grupos fascistas e da direita radical, e mesmo algumas ditaduras militares clássicas, o Estado é instrumento fundamental para a prosperidade e a realização dos objetivos “nacionais”, incluindo-se aí o dirigismo econômico. Outros temas, desde a gestão da economia até o grau de intervenção do Estado nos assuntos da vida cotidiana – educação, saúde, uso de armas etc… – há claras divergências. No entanto, temos temáticas que “fecham” uma ampla concordância no campo da direita. Trata-se, neste caso, de uma guinada comportamentalista que viria substituir uma análise essencialista do espectro político.

Assim, o direito das mulheres ao livre dispor do seu corpo e da gestação, a união civil de gays, a educação sexual nas escolas públicas, o sistema de cotas raciais e sociais merecem um ampla, e quase universal, condenação no campo da direita (embora, mesmo aqui, haja divergências, como no caso a união civil de gays que provoca um “racha” nos Conservadores britânicos). Na maioria dos casos, como no Brasil, Estados Unidos e França, a direita assume claramente a luta contra a ampliação dos direitos “sociais” dos novos grupos emergentes na sociedade.

Assim, hoje, a díade “Direita-Esquerda”, envolve um largo espectro de temas que abarcam desde o papel do Estado até temas que se voltam diretamente para o comportamento individual dos cidadãos. Temos aqui, ainda, uma importante novidade política e social: a emergência, como núcleo “duro”, das novas direitas, de grupos e instituições religiosas, que assumem um forte papel na organização de grupos de pressão, partidos ou frações de partidos contrários a ampliação dos direitos políticos, sociais e civis. Assim, na França ou na Espanha, católicos integristas, assumiram posições fortemente conservadores frente a questões como a união civil de pessoas do mesmo sexo e, em grande parte apoiados e estimulados pelo então papa Joseph Ratzinger, uniram-se a grupos igualmente fundamentalistas de adeptos das “novas igrejas televisivas” e, mesmo, de muçulmanos frundamentalistas. Nos Estados Unidos e no Brasil grupos religiosos ( por exemplo, a chamada “bancada dos evangélicos” ) são a ponta mais agressiva da nova direita, como no caso da atual crise da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, da recusa de qualquer forma de controle da venda de armas pelo “Tea Party” e sua ala “radicalizada” do Partido Republicano

No campo da direita, contudo, convive – e muitas vezes “empurram” as organizações e partidos da direita tradicional para posições radicalizadas e intolerantes – uma larga gama de chamados “neo” fascistas, com uma brutal ressurgência do ideário de extrema-direita. Segundo o escritor alemão Richard Herzinger o potencial de violência racista, contido no pensamento e ação da extrema direita, se funda precisamente onde faltam as estruturas da sociedade civil ou onde estas se encontram em ruínas. [3] Herzinger continua argumentando que tanto maior é o pânico, causado por estes grupos, quando o potencial latente de violência perpetrado por eles sai da superfície: um suicídio em massas aqui, um atentado com gás em um metro lotado, um ataque anônimo com bomba de fabricação caseira ali. A grande questão é que esses seguem sendo interpretados, em larga maioria, como casos isolados que não chegaria a representar um cenário mais contundente de ameaça. A ultradireita ressurgente do Nazismo é uma forma de expressão das mais radicais de um submundo que afirma e legitima sua presença na sociedade com o que podemos chamar de ‘ato violento’, seja ele físico ou verbal. Neste sentido, a expressão ressurgente ultrapassa os limites da ideologia e se transforma num comportamento político. O fenômeno da ressurgência dos fascismos está ligado, no tempo presente, a um agir político fascista, voltado para uma questão central que ainda identificamos como sendo a alteridade. Portanto, não é só a violência física que mostra a força destes movimentos, mas também seu poder discursivo de transformação do ethos político negando a possibilidade da diferença e da pluralidade na sociedade. Para nós, este debate caminha para uma reflexão bastante contundente de um paradoxo existente na nossa sociedade: como nos declararmos radicalmente contra os grupos extremistas sem trair o próprio modelo pregado no presente; a ideia de que não há nenhuma diferença na sociedade que não possa ser integrada? Não podemos negar que durante a década de ’90 e na primeira década do século XXI houve uma crescente expansão, sobretudo entre os jovens, do culto a violência, desapego aos valores do Estado de Direito e da democracia e o ódio xenófobo, sempre agravado em períodos de fortes crises econômicas. Há, de fato um fator preponderante no fomento a essas práticas de xenofobia e violência da ressurgência dos fascismos: a falta de reação social e institucional perante os crimes cometidos por tais grupos. Essa percepção de ‘impunidade’ é, deverás inaceitável dentro de sociedades democráticas.

No dia 13 de junho de 2012, o jornalista Maximilian Pop publica no influente jornal alemão Der Spiegel uma matéria intitulada Os Nazistas prosperam livremente em partes da Alemanha Oriental, onde retratava a ação de grupos de ressurgentes atuando em nome da antiga proposta Nacional Socialista. Maio de 2012, Saxônia, cidade de Bautzen. Dois homens agrediram um estudante colombiano com chutes e xingamentos. Em Hoyersweda [4], outro grupo de extrema-direita cercou o escritório de um dos membros do Parlamento alemão, Bundestag, quebrando as janelas e atacando fisicamente um dos funcionários. Em Limbach-Oberfrohna, outro grupo ressurgente atacou um centro de educação alternativa. Em Geithain, um exposivo foi acionado em frente à Pizzaria Bollywood, restaurante que tinha como proprietário um paquistanês.

Uma das entrevistadas pela matéria é Kerstin Krumbholz, de cinquenta anos, que resume os acontecidos em sua cidade com a seguinte expressão: o inferno é assim. Ela conta que tinha escolhido se mudar para a cidade de Geithain, aproximadamente a quarenta quilômetros de Leipzig, há dezenove anos, pois queria que seus filhos crescesse num ambiente mais seguro, longe da criminalidade e dos entorpecentes presentes com mais frequência nas grandes cidades. De qualquer maneira, para a família Krumbholz as ações ressurgentes não passavam de algo que se via e ouvia através dos noticiários, coisas do tipo incêndio nos asilos ou mesmo a entrada do Partido Nacional Democrático (NPD) em alguma câmara legislativa estadual. Essa realidade foi completamente alterada quando seu filho Florian, de quinze anos, foi atacado por um grupo extremista de uma maneira abrupta até entrar em coma e ter que ser submetido a diversos procedimentos cirúrgicos. Florian era membro de uma turma punk e foi atacado pelo grupo ressurgente num posto de gasolina em maio de 2010 e teve seu crânio perfurado por pancadas. Hoje o jovem vive com uma placa de titânio na cabeça e a família Krumbholz não mais reside na cidade de Geithain.

Este é apenas um exemplo dos diversos eventos ocorridos por ações de grupos extremistas no leste da Alemanha no presente. Estes acontecimentos nos questionam quase automaticamente sobre o porquê estudar as ‘direitas’ no século XXI? Qual seu significado? Há uma tipologia dessas direitas? O que a história apresentado como novas e velhas direitas no tempo presente? Um ponto fundamental neste questionamento é entender que não existe nem um só tipo ou um só modelo para categorizar os movimentos de ‘direita’. A ressurgência dos fascismos talvez seja sua expressão mais contundente, mas está longe de ser a única.

Esta edição foi pensada nesta perspectiva: como a história tem lido as novas e as velhas direitas? Porque temas como ódio, negacionismo e integralismo continuam na pauta de discussão sobre esse tema? Este volume esta dividido em quatro partes. A primeira direciona nossa atenção e estudos para a permanência e a reinvenção da direita fascista no tempo presente. O debate realizado pelos textos da professora Clara Góes e, em seguida, do historiador Luis Edmundo Moraes discutem sucessivamente a construção do ódio na história e a negação da política de extermínio nazista. Os pesquisadores Gisele Reiz e Jerônimo Filho se debruçam sobre as propostas e ideários do grupo extremista brasileiro, formado por ex-militares, Guararapes, cujo foco está na crítica a perda da nossa identidade nacional, usando como base o pensamento conservador, nacionalista, autoritário. O professor Jefferson Rodrigues Barbosa da UNESP trouxe a tona uma discussão sobre o que chamou de ‘herdeiros de Plínio Salgado’, uma análise do integralismo no tempo presente. Seu texto reafirma a tese de que o termo ‘neo’ nem sempre é suficientemente elucidativo quando falamos deste grupo extremista. O que teríamos aqui não seria necessariamente um ‘neo’integralismo, mas, uma ressurgência do fenômeno que busca sua base de legitimação no movimento existente nos anos ’30.

Na segunda parte da revista buscamos trazer ao público leitor pesquisas de fôlego sobre as experiências dos fascismos na América do Sul. Primeiro com o texto do professor Pedro Ernesto que se dedicou a uma análise da extrema direita durante a implementação da doutrina se segurança nacional no cone sul. Em seguida o historiador, docente da Universidade Federal do Amapá, Iuri Cavlak retoma a discussão do primeiro governo de Perón relativizando as perspectivas históricas que generalizaram a aproximação de Perón com o Nazismo. Num atual e instigante debate, o historiador sergipano, Dilton Maynard, apresenta um estudo da apropriação do ciberespaço por grupos de extrema direita na argentina no presente, apresentando os mesmos como aglutinadores da extrema direita na América do Sul através do uso das novas tecnologias.

Na terceira parte, as direitas no Brasil, os estudos aqui apresentados estão ligados a uma historicização destas direitas. Filipe Cazetta estuda a Ação Imperial Patrianovista – AIP procurando entender quais características deste grupo foi mantido pela Ação Integralista Brasileira – AIB. Já o historiador Carlos Leonardo Bahiense nos apresenta uma análise do fascismo japonês no Brasil através do caso Shindo Renmei, que o mesmo define como “uma estratégia de resistência face o nacionalismo autoritário estabelecido por Getúlio Vargas a partir da Campanha da Nacionalização.” Natalia dos Reis Cruz retoma a problemática da aproximação entre o governo Vargas e os fascismos. Seu foco está nas políticas de aproximação e de distanciamento em relação aos fascismos utilizando como ponto de referência a questão da identidade nacional. A professora Janaina Cordeiro escreveu sobre a memória militar sobre Emílio Médici e a ideia de que o mesmo era o nome ideal para contornar todos os problemas que o regime vivenciava. O pesquisador Gustavo Alonso se dedicou ao estudo da música popular durante a ditadura militar, em especial a música sertaneja. Seu foco não esta na canção de protesto, mas ao contrário, num tipo de música que em muito serviu ao regime civil-militar brasileiro. O estudo de Alonso está em ampla sintonia com a nova historiografia que estuda o consenso e o consentimento nas ditaduras civis-militares. O historiador Odilon Caldeira apresenta um estudo sobre as apropriações da memória pela direita. O centro de gravidade de seu texto está nas relações conflituosas entre a memória e a história e as diversas estratégias políticas de três tipos específicos de iniciativas de direita: a Ação Integralista Brasileira, a Aliança Renovadora Nacional e o Partido da Reedificação da Ordem Nacional.

Por fim, apresentamos duas resenhas acadêmicas: uma voltada para a análise do filme A Onda, discutindo a adesão aos grupos de extrema direita e a sedução do fascismo e outra, sobre o livro da historiadora Janaina Cordeiro, Direitas em Movimento: a Campanha da Mulher pela Democracia e a ditadura no Brasil, que enfoca a reconstrução da memória social da ditadura civil militar brasileira quebrando o mito de uma sociedade resistente ao regime.

Assim, procuramos nesta edição apresentar aos leitores (as) pesquisas de fôlego, de historiadores especialistas em áreas especificas que se unem num debate sobre as ‘velhas’ e as ‘novas’ direitas no Brasil e no mundo.

Notas
3. HERZINGER, Richard. DIE Zeit. 2000.

4. Todas as cidades citadas neste parágrafo estão localizadas na Saxônia no leste da Alemanha.

Francisco Carlos Teixeira Da Silva – Professor Titular de História Moderna e Contemporânea da UFRJ

Karl Schurster – Professor Adjunto de Teoria e Metodologia da História da Universidade de Pernambuco. Doutor em História Comparada pela UFRJ.

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