Vulnerabilidades: pluralidade e cidadania cultural / Revista Transversos / 2017

A ambição discreta de ser ensaio ou tentativa move esta edição da Transversos. Trata-se aqui de experimentar, no sentido duplo do testar e do sentir. A moderação justifica-se diante da imensidade da questão: as vulnerabilidades. Investigá-las é apurar uma escuta “em abismo”, é tentar conhecer essa frequência incômoda. A tarefa, aqui, é mergulhar no historicamente silenciado em busca de seu som.

Dois termos conduzem as contribuições selecionadas: pluralidade e cidadania cultural. Das frestas de uma sociedade hoje globalizada, através de estreitas passagens que permitem alguma luz e algum ar, materializam-se corpos, rostos e vozes multiplamente apagados na história: vulneraribilis, do latim, “aquele que pode ser ferido”. Sujeitos que, na gramática da vulnerabilidade, são somente pessoas indeterminadas, cujo nome não se enuncia. Submetidos / sujeitados, são o avesso da versão luminosa dos indivíduos modernos – esse espécime em cujo nome se fala de liberdades, direitos e conquistas. No reverso de uma ordem discursiva eufórica, colhidos pela trágica contingência histórica e social, indivíduos e grupos confrontam-se cotidianamente com o risco, a adversidade e a deterioração forçada de seus laços e memórias.

Sem abrir mão da definição econômica de vulnerabilidade, novas reflexões sobre o tema permitem, hoje, ampliar não só o campo de exame do problema – nas ciências humanas e sociais, sobretudo – bem como rejeitar certo determinismo das visões tradicionais. A pobreza, condição decisiva dos grupos vulneráveis não é, assim, tomada como sinônimo de uma passividade incontornável. Nas franjas da lógica do mercado, de uma sociedade sempre disposta a reforçar e reinventar hierarquias, e disposta igualmente a multiplicar os preconceitos correlatos, um repertório de ações às vezes minúsculas, mas constantes, nos dá notícias da existência material e simbólica dessas coletividades e subjetividades caladas à força.

Nesse sentido, a Transversos traz aos leitores e leitoras a possibilidade de pensar a vulnerabilidade como pluralidades e como cidadania cultural, termos que nomeiam uma das Linhas de Pesquisa do Laboratório de Estudos Sobre as Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES / UERJ). Aliás, é preciso que se diga, o próprio espaço institucional em que se situa o Laboratório experimenta, atualmente, as ambiguidades e as contradições do campo que elegeu investigar. Ao mesmo tempo em que é um espaço legítimo de produção de conhecimento científico, vivencia a situação de vulnerabilidade em que se encontra, hoje, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Produzir mais uma edição da revista é, assim, uma ação política de afirmação e de resistência de pesquisadores e pesquisadoras da instituição.

Este número marca também uma inflexão da própria linha de pesquisa, momento no qual se propõe uma ampliação do entendimento de vulnerabilidade. O conceito, que emerge do debate acerca dos Direitos Humanos, foi apropriado pela Saúde Pública com um fim específico, na década de 1980, o de demarcar os setores sociais com mais riscos de contaminação do vírus da Aids, considerando a relação entre a exposição à doença e a condição socioeconômica do vulnerável.[1] Logo as ciências humanas e sociais entraram no debate, refletindo sobre o perfil concreto da população considerada de risco. Esses estudos mergulharam no tema, investigando os contextos de desigualdade material e simbólica em que tais segmentos se encontravam. Para Rubens de Camargo Ferreira Adorno: “a expressão vulnerabilidade social sintetiza a ideia de uma maior exposição e sensibilidade de um indivíduo ou de um grupo aos problemas enfrentados na sociedade”.[2] O especialista em Saúde Pública acrescenta, ainda, que a vulnerabilidade “reflete uma nova maneira de olhar e de entender os comportamentos de pessoas e grupos específicos e sua relação e dificuldades de acesso a serviços sociais como saúde, escola e justiça”. As ponderações do autor fornecem alguns aspectos do caminho escolhido para mergulhar nesse debate.

Paulo Roberto Tonani do Patrocínio, no artigo que abre o Dossiê, oferece importantes chaves para a reflexão aqui desejada. Examinando as tensões entre identidade e diferença cultural, o autor mobiliza operadores conceituais decisivos, como o termo différance, cunhado por Jacques Derrida, para problematizar termos fundadores do pensamento ocidental contemporâneo, como, por exemplo, o fonocentrismo. Da perspectiva sugerida pelos Estudos Culturais e Literários, Tonani do Patrocínio atende ao debate sobre a vulnerabilidade ao dar espessura teórica às questões culturais e identitárias. No percurso proposto, problematiza matrizes discursivas dominantes e ilumina um caso específico, o tratamento discursivo da surdez, retirando-a, como assinala, “de uma leitura baseada na patologia e passando a compreendê-la como elemento formador de uma identidade própria: a identidade surda”.

Em seguida, Lucas Freire examina o modo como a luta pelos direitos das pessoas transexuais passa pelo reconhecimento de suas existências como humanas ou não no contexto das relações heteronormativas em que se amparam as representações jurídicas. Nessa relação entre saber e poder, embasado em sólida pesquisa, o autor mostra como o discurso médico é acionado de modo a dar inteligibilidade às existências e habilitá-las como portadoras de direitos civis.

Entre barracões de escolas de samba e a sala de aula: circulando os saberes da arte do carnaval, artigo de André Porfiro, recupera a singularidade da criação artística do carnaval das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, para, em seguida, experimentar esse conhecimento em sala de aula. A originalidade da abordagem é realçada pelo texto envolvente, através do qual percebemos que a contingência é a matéria-prima da “invenção”. Desta, como sugere o autor, é possível engendrar novas estratégias de ensino e aprendizado das Artes em uma escola pública do Rio de Janeiro.

Se a linguagem significa aquilo que entendemos como realidade, cabe, então, ao historiador desconfiar de categorias pré-estabelecidas. É o que faz Gustavo Sousa, ao problematizar a construção do Oceano Atlântico como espaço disciplinado-disciplinador, como diria Michel Foucault. Na dimensão concreta e simbólica do mar-oceano, os diferentes Estados Nacionais envolvidos no tráfico de escravos vão reivindicar o uso legítimo de suas águas utilizando, para isso, o moderno discurso jurídico do século XIX, conforme aprendemos do cuidadoso artigo.

Em Uma evangelização duvidosa: o caso do Frei Gaspar, Thiago Bastos de Souza propõe, a partir de fonte inédita, que experiências históricas não são nem essencializadas nem dualistas, mas sim marcadas pelas contradições entre os dispositivos que convocam a assumir categorias hierárquicas e a forma como cada indivíduo responde a tal chamamento. É o caso do processo aberto pelas mulheres indígenas do pueblo de Turuana contra o frei franciscano Gaspar. O ensaio minucioso equilibra reflexão teórica e manejo de dados empíricos. Não apenas no pleito das mulheres submetidas ao abuso sexual, bem como na figura de um mediador local, embaralham-se as certezas previamente dadas na historiografia sobre o período. A reflexão faz lembrar a afirmação de Stuart Hall, segundo o qual as identificações são “pontos de apego temporário às posições-de-sujeito que as práticas discursivas constroem para nós”.

Problematizar os papéis supostamente passivos das “excluídas” diante da atuação ativa dos “incluídos” é a proposta de Maria Eugenia Cruset em Imigración y exilio: el papel de las mujeres. Ao investigar a atuação de mulheres bascas na Argentina, a autora recusa-se a afirmá-las como simples vítimas, propondo-se a validar positivamente suas atuações políticas – ainda que se vejam inseridas em posições hierárquicas desiguais. Cruzet nos informa sobre as diferentes atuações e papéis destas mulheres imigrantes, enfatizando aquilo que Michel de Certeau definiria como um jogo de tática e resistência.

Ainda na perspectiva de renovação das pesquisas sobre migrações em seus aspectos transnacionais, El exilio radical y la última dictadura militar en Argentina, de María Soledad Lastra, analisa as tensões e conflitos dos exilados do partido argentino Unión Cívica Radical (1974-1983), grupo duplamente marcado por sua condição externa, no exílio, e sua condição interna, pois a UCR se manteve atuante na Argentina durante o período ditatorial. Para melhor compreender essa vulnerabilidade, Lastra apresenta o caso específico do jornalista argentino Miguel Ángel Piccato em seu exílio no México. Aqui, a suposta identidade oculta dos exilados é questionada para acentuar a naturalização de contradições como efeito dos próprios dispositivos de poder em que são construídas.

História, ficção e cinema: distopias sobre a personagem indígena argentina, de Juliano Gonçalves da Silva e Érica Sarmiento, apresenta uma perspectiva diferenciada acerca de duas produções cinematográficas contemporâneas: os filmes Jauja (2014) e Bolívia (2001), respectivamente do argentino Lisandro Alonso e do uruguaio Israel Adrián Caetano. Num caminho original, os autores examinam as duas obras sob o ponto de vista teórico da ficção, realçando a trágica persistência histórica do extermínio do indígena e seu apagamento discursivo e simbólico.

Desde Descartes, partimos do princípio do cogito para considerar a existência humana. A partir daí, a racionalidade guiaria a compreensão do que chamamos de realidade, presidindo nossa forma de atuação sócio-política, ética e estética. Em Aos simbolistas, as margens: experiências estéticas e subjetividades politicas marginalizadas, Mariana Albuquerque Gomes questiona a primazia da racionalidade como sistematizadora das ações políticas. Por meio de um sensível partilhado, conforme apresenta Jacques Rancière, a autora afirma a criação estética dos simbolistas brasileiros do final do século XIX como ato político. Tal produção resulta do desencanto desse grupo com a funcionalidade lógica da vida moderna e da percepção de que suas subjetividades políticas e estéticas não são aceitas como legítimas. O texto pensa a vulnerabilidade a partir de um exercício densamente teórico em torno da marginalidade, articulando referenciais historiográficos, filosóficos e sociológicos.

Reforçando a articulação entre vulnerabilidade e cidadania cultural proposta neste Dossiê, Flávia Almeida nos informa das relações socioeconômicas que as atrizes das companhias de teatro portuguesas vivenciavam no final do século XIX e início do século XX no Rio de Janeiro. Almeida destaca a precariedade das condições de trabalho dessas atrizes, inseridas num ordenamento social que as categorizava em identidades profissionais e de gênero hierarquicamente inferiores. No entanto, em meio às contradições do mercado teatral carioca, essas atrizes, como nos casos examinados, se apropriavam desses conflitos com vistas a defender interesses próprios, explorando afirmativamente as rivalidades instigadas pelos fãs e repercutidas pela imprensa, numa estratégia que ampliava a legitimidade de seu trabalho e o poder de suas vozes.

Na sessão Notas De Pesquisa, José Roberto Saiol e Lorelai Kury discutem o tema da modernização técnica e científica a partir do trabalho do ilustrador francês J. J. Grandville (1803-1847). Examinando a interação dos aspectos descritivos à natureza imaginada e propriamente artística das imagens, os autores mostram como a modernização penetra o cotidiano e é percebida na obra de Grandville. Na investigação dessa tópica visual específica, revelam-se importantes referências ao campo das artes, especialmente à música, à escultura e à literatura.

Em Do quimono à casaca: transformações e marcas identitárias no indumentário japonês, Jaqueline de Sá Ribeiro e Fabiano Vilaça apresentam um objeto de estudo pouco prestigiado pela historiografia brasileira: o “distante” oriente japonês e a moda, aqui tratada como fonte legítima de trabalho para o historiador. As relações de poder – tanto material quando simbólico – são problematizados por meio da indumentária. O resultado é uma análise sensível e inovadora do Japão em seu momento de transformação social em direção a uma sociedade moderna e ocidentalizada.

A sessão Artigos Livres se abre com a colaboração de Tatyana Maia, As comemorações cívicas do 1º de Maio nos cinejornais da Agência Nacional da Ditadura Militar (1964-1979). Em artigo marcado pela precisão e sensibilidade, a autora examina três diferentes momentos, refletindo sobre a evolução das representações visuais do trabalhador no período da ditadura civil-militar brasileira. Remontando ao Governo Vargas, estabelece e analisa as ressignificações políticas das relações entre trabalhador, patronato e Estado durante a ditadura. Das imagens fílmicas examinadas no artigo depreendem-se as linhas mestras da cultura visual oficialmente orientada: a figura do trabalhador simultaneamente partícipe e beneficiário da modernização-conservadora. Na contrapartida, como o texto demonstra, evidencia-se o silenciamento das vozes da oposição e dos movimentos sociais.

Aceleração do tempo e processo histórico em Reinhart Koselleck e Timothy Brook, de Luís Claudio Palermo, propõe um exercício de aproximação entre duas reflexões historiográficas distintas no intuito de aprofundar noções de tempo histórico. Em seguida, Luciana Christina Cruz e Souza, em Patrimônios possíveis: modernidade e colonialidade no campo do patrimônio, instiga à discussão sobre as categorias de episteme que definem o que é aceito como conhecimento inteligível e, por isso, verdadeiro. A partir da noção de colonialidade, a autora analisa os critérios de seleção do que é ou não um patrimônio cultural. O artigo questiona a especialização do saber embasada unicamente em referenciais teóricos globais do eixo norte, como forma universal de legitimação sobre o conhecimento das humanidades. Afirma, assim, a importância de criarmos categorias de pensamento próprias às experiências de colonialidade e de analisarmos o campo do patrimônio e as possibilidades de constituição de novos saberes para as políticas de preservação.

Em Favela, mídia e remoções: discurso jornalístico, imagens sociais e políticas públicas de habitação em favelas cariocas, Pablo Nunes problematiza o papel da imprensa na construção e sedimentação de imagens-estereótipos dos habitantes das favelas cariocas. O autor seleciona três momentos da história dessas comunidades na cidade do Rio de Janeiro para analisar a relação entre Estado, imprensa e sociedade na condução de políticas públicas direcionadas aos moradores de tais comunidades. Nunes destaca os jornais como demarcadores privilegiados da opinião pública, a qual legitima, por sua vez, as políticas violentas e segregadoras do espaço público, bem como naturaliza os tradicionais estereótipos dos chamados favelados.

Um aspecto pouco conhecido do cristianismo é apresentado em Ritos de humilhação: al-qasim ibn ubaydallâh e os cristãos coptas (734-741), de Alfredo Bronzato da Costa Cruz. A vivência dos cristãos coptas, dentro da experiência histórica de um Egito controlado politicamente pelo califado omíada é marcada por repressões, explorações e humilhações públicas destes cristãos por não partilharem da fé islâmica. Por meio da História do Patriarcado Copta de Alexandria, o historiador analisa as táticas de resistência dessa comunidade ao criar uma realidade na qual os eventos ocorridos adquiriram significados religiosos que possibilitaram a união e preservação do grupo. Aqui, mais uma vez, a importância do cultural se faz presente nas estratégias de construção de si e do outro por meio de significações partilhadas socialmente.

Finalizando essa edição, Horacio Miguel Hernán Zapata apresenta a resenha do livro Una “guerra que se continúa por otros medios”. Acerca de los Tratados de Paz entre el estado argentino y las sociedades indígenas de la Frontera Sur (1850- 1880), de Graciana Pérez Zavala. A obra aborda os conflitos e negociações entre o Estado Nacional Argentino e as chamadas fronteras interiores (Chaco, Pampa y Patagonia), região em que o governo argentino não conseguiu estabelecer seu controle durante o século XIX. O autor destaca a renovação interpretativa empreendida por Pérez Zavala, autora que destaca, ao lado das ações violentas, o modo como o governo central teve que desenvolver outras formas de atuação – diplomáticas – com as comunidades indígenas para, assim, negociar o estabelecimento de suas fronteiras. Aqui, novamente, as relações históricas não são polarizadas entre vítimas e opressores; destacam-se, outrossim, suas características híbridas, os confrontos e negociações entre os grupos analisados. O que contribui para o atual debate sobre as demarcações de terras indígenas e os direitos das populações originárias da América dentro dos Estados nacionais modernos.

As múltiplas respostas à chamada desta Transversos confirmam o quanto pulsam, inquietos, o pensamento e a curiosidade. Os vulneráveis são aqui os que resistem; são os que delatam a falha do discurso. Aqueles que, na sua forçada inexistência e mudez, insistem em apontar as fraturas do mundo e em desenhar seus nomes com letras, às vezes mínimas, no livro cotidiano.

Esta edição não seria possível sem a colaboração de José Roberto Saiol, Juliana Martins, Priscila Araújo e Paulo Henrique Pacheco. Juntos, inauguramos a nova fase da Transversos, que passa agora a sair trimestralmente. Visibilidade e vida longa.

Notas

  1. A esse respeito, consulte-se Carolina Salomão Corrêa. Violência urbana e vulnerabilidades: O discurso dos jovens e as notícias de jornais. Rio de. Janeiro, PUC-RJ, 2010, Tese de Doutorado.
  2. Rubens de Camargo Ferreira Adorno. Um olhar sobre os jovens e sua vulnerabilidade social. São Paulo: AAPCS -Associação de Apoio ao Programa Capacitação Solidária, 2001

Laura Nery

Marina Carvalho

Rio de Janeiro, 17 de abril de 2017.


CARVALHO, Marina; NERY, Laura. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, n. 9, jan. / abr., 2017. Acessar publicação original [DR]

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