Idéias de Europa: que fronteiras? | Maria Manuela Tavares Ribeiro

O processo de construção da União Européia vem sendo animado por forças endógenas, que partem dos Estados nacionais e das instituições supranacionais, e por forças exógenas, ligadas às modificações do cenário internacional pós-colapso da União Soviética. Neste caso, vislumbra-se uma maior participação do espaço europeu numa ordem internacional multipolar em contraposição às tendências unipolaristas norte-americanas da “utopia dos espaços abertos”, que concebe operações (econômicas, militares, ideológicas) em terrenos ilimitados. Como reflexo da importância diferenciada que vem adquirindo a União Européia na atual política de poder, percebe-se uma ampliação das preocupações dos estudiosos em compreender os mecanismos sociais, políticos, econômicos, ideológicos, geográficos, entre outros que, agrupados, movimentam a Europa unificada e ampliada neste início de novo milênio.

Portanto, o livro coordenado por Maria Manuela Tavares Ribeiro, fruto de um curso pluridisciplinar que teve lugar na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra entre 12 e 21 de fevereiro de 2004, é resultado de um esforço analítico variável sobre as oportunidades e desafios que se colocam aos países europeus em sua trajetória de união no desenrolar do século 21. Neste sentido, pode-se dividir a obra em quatro vertentes principais que direcionam os estudos empreendidos e apresentados na forma de 23 textos.

Primeiro, um conjunto de trabalhos que lidam com as correntes de integração (federalismo, subfederalismo, supranacionalidade e intergovernamentalidade). Segundo, aqueles que apresentam a contraposição existente entre os projetos nacionais e o quadro de referência da União Européia, sobretudo daqueles países recém integrados e os que provavelmente serão incorporados. Terceiro, os que enfocam as “forças profundas” e os “vínculos espirituais” entre os países europeus: fala-se da ideologia, da educação, da cidadania, das questões sócio-culturais que corroboram para a constituição de uma comunidade de destinos. Quarto, a vertente de estudos sobre identidade e fronteiras, uma preocupação constante para a afirmação da própria União Européia como bloco unificado e coeso.

Na primeira vertente, destacam-se os textos de José Reis e de Paul Alliès, que tratam das distâncias (físicas e imateriais) que dificultam o processo de integração bem como das proximidades (geográficas, econômicas, etc) que vêm dando consistência ao projeto europeu. Assim, geografia e institucionalidade se juntam para consolidar o processo de unificação da Europa.

Na segunda, contrapõem-se alguns projetos e visões nacionais ao projeto de integração europeu. Ioan Orga apresenta a perspectiva romena que, diante das possibilidades de relativização e redefinição das fronteiras nacionais, avalia o papel do país como fronteira leste da UE, em contato direto com a Moldavia. Da mesma forma, Stefan Bielanski , discute o conceito de fronteira oriental da Europa, segundo a historiografia polaca, apontando as tendências históricas de se depreciar as regiões fronteiriças localizadas longe do centro europeu. Em complementação, Nicole Petri ressalta a importância da Polônia, não mais como um Estado tampão entre dois mundos (europeu e não europeu), mas como uma ponte entre a UE e países estrategicamente importantes como Ucrânia, Rússia e Bielorussia. Além disso, são apresentadas outras visões como a alemã, com ênfase na reunificação, desde a distensão da chamada “ostpolitik” até os desafios enfrentados nos anos 1990; a perspectiva da Rússia pós-soviética, sobretudo o receio de que sua entrada na UE possa afetar o equilíbrio interno do bloco; o futuro de Portugal como potência periférica da Europa e o lugar da ilha de Açores nas relações transatlânticas e com a Europa.

A terceira vertente de estudos destaca aspectos que tendem a interferir nos cálculos estratégicos dos arquitetos do projeto europeu de integração. São forças profundas, como a imigração, a religião, a idéia renovada de cidadania européia e a transformação da educação no bloco como um meio de construir uma verdadeira cultura européia. Moura Ramos apresenta o quadro jurídico-político em que a noção de cidadania se insere, enquanto Procopis Papastratis faz uma discussão esmiuçada sobre as transformações engendradas pelos países europeus, mediante os acordos de Bolonha e Nice, no que toca à questão educacional.

A última vertente se preocupa em identificar como as forças que subsistem na epiderme das relações intra-européias começam a irromper por meio de questões sócio-culturais, que têm impacto direto não apenas sobre a estrutura intra-européia, mas também sobre a circunstância geográfica do Bloco. Passa-se em revista a relação entre espaço, identidades e fronteiras, prevendo-se uma alteração na relação entre estes elementos e sua capacidade de moldar o bloco europeu.

Para Marcedes Samaniego Borneu, a visão sobre o fim das fronteiras se ajusta à vocação pós-nacional dos Estados que, no caso europeu, desafiam fronteiras históricas, políticas, culturais e não admitem aquelas que segregam minorias ou representam a indiferença entre o Norte e o Sul. Já Renaud de la Brosse discute a complementaridade ou oposição entre as escalas continental, nacional, regional e local em que se concebe a integração, enquanto Georges Contogeorgis apresenta a mescla que se forma do encontro entre os fatores cultural e político que, alimentados por um novo patriotismo, buscam consolidar a Europa como opção ao fim do bipolarismo, ao enfraquecimento da Rússia e ao antagonismo com os EUA na arena internacional do século 21.

Por fim, cabe destacar a contribuição de Estevão Rezende Martins que complementa as visões internas com um olhar latino-americano (e brasileiro) sobre o processo de conformação da União Européia. Para Martins, o romantismo dos processos de integração regional, que se transformaram em topos incontornável dos discursos políticos, adquiriu um realismo pragmático no caso europeu, a partir da coesão econômica, política e diplomática, seguida da institucionalização e da consolidação de um ethos capaz de aglutinar os países membros conforme um projeto comum. Ele lembra que esse foi um processo árduo em que o ritmo dos países foi dessemelhante e divergente. Não obstante, parece ainda ser a União Européia o modelo de integração a ser seguido por outras regiões, dentre elas a América Latina.

Assim, esta obra cumpre um papel fundamental ao atualizar as discussões acerca da realidade européia que hoje está envolta em questões delicadas como as rejeições francesa e holandesa da Constituição Européia, o posicionamento britânico em relação ao projeto de integração e os impactos da ampliação do bloco para o Leste. Percebe-se que o modelo estatocêntrico originário, concebido no quadro de fronteiras rígidas, vem cedendo lugar à “idéia de Europa”, muito mais ampla em seus objetivos, complexa em seu conteúdo e fluida em seu formato.


Resenhista

Thiago Gehre Galvão – Mestre em História das Relações Internacionais e Coordenador do Curso de Graduação em Relações Internacionais da Faculdade Michelangelo (DF).


Referências desta Resenha

RIBEIRO, Maria Manuela Tavares (Coord). Idéias de Europa: que fronteiras? Coimbra: Quarteto Editora, Coleção Estudos sobre a Europa, 2004. Resenha de: GALVÃO, Thiago Gehre. Meridiano 47, v.7, n.68, p.17-18, mar. 2006. Acessar publicação original [DR]

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