A arte antiga no tempo presente | MODOS. Revista de História da Arte | 2020

Conhecer o Brasil significou para o projeto modernista visitar e reconhecer a antiguidade artística nacional, registrar suas manifestações e estudá-las para maior compreensão da nossa constituição histórico-cultural. Foi também uma oportunidade de lançar um olhar menos colonizado e europeizado sobre a arte brasileira, mestiça, nascida dos tantos encontros de culturas e tradições que se realizaram em solo nacional. Essas ações tiveram momentos de maior e menor dinâmica no decorrer da segunda década do século XX. A partir de um olhar retrospectivo, por diversas ocasiões a produção de arte no Brasil se valeu de releituras e reinterpretações de manifestações do passado nacional, buscando ressignificar essa herança e mesmo dar significado às obras contemporâneas. Nos últimos anos, ainda, o avanço dos cursos de pós-graduação fomentou uma retomada das pesquisas que revisaram o conhecimento existente e inovaram com abordagens de bens culturais ainda por identificar e olhares inéditos sobre as manifestações artísticas, incluindo e abrangendo representações marginalizadas pelos binômios centro-periferia, capital-interior pelas discriminações de gênero, de classe social, de raça, cor e etnia. Nesse contexto surgiram expressões da arte contemporânea que se apropriam da arte antiga e lhe conferem outros significados sob a égide do pensamento descolonizador.

Por todo lado a arte do passado instiga o nosso presente, apresenta-se como uma esfinge a suscitar decifrações e reações as mais diversas possíveis, que vão do desprezo às explicações científicas e fantasiosas. Há um desejo irresistível em compreendê-la, mas também ações que promovem o seu apagamento, afinal, decifrar os seus enigmas implica em acordar os monstros do (in)consciente coletivo. O diálogo artístico entre tempos diversos auxilia a consciência e a crítica do presente. Nesse dossiê a discussão se desenvolve a partir de realidades artísticas diversas.

Com Libri Principis e as Ilustrações de Flora e de Fauna do Brasil Holandês, Cláudia Philippi Scharf nos leva a um agradabilíssimo passeio, com riqueza dos detalhes e das técnicas, pelas obras de ilustração científica realizadas no período nassoviano. Aborda não apenas os dois volumes dos Libri Principis, que dão título ao artigo, mas também outras duas obras do tempo de Nassau: os quatro volumes do Theatrum rerum naturalium Brasiliae e a Miscellanea Cleyeri, defendendo a indissociabilidade que havia entre arte e ciência e defendendo que ambas jamais deveriam ser entendidas de forma separada.

Do século XVII, chegamos ao século XIX através de uma linha semelhante, de revisita à arte de tempos pregressos, com a reflexão de Artur de Vargas Giorgi, em seu ensaio sobre Abstratos e realistas: a América Latina e o vazio fundacional. O discurso de Giorgi se calca na dicotomia entre a realidade e a abstração no modo de representar os heróis dos processos de independência de países hispanoamericanos e do Brasil, demonstrando como as nações de fala castelhana tinham a tendência a representações mais idealísticas, ao passo que as telas brasileiras apresentaram um aspecto de representação muito mais real da paisagem nacional, fatores muito ligados ao processo de colonização e à visão de mundo de suas antigas metrópoles.

Raquel Quinet Pifano, ao tratar de Aleijadinho por Murilo Mendes, nos fala de como a abordagem de Mendes bebe em outras fontes nacionais e fortalece a percepção de que a obra do artista mineiro acaba sendo uma síntese entre o temporal e o transitório e, com isso, ao mesmo tempo nacional e universal.

E o contraponto entre a tradição artística europeia e a recepção brasileira perpassa, de maneiras distintas, nos ensaios De olhos abertos, de olhos fechados: passado e presente da iconografia do Cristo crucificado, de Alexandre Ragazzi, e “Mas que temos nós com isso”? Roteiros antropofágicos na coluna “Feira das quintas”, de Thiago Gil. O primeiro tem enfoque maior na forma como a representação do Cristo Crucificado foi se alterando ao longo dos períodos e das inflexões da doutrina cristã e as variações que teve até o século XVIII, quando é feita a escultura do Bom Jesus de Matosinhos de Congonhas (MG); o entalhador realiza a imagem com o olhar divergente, opção com profundo significado teológico. No segundo texto, a arte do Velho Continente é também abordada, mas sob uma postura de refutação, quase iconoclasta, do modernista Oswald de Andrade, em discussões que anteciparam o que viria a ser proclamado pelo Manifesto Antropófago de 1928, buscando lapidar e consolidar uma postura de defesa e valorização da arte brasileira, mestiça e de múltiplas influências. Visão semelhante a essa é colocada pelo artigo “Tradição Clássica e Historiografia da Arte na obra “Padre Jesuíno do Monte Carmelo” de Mário de Andrade”, no qual Myrian Salomão nos apresenta a leitura que outro membro da semana de Arte Moderna de 1922 faz de um artista colonial.

Em certa medida antropofágica, a releitura da tradição e da artesania brasileiras pela artista contemporânea Ana Maria Tavares são os motes para a análise levada a cabo por Marilia Solfa e Vanessa Rosa Machado, com o texto Atlântica Moderna: a natureza feita de crochê e vidro – Produção artística e saber artesanal em Ana Maria Tavares e Lina Bo Bardi, que traça um consistente prospecto da obra de Tavares e demonstra como o olhar de Lina Bo Bardi acabou por influenciá-la.

Daniella Amaral Tavares em “O minotauro tranquilo: Rubens e o diálogo com a antiguidade e outras tradições” analisa a humanização do Minotauro na obra de Rubens e o diálogo que o pintor estabelece com a tradição literária e iconográfica do mito do monstro de Creta. Por fim, a arte contemporânea se coloca novamente presente com o Anticlassicismo da apropriação de imagem no tempo presente, de Dilson Rodrigues Midlej, autor que nos brinda com um percurso por obras dos artistas brasileiros Caetano de Almeida, Renato Medeiros, Alex Flemming, Odires Mlászho, Camila Soato e Calasans Neto, comparando as realizações desses autores aos modelos clássicos ou neoclássicos que lhes serviram de base, e expondo os questionamentos contemporâneos que essas releituras fazem.

É, portanto, oferecido ao leitor um repertório temático que permite a reflexão acerca do mundo das significações e ressignificações e projeções da arte do passado no tempo presente.


Organizadores

Luiz Alberto Ribeiro Freire – Pesquisador CNPQ 2, Doutor em História da Arte pela Universidade do Porto, Portugal. Professor de História da Arte da Universidade Federal da Bahia. Pesquisa a talha na Bahia, arte conventual feminina e outros temas da arte baiana dos séculos XVIII e XIX. E-mail: [email protected]  ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7125-8875

Mateus Rosada – Doutor em Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo pelo Instituto de Arquitetura e Urbanismo USP/São Carlos. Docente no Departamento de Análise Crítica e História da Arquitetura e do Urbanismo da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]  ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2099-5290


Referências desta apresentação

FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro; ROSADA, Mateus. Apresentação. MODOS. Revista de História da Arte. Campinas, v. 4, n.2, p. 118-121, maio/ago. 2020. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.