A Bailarina da Morte: a gripe espanhola no Brasil | Lilia Moritz Shwarcz e Heloisa Murgel Starling

Difícil imaginar uma época mais propícia do que a que estamos vivendo para o lançamento de um livro sobre uma pandemia. Com A Bailarina da Morte: a gripe espanhola no Brasil (2020), Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling retomam a parceria que produziu Brasil: uma biografia (2015), e apresentam um oportuno estudo sobre um acontecimento de fundamental relevância que evidenciou a profunda desigualdade social brasileira; o negacionismo por parte das autoridades e a falta de organização do Estado no combate à doença. Como se pode notar, são muitos os paralelos que se podem traçar com a tragédia em curso provocada pela covid-19 no Brasil, e obviamente isso não passou desapercebido pelas autoras. Fica claro, portanto, que são recorrentes as vezes em que as duras lições que a História brasileira nos ensina não são aproveitadas.

O livro é dividido em dez capítulos, sendo sete deles dedicados a apresentar um panorama de como as principais capitais brasileiras lidaram com a espanhola. É acompanhado também por diversas imagens que retratam as enfermarias, as autoridades sanitárias, as cidades à época e recortes de jornais com caricaturas, poemas, anúncios de remédios milagrosos e relatos do caos instaurado pela epidemia. Destaca-se que o Brasil era um país acostumado aos surtos epidêmicos, fossem eles ocasionados pela febre amarela, varíola, tuberculose, peste bubônica ou cólera. A então jovem República empreendera um esforço em mitigar tais males, através de expedições científicas nos então pouco desbravados sertões do país. Belisário Pena, Oswaldo Cruz e Carlos Chagas são nomes preponderantes dessa geração. O saneamento das cidades, que à época era sinônimo de ambiciosas reformas urbanas conforme os padrões europeus, expulsou a população dos centros das cidades para áreas afastadas sem as menores condições sanitárias, num verdadeiro “urbanismo de exclusão”. Além do caso notável do Rio de Janeiro, esse processo ocorreu em capitais como Recife, Salvador, Porto Alegre, Belém e Manaus.

Afora algumas particularidades regionais, chama a atenção que a gestão da pandemia ocorreu de forma semelhante. O negacionismo por parte das autoridades é evidente. No Recife, em uma tentativa de maquiar as estatísticas que apontavam um elevado número de vítimas – as autoras apontam que nos meses de setembro e outubro de 1918 o registro de mortos foi superior a qualquer outra época da história da cidade – as autoridades competentes lançaram mão de um inventivo neologismo para a espanhola: tanatomorbia, composto pelo termo grego thanatos, morte; e pelo latino morbus, doença. Dessa forma, as pessoas não morriam pela gripe, mas por uma doença que levava à morte. Consta que na capital pernambucana morreram 1250 pessoas numa população de 218 mil. A cifra é, entretanto, certamente inferior ao verdadeiro número de óbitos, visto que muitos casos não foram parar nas estatísticas oficiais. Isto ocorreu em todas as capitais analisadas, onde muitas vezes os cadáveres permaneceram insepultos nas ruas ou dentro das residências.

Em Salvador, apelou-se à religião e o arcebispo primaz do Brasil, d. Jerônimo Tomé da Silva, rezou a “recordare contra pestem”, missa composta no século XIV no contexto da peste negra europeia. O então presidente do estado, Muniz de Aragão, entretanto, descartou a possibilidade de uma epidemia, afirmando que se tratava de “Influenza benigna”. Tal procedimento foi adotado pelos políticos em muitos dos casos analisados, até que a violência da bailarina da morte fosse incontestável. A imprensa, nesse sentido, denunciou a vista grossa dos governantes, que em vários casos tomaram providências todavia insuficientes.

O desespero da população também ficou evidente na busca por remédios milagrosos, que são descritos em todos os casos analisados pelas autoras. O mais popular entre eles foi o quinino, substância presente na água tônica e que foi (e ainda é) utilizada no tratamento da malária. Para a gripe espanhola, não adiantava. Pior, o uso desregrado do quinino fez com que muitas pessoas sofressem graves danos auditivos. Surpreendentemente, o quinino é um dos componentes da cloroquina, que atualmente é utilizada como tratamento precoce contra a covid-19, ainda que comprovadamente ineficaz contra a doença. A medicina popular também ganhou destaque em praticamente todas as regiões analisadas no livro.

Na então emergente cidade de São Paulo, cujas feições cosmopolitas começavam a despontar em função do elevado número de imigrantes, houve também um esforço por parte das autoridades em negar a periculosidade da doença e acalmar a população. Entretanto, a tragédia ocasionada pela espanhola não esperou para se alastrar com rapidez na cidade. Nesse sentido, as autoras colocam a capital paulista como um exemplo positivo de combate à doença: contava com uma infraestrutura hospitalar razoável em comparação às demais capitais, e seus habitantes procuraram seguir os protocolos sanitários de isolamento e quarentena. Além disso, os clubes esportivos paulistanos cederam suas instalações para que fossem criadas enfermarias, assim como muitos colégios da cidade. Entretanto, como de resto em todos os casos analisados, a população pobre (à época majoritariamente composta por operários, no caso paulistano) foi a que mais sofreu com a enfermidade. Segundo as estatísticas oficiais, 5331 pessoas morreram de espanhola em São Paulo, numa população de 541 mil habitantes. Como nas outras estatísticas, o número real de vítimas foi muito maior do que aquele apresentado nos dados oficiais.

O último capítulo do livro, Quem matou Rodrigues Alves?, traz uma relevante reflexão sobre os ritos nascentes da jovem República e o jogo de poder que envolveu a morte do presidente eleito. Os pomposos rituais fúnebres de Rodrigues Alves, que mobilizaram todo o país, inserem-se dentro de uma lógica republicana na qual se busca “despertar no homem comum o sentimento de cidadão, isto é, de que todos pertencem a uma mesma comunidade política” (Schwarcz e Starling 2020, 294). Esta lógica se contrapõe à concepção monárquica do ritual, que prevê, por sua característica dinástica, a continuidade do poder na figura do monarca sucessor. Dessa forma, é oportuno lembrar, como fazem as autoras, do lema medieval “morto o rei, viva o rei”.

Em relação às circunstâncias da morte de Rodrigues Alves, é lugar-comum afirmar que o presidente perecera em função da espanhola. Entretanto, consta que o sucessor de Venceslau Brás, cuja carreira política já era notável desde os tempos do Império, quando havia recebido o título de conselheiro, fora escolhido pelas oligarquias regionais em função de seu caráter conciliador. Há de se notar que a periódica recomposição política que acontecia a cada quatro anos apresentava potenciais riscos quando de sua eleição, com as elites baianas e gaúchas ansiando por maior protagonismo. De acordo com as autoras, Rodrigues Alves já estava doente havia alguns anos – o diagnóstico era “anemia perniciosa” – o que o obrigou a se afastar da presidência de São Paulo entre outubro de 1913 e janeiro de 1915. Foi esta a enfermidade que constava como sua causa mortis. Embora os rumores sobre seu estado de saúde circulassem antes da eleição, para que as forças políticas regionais não se desestabilizassem com a “descoberta” da gravidade da doença do presidente eleito (que fora inclusive aconselhado a renunciar), surgiu o boato de que o presidente morrera de gripe. Tornou-se, assim, a mais ilustre vítima da espanhola no país.

A conclusão do livro também traz reflexões pertinentes sobre a relativa falta de registros literários sobre o período da pandemia. Existem escritos memorialísticos de Érico Verissimo, Nelson Rodrigues e Pedro Nava, por exemplo. Entretanto, quanto a outras produções literárias, são poucas as referências. Não teria sido a espanhola tão marcante? São inúmeras as hipóteses para esse “apagamento” da doença nas letras nacionais: a proximidade com eventos de grande magnitude como a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa; a crença no progresso e na modernidade que imperava à época; a própria brevidade da epidemia pode ser lida como um fator para essa relativa falta de memória sobre a doença. Entretanto, nada disso pode apagar o desastre humano que foi a espanhola, dizimando a população de norte a sul do Brasil e escancarando a desigualdade social e racial que flagela o país.

As últimas páginas do livro são dedicadas a uma análise da pandemia de covid-19. Os paralelos entre as duas epidemias são retomados à luz da situação atual, e são inúmeros. Entretanto, um aspecto chama a atenção no que diz respeito aos nossos tempos: a indiferença do governo federal perante às vítimas do covid-19 não pode ser comparada às da gripe espanhola. O livro, finalizado em setembro de 2020, traz a cifra de 125 mil brasileiros mortos pela covid-19. É motivo de imensa tristeza pensar que, em março de 2021, já estejamos beirando os 300 mil.

Referências

SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. A Bailarina da Morte: a gripe espanhola no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.


Resenhista

Gabriel Soares Predebon – Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2019), com a dissertação A trajetória e as colunas cinematográficas de Ironides Rodrigues para A Marcha (1954-1962). E-mail: [email protected]  https://orcid.org/0000-0002-7863-1406


Referências desta Resenha

SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. A Bailarina da Morte: a gripe espanhola no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. Resenha de: PREDEBON, Gabriel Soares. Uma tragédia esquecida: a gripe espanhola no Brasil. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.27, n.1, p. 460-463, 2021. Acessar dossiê [DR]

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