A educação do corpo nas escolas do Rio de Janeiro do século XIX | Victor Andrade de Melo

Para Soares (2014) a educação do corpo se caracteriza pela progressiva repressão das manifestações corporais. Assim, educar o corpo, de acordo com autora, é torná-lo adequado ao convívio social, bem como inseri-lo processualmente em mecanismos de aprendizagens que buscam encobrir e apagar comportamentos selvagens, trazendo à tona características pacíficas. Nesse sentido, a educação do corpo pode se manifestar em diferentes espaços e contextos, desde instituições formais como a igreja e a escola, até em clubes sociais e esportivos, parques de diversões, entre outros âmbitos comuns da vida pública. A educação do corpo, portanto, se trata de uma potente e ampla rede de discursos e significados que permeiam um conjunto variado de normas, proibições e consentimentos diretamente vinculados aos corpos e as dimensões culturais, econômicas, políticas e sociais de cada tempo e localidade – características essas que vêm permitindo aos pesquisadores escreverem uma história da educação fundamentando-se no respectivo conceito nas mais variadas esferas e lugares.

Nessa esteira, o livro resenhado se trata de uma contribuição para a história da educação, especialmente para as discussões ligadas às iniciativas de educação do corpo relacionadas com as práticas corporais e o espaço escolar. A obra intitulada “A educação do corpo nas escolas do Rio de Janeiro do século XIX”, publicada pela editora 7letras, foi escrita pelo pesquisador Victor Andrade de Melo, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O livro é organizado em quatro capítulos, e tem como objetivo discutir como foram mobilizadas as pioneiras experiências de ensino de práticas corporais nos colégios da capital fluminense, sobretudo nos tempos do império (1822-1889). Devemos destacar que o recorte temporal abordado pela autoria foi um período emblemático na história do Rio de Janeiro e do Brasil. Representa uma época singular no que tange a sua formação enquanto Estado-nação em um território que passou de colônia para império. Foi um momento de intensas mudanças no que diz respeito ao desenvolvimento e adesão a ideias de modernidade e progresso, elementos esses que o autor é zeloso em considerar ao longo da obra.

Para a escrita do presente livro, o autor usufruiu de uma estrutura descritiva e materialista da história social, pautada em diversas fontes. Destaca-se o uso de jornais2 da capital carioca do período em tela. Os materiais jornalísticos foram examinados tendo como base os pressupostos metodológicos descritos pela historiadora Tania Regina de Luca (2005).

Materiais como atas, decretos e leis da antiga capital federal também foram utilizados. Entre as fontes empregadas, sobressaem-se os relatórios anuais do Ministério dos Negócios, que rotineiramente apresentavam percepções sobre práticas corporais associadas a uma ideia de educação física. Observa-se que o uso desses documentos seguiu critérios similares aos dos usos dos jornais, ou seja, o autor buscou questionar as relações sobre quem publicava os documentos e quais seus possíveis interesses por trás da divulgação.

No que diz respeito ao uso conceitual das noções de educação do corpo, o autor tem como referenciais teóricos os escritos do historiador francês Georges Vigarello (2003) e os manuscritos da pesquisadora brasileira Carmen Lucia Soares (2001), alinhando-se com suas respectivas percepções de que em cenários escolares e não escolares, se elaboraram diversas estratégias para que os corpos dos sujeitos se ajustassem a determinadas necessidades e interesses sociais. Nesse aspecto, as práticas corporais compareciam como potentes recursos para submeter os corpos a regulamentos por meio de diferentes técnicas, pedagogias e instrumentos.

Melo (2020) conceitua práticas corporais como um conjunto de atividades que de forma articulada, ainda que com suas particularidades, passaram por processos de institucionalização: o esporte, a educação física (entendida pelo autor tanto como área escolar ou campo de conhecimento), a ginástica, a dança, certos divertimentos (patinação, pelota basca, touradas e algumas lutas) entre outras práticas como a capoeira, são exemplos detalhados como seu constituinte. Compreendemos que essa percepção conceitual é uma interessante alternativa para se historicizar conjuntos de dinâmicas físicas, principalmente para não cair em debates caros do campo da Educação Física, como os da conceituação do que é ou não esporte.

Adentrando ao primeiro capítulo intitulado “Posicionamentos governamentais sobre a educação física no Brasil monárquico: um panorama”, Melo (2020) busca retratar os primeiros debates em torno de uma ideia de educação física no Rio de Janeiro. Para isso, o pesquisador realiza a contextualização dos primórdios dos discursos sobre a educação física no país, tencionando principalmente quais intencionalidades os gestores políticos, sobretudo cariocas, conferiam a ela para o meio civil. Nesta esteira, Victor Melo discute os sentidos e significados atribuídos à educação física, tanto no que tange ao seu papel em um plano educacional mais geral ou como iniciativas concretas de intervenção em terras cariocas. A autoria observa que a educação física se expressava nessa conjuntura como um tema relacionado às questões gerais dos posicionamentos governamentais. Contudo, ainda assim era considerada um elemento urgente no período imperial, pois se apresentava como uma possibilidade de intervenção de ordem progressista que passava a se preocupar principalmente com a higiene e saúde da população. Além disso, se relacionava com um conjunto de ideias modernizadoras e discursos provenientes da Europa que ditavam a necessidade de adoção a novos comportamentos em que o físico precisava ser educado. Essas ideias, para o autor, são compreendidas como fundamentais para a implementação da disciplina no ceio escolar carioca ainda no início dos anos 1840.

Assim sendo, no período Imperial a Educação Física já ganhava potencial de intervenção social, especialmente em questões relacionadas à educação do corpo, essa encarada em duas frentes pelo autor: no sentido stricto como disciplina escolar que envolvia principalmente exercícios ginásticos e militares para o fortalecimento corporal da nação, e no sentido lato como uma possibilidade civilizatória dentro do projeto modernizador que o Estado Imperial almejava, ditando maneiras corretas de se portar, agir, se vestir, entre outros comportamentos comuns durante a cena pública. Ao fim do capítulo, observa-se que a percepção de educação física no âmbito civil, contida nos relatórios analisados pelo pesquisador, é caracterizada de forma múltipla, mas ainda assim não se distância de elementos ligados à noção de educação do corpo debatida no livro. Afinal, a educação física ganhava status de um domínio constituído de práticas ligadas a debates sobre higiene e saúde, sendo inclusive uma expressão benéfica para a vida saudável, e ainda como uma estratégia útil para o refinamento dos costumes cotidianos da população. A seguir, as práticas que ganharam destaque como estratégias de intervenção, principalmente no âmbito escolar, são retratadas com maior detalhe no próximo capítulo da obra.

No capítulo dois “A dança nas escolas do Rio de Janeiro do século XIX (décadas 1820-1860)”3 o autor debruça seus esforços na investigação das iniciativas pioneiras relacionadas ao ensino da dança nas escolas fluminense. Com uma narrativa que inicia com chegada da família real portuguesa na capital carioca em 1808 devido aos conflitos com Napoleão Bonaparte, o autor evidencia diversas alterações que esse fato gerou na vida social da cidade, inclusive em relação às questões culturais, como a necessidade de melhor estruturação de espaços para uma atividade comum na sociedade de corte: a dança. Nesse cenário, o autor é enfático em relatar que dançar se tornava uma necessidade coletiva, principalmente para aqueles com certos laços com a coroa, que não raro usavam desses momentos de baile para concretizar negócios e relações amorosas.

Em razão das danças de corte ainda não serem frequentes em terras fluminenses, uma série de medidas para o fomento e ensino dos estilos dançantes começaram a ser observados como fundamentais, sobretudo pela embrionária mídia impressa que despontava. Melo (2020) observa que em cenários não escolares os mestres de danças, essencialmente europeus, começavam a abrir suas salas, e que espaços comuns de oferta da prática como o Teatro Real São João foram fundados com apoio direto da corte. Nesse sentido, dançar se tornava, na percepção do autor, uma necessidade comum da vida social para uma parcela da população, e não demoraria a ser ensinada em ambientes escolares4. Os colégios particulares nas décadas de 1820 passaram a ofertar a dança como conteúdo extra (pago à parte), ação que se intensificaria ainda mais nas décadas seguintes.

Durante o período abordado, o autor apresenta que não se exigia desses docentes de dança nenhuma formação específica. Tratava-se, basicamente, de sujeitos que apresentavam certas habilidades e proximidade com a prática – inclusive, no ambiente escolar, eram chamados de mestres e não professores. Além do aprendizado dos movimentos, a dança exigia a instrução de outros cuidados, especialmente aqueles relacionados a um inédito contato físico em público entre homens e mulheres, exigindo, na percepção do autor, um amplo processo de aprendizagem corporal. De fato, a dança no contexto fluminense é um bom indicativo de como as práticas corporais podem promover nítidas estratégias ligadas à educação do corpo, principalmente no que diz respeito a ser uma intervenção útil para o refinamento de certos comportamentos necessários para a vida social – particularidades essas que merecem serem observadas em outras cidades em trabalhos futuros.

“A natação nas escolas do Rio de Janeiro do século XIX (1853-1889)” é o título do terceiro capítulo. Melo (2020) buscou discutir a presença da natação no âmbito escolar fluminense e seus sentidos e significados. Com uma contextualização da apropriação ao costume de se banhar, o autor evidencia que discursos de higiene, saúde e atividade física se tornaram sinônimos de ideias de civilidade e progresso. Nessa conjuntura, a natação seria, na percepção do autor, mais uma dinâmica que se inseria nessa lógica, inclusive, facilitada por uma cidade que durante o período discutido já melhor estruturava um mercado de diversões ligadas às práticas corporais, e com uma população disposta a usufruir dessa cena urbana, estratégias visualizadas pelo pesquisador como fundamentais para a sustentação e valorização dessas iniciativas.

Com discursos de certo modo utilitaristas, a natação era rotineiramente anunciada nas divulgações impressas locais como uma necessidade básica da formação humana. Assim como a dança, quem ensinava a nadar eram os mestres. Ao explorar a difusão da atividade no âmbito escolar, o autor sinaliza que por questões básicas de infraestrutura, a prática se difundiu melhor em escolas cariocas privadas, contudo, ainda assim era encarada nas escolas públicas do império como um importante elemento da educação física e moral da juventude, principalmente por promover melhorias ligadas a saúde e fortalecimento corporal, significados esses frequentemente associados à natação nos achados do autor.

No que tange ao desenvolvimento da modalidade, o autor observa que foi principalmente nas instituições de ensino militares que a natação melhor se estruturou no Rio de Janeiro. Os motivos principais, além de uma infraestrutura mais qualificada no que diz respeito aos espaços para a prática, estavam ligados também a uma necessidade básica de aprender a nadar como um elemento útil para o campo de batalha, sobretudo, marítimo. A autoria aponta, ainda, ao trazer à tona que no período investigado a Guerra do Paraguai (1864-1870) estava em pleno embate, que a oferta da prática se potencializou nas escolas visto esse contexto circunscrito. Ao fim, o que se nota é que o ensino e oferta da natação em espaços escolares fluminenses, na mesma medida que releva significados gerais atribuídos a atividade (noções ligadas a saúde e higiene), também evidencia que uma mesma dinâmica pode apresentar sentidos e significados distintos de acordo com cada ambiente que é estruturado, uma vez que cada local pode apresentar suas próprias particularidades – questões essas que cabe ao pesquisador descortinar.

O quarto e último capítulo, “Ginástica e outras práticas corporais em escolas do Rio de Janeiro (1837-década de 1850)”, trata-se de um desfecho do livro, no qual o autor busca explorar as experiências em escolas cariocas com a ginástica, além de retomar ponderações sobre as outras práticas já debatidas nos capítulos anteriores. De acordo com o pesquisador, os primórdios do ensino da ginástica em escolas fluminenses são marcados por um discurso intimamente imbricado nas noções de saúde, disciplina e fortalecimento corporal, pautadas em pensamentos já melhores estruturados na Europa. O autor, inclusive, ao visualizar a nacionalidade dos primeiros educadores da modalidade, identificou que eram majoritariamente estrangeiros. Assim, como observado nas outras atividades, os sujeitos encarregados de ministrar as aulas ganhavam títulos de mestre e a prática era ofertada como conteúdo à parte da grade comum.

Por fim, a ginástica ganhou sustentação no ceio escolar por uma aproximação social com os discursos médicos e higiênicos, característica que atribuía à prática um ar de importante combatente às mazelas sociais, essencialmente as ligadas aos vícios de postura corporal. Ao que tudo indica, a ginástica e as outras práticas corporais abordadas no livro em questão, ao serem implementadas na escola, dotavam esse ambiente com um potencial de cura, sendo verdadeiras ferramentas para a educação do corpo – seja do ponto de vista da saúde ou para a elaboração de certos comportamentos tidos como fundamentais para vida.

A título de considerações sobre o livro resenhado, reconhece-se que o presente material convida o leitor a compreender as práticas corporais como um componente potente na elaboração de noções educacionais, especialmente as ligadas a educação do corpo. Entretanto, um dos pontos que poderia ser ampliado na obra, apesar da centralidade proposital no Rio de Janeiro, é o diálogo com mais trabalhos que trataram especificamente sobre a educação do corpo e sua relação com as práticas físicas em outras cidades ou esferas – essas características poderiam ilustrar melhor a possibilidade de visualizarmos e problematizarmos elementos similares ou não. Acredita-se que será válido, no futuro, explorar outras dinâmicas em outros ambientes e locais, que podem, sem dúvidas, apresentar novas questões para o debate. Ademais, com um conjunto variado de fontes, o livro cumpre o papel de ser uma rica contribuição para o campo da história da educação.

Notas

2 Os principais jornais utilizados foram os periódicos Correio Mercantil, Diário do Rio de Janeiro, Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, Diário da câmara dos senados do Império, Gazeta de Notícias e o Paiz.

3 Tendo em vista o recorte adotado pelo autor, sinaliza-se que diversas escolas foram palco de análises. Entre elas, ganha destaque o Colégio Pedro II e o Colégio Abílio.

4 Os estilos ensinados nas escolas eram notadamente aqueles oriundos das cortes europeias: a valsa, mazurca e quadrilha.

Referências

LUCA, Tânia Regina. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla (orgs.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005, p. 111-153.

MELO, Victor Andrade de. A educação do corpo nas escolas do Rio de Janeiro do século XIX. Rio de Janeiro: 7letras, 2020.

SOARES, Carmen Lúcia. Corpo, conhecimento e educação: notas esparsas. In: SOARES, Carmen Lúcia (orgs.). Corpo e história. Campinas: Autores Associados, 2001, p. 109-129, 2001.

SOARES, Carmen Lucia. Educação do corpo. In: GONZÁLEZ, Fernando Jaime; FENSTERSEIFER, Paulo Evaldo (orgs.). Dicionário crítico de Educação Física. Ijuí: Unijuí, 2014, p. 219-225.

VIGARELLO, Georges. A História e os Modelos do Corpo. Pro-Posições, Unicamp, Campinas, v. 14, n. 2(41), p. 21-29, mai./ago. 2003.


Resenhista

Leonardo Couto Gomes – Aluno de doutorado pelo Programa de pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em Educação Física pela Universidade Federal do Paraná (2019). Graduado em Educação Física – Licenciatura pela Universidade Federal do Paraná (2017). É bolsista de doutorado aluno nota 10 pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Tem seus estudos voltados a área sociocultural do esporte e da Educação Física, envolvendo História, Sociologia e Filosofia. E-mail: [email protected] https://orcid.org/0000-0002-8866-2054


Referências desta Resenha

MELO, Victor Andrade de. A educação do corpo nas escolas do Rio de Janeiro do século XIX. Rio de Janeiro: 7letras, 2020. Resenha de: GOMES, Leonardo Couto. Entre práticas corporais: a educação do corpo em escolas do rio de janeiro do século XIX. História da Educação, v. 27, e118618, 2023. Acessar publicação original [DR]

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