A formação da biblioteca pessoal: efeitos refeitos | Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica | 2021

Falemos da biblioteca. Quis dizer com isso que qualquer leitura é uma leitura comparativa, contato do livro com outros livros. Assim como existe dialogismo e intertextualidade, no sentido que Bakhtin dá ao termo, há dialogismo e intertextualidade da prática da própria leitura. Entretanto, não há nada aqui que seja mensurável. Estamos no campo das hipóteses e do provável. Ler será, portanto, fazer emergir a biblioteca vivida […].1

No cerne das atividades escolares, nas histórias de formação individual e coletiva, científica e profissional ou artística, habita a leitura. Que mais não precise ser mencionado aqui para dizer de sua relevância. Lembremo-nos apenas dos embates atuais entre os jovens estudantes – e os nem tão jovens – sobre o prazer ou o tédio que a atividade pode ocasionar. O território dos estudos sobre a leitura é vasto, muito já se falou, investigou e recomendou sobre a questão. Que, por excelência, interessa à maioria das ciências humanas e ocupa posição central para os trabalhos educacionais. Deixemos aos especialistas o domínio das peculiaridades da leitura. Interessa-nos investigar os efeitos da leitura na vida de cada pessoa. A questão não indica a necessidade de se produzirem instrumentos para medições, pois como afirma Jean-Marie Goulemot, “não há nada aqui que seja mensurável”. Talvez, por isso, o próprio leitor, por meio de suas apropriações, seja a principal referência para que se possa compreender o que resta após o ato da leitura. Esse é o caminho escolhido no Dossiê A formação da biblioteca pessoal: efeitos refeitos, de modo a refletir acerca de uma atividade que se tornou central na construção de saberes sobre si e sobre o mundo, sendo estruturante de atividades e ofícios diversos.

Para tanto, recorremos à imagem da biblioteca vivida, ou seja, à dimensão pessoal da construção de bibliotecas. Ao longo da nossa vida de leitores, colecionamos aqueles títulos inesquecíveis, que nos fazem lembrar de situações vividas, processos formativos, entre outros. O importante, assim, será fazer emergir relações pessoais com os livros. Para Chartier2, uma biblioteca também corresponde a gestos e pensamentos que organizam formas de relação com a cultura escrita. Nesse sentido, buscaremos evidenciar tais indícios e os critérios de seleção que separaram “[…] livros imprescindíveis de se possuir dos que podem (ou devem) ser negligenciados”3. Neste Dossiê, considera-se importante acompanhar os crivos que permitem aos sujeitos estabelecerem seus livros imprescindíveis, os conhecimentos a serem retidos e aqueles a serem negligenciados, bem como interessa-nos perscrutar a natureza desse saber considerado importante, o que se faz ao acompanhar as escolhas, mais ou menos conscientes, que ordenam tal atividade.

Os gestos e os pensamentos que organizam os acervos, públicos e pessoais, dizem respeito à recolha, à organização, à coleção e à hierarquização dos livros. Quando tomamos tais movimentos, consideramos que eles evidenciam as marcas do que caracteriza os sujeitos e, assim, a própria leitura, um exercício de interpretação, faz com que os títulos que compõem o todo da produção literária participem de um acervo privado, individual e, também, afetivo que testemunha uma forma de ver o mundo. Esse ato de interiorização ou de enraizamento dos livros na vida das pessoas coloca-nos diante da possibilidade de pensarmos a leitura como elo entre a história pública e a história individual enquanto matéria para a constituição de identidades pessoais, profissionais e artísticas. Se, como afirma Antonio Candido4, a literatura e, diríamos, os livros oferecem uma síntese da experiência humana e, por isso, podem ser compreendidos como uma forma de conhecimento, acompanhar a formação das bibliotecas vividas pode nos possibilitar compreender os gestos e pensamentos que organizam a impregnação dos livros nos sujeitos e destes nos livros.

Como foi assinalado, o território é vasto. Escolhemos, então, impor como limites para o Dossiê o que pensamos poder interessar aos professores e aos que se preparam para o exercício docente. E nos limites assim definidos pretendemos expor reflexões – percorrendo itinerários diferentes – acerca de modos de pensar que foram se elaborando, no tempo, a propósito da leitura e permeados por leituras. As bibliotecas pessoais, em sentido amplo e livre, serão objeto de atenção e a partilha de referências a alguns clássicos individuais obedecerá a vontade de mostrar sua potência. E no horizonte das nossas expectativas está a aposta em que as pessoas invistam em reflexões dessa natureza, que julgamos férteis para a educação.

Assim, o Dossiê privilegia artigos que apresentam pontos de vista interessados nas posições de leitores e de professores, testemunhos de modos de ler, das ancoragens feitas na literatura (como modo de conhecimento e de constituição pessoal). Gostaríamos de reimaginar relações com o ler e seus objetos, a partir do diálogo com alguns teóricos, desde os momentos inaugurais do aprendizado da leitura até uma reflexão que pode se perguntar hoje sobre nossas bibliotecas vividas, constituídas pelas obras que nos marcaram, lidas em momentos especiais e que fazem frutificar nossos pensamentos e podem conduzir a nossa apreensão da realidade. Vale a pena pensar nos livros que não foram lidos, naqueles que são desejados, mas por qualquer razão são evitados, adiados ou explorados com exagerada timidez. Pensar nas obrigações escolares de leitura ou nos modos profissionais de ler. O que há de especial, por exemplo, nos modos pelos quais os professores universitários lidam com a questão no ensino e na formação de seus alunos? Além disso, destaca-se a configuração de acervos pessoais segundo as possibilidades de acesso aos diferentes títulos e autores que as trajetórias pessoais e profissionais ofereceram a cada um, fazendo surgir as práticas e configurações sociais bem como as formas da leitura que delas fazem parte. Certamente tais perguntas poderiam se multiplicar, se quiséssemos. Para tanto, foram reunidos os trabalhos que apresentamos a seguir.

Ler no quarto, ler na sala, ler no ônibus, ler nas bibliotecas públicas e pessoais: refazer efeitos, de Denice Barbara Catani, analisa a reconstrução de uma trajetória de relações com a leitura a partir da qual a autora sugere questões para a formação de professores e relata, a partir de núcleos espaciais e temporais, a constituição de suas bibliotecas vividas. Detém-se no entendimento dos efeitos estruturantes da leitura para a nossa imaginação e percepção do mundo. Diversas perguntas são formuladas a propósito das relações entre a vida escolar e a leitura e acerca das possibilidades de formação e transformação do gosto pelo ato de ler. Com a contribuição de obras da Literatura, da História e da Sociologia, a autora se move por espaços da casa e da rua e tempos também diversificados da sua vida e das escolas onde viveu.

O artigo Borboleteando na Biblioteca, do professor e pesquisador Afrânio Mendes Catani, descreve os caminhos para a constituição de sua biblioteca pessoal, seguindo seu humor borboleta. Ao mobilizar passagens de sua vida, o autor evidencia as maneiras pelas quais os livros se tornaram elos que ataram o cinema, a música, as relações familiares e, sobretudo, as amizades com outras pessoas e, evidentemente, com obras e autores. São seus amigos Umberto Eco e Jean-Claude Carrière que o auxiliam a elaborar reflexões relativas aos critérios de classificação dos volumes nas bibliotecas pessoais e sobre as possibilidades desse esforço no presente. Ao lado deles, o autor oferece ao leitor reflexão a respeito da força dos livros na vida de um intelectual ou o impulso que um intelectual pode ter por meio da leitura.

Em Professores e suas bibliotecas: histórias de peregrinações, Juliana de Souza Silva, Roni Cleber Dias de Menezes e Vivian Batista da Silva exploram a interseção entre o trabalho docente e a constituição de bibliotecas. Por meio da fértil imagem da biblioteca de Babel elaborada por Jorge Luis Borges, os autores indicam que as histórias de leituras e da relação com os livros se assemelham a peregrinações por meio das quais cada sujeito se apropria de maneira múltipla dos impressos a que tem acesso. Desse modo, narram diversos encontros com o universo letrado, por exemplo, o desejo pela alfabetização antes mesmo da entrada na escola, os embates entre as constrições escolares ou acadêmicas e os prazeres literários e os manuais escolares na configuração singular das posições docente e discente. Os pesquisadores mostram, assim, as diversas formas de ser professor que a elaboração de bibliotecas pessoais possibilita.

O texto Documentos pessoais: construção de se e chegada à literacidade acadêmica, de Juan Mario Ramos Morales, Lorena del Socorro Chavira Álvarez, Noemí Hernández Suárez e José Antonio Serrano Castañeda, interessa-se pelos relatos pessoais em diversas configurações e referentes a diferentes momentos de formação dos sujeitos até chegar ao trânsito pelos níveis acadêmicos. Retoma as múltiplas modalidades de constituição de documentos sobre si examinando os elementos que permitem avaliar suas potencialidades explicativas e reflexivas. Assim, chama atenção para os percursos de formação apresentando como exemplificação uma história pessoal integrada a um projeto sobre práticas curriculares e de acompanhamento, propõe intervenções mediante a utilização, entre mais, de diários, fotos e histórias de vida pondo especial atenção para a dimensão das relações com a leitura na vida universitária.

Ana Laura Godinho Lima, Patrícia Aparecida do Amparo e Katiene Nogueira da Silva apresentam, no texto A formação da biblioteca vivida e o aprendizado do julgamento das leituras, a narração de suas trajetórias escolares e profissionais evidenciando semelhanças e diferenças entre elas. A tentativa de recompor a vida de cada uma por meio de suas histórias foi potencializada ou orientada pelas relações com o universo letrado. Os livros são assumidos, pelas autoras, como objetos “especiais” que fincam um lugar para a produção de si como leitoras, alunas e professoras. Ao mesmo tempo, tais marcas passam pela incorporação conflituosa de julgamentos escolares, acadêmicos, familiares e amicais dos objetos dignos ou não de leitura e apreciação, estabelecendo as condições de pertencimentos sociais e institucionais.

O artigo de Renata Cândido, intitulado O que elas dizem sobre mim, o que eu digo sobre elas: a constituição da biblioteca pessoal e a formação do professor, demonstra a força dos seus clássicos no processo de elaboração de conhecimentos associados ao campo educacional. Ao narrar suas apropriações do romance O calvário de uma professora, de Violeta Leme Fonseca, e de duas obras acadêmicas – A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia, de Maria Helena Patto; e Sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável, de Bernard Lahire –, a autora revela seu processo de elaboração pessoal de conceitos como os de cultura e forma escolar, práticas escolares e fracasso escolar. As imagens mentais, descrições e exemplos trazidos por seus clássicos ofereceram à autora um espaço de produção intelectual e de conteúdo para o fazer pedagógico.

O artigo Vestígios de um percurso pessoal rumo ao “como ler”: indicações e interdições, de Natália de Lacerda Gil, partilha reflexões acerca das formas de constituição das suas referências acadêmicas ao longo do percurso formativo como professora e pesquisadora. Livros, leituras, professores e autores são objeto de uma reflexão apoiada pelas ideias de Pierre Bourdieu. As análises empreendidas permitem pensar sobre a formação de novos pesquisadores e suas possibilidades de produção de novos saberes. Sob o eixo das “indicações e interdições”, são apresentados autores que se incorporaram à biblioteca vivida da autora. Ela pondera sobre o favorecimento de uma perspectiva nitidamente eurocêntrica em sua trajetória intelectual avaliando também a necessidade de diversificar as leituras e explicitar os lugares de poder a partir dos quais elas são reconhecidas e valorizadas.

As reflexões apresentadas no texto Bibliotecas invisíveis na Ilha das Bruxas: um mapeamento de bibliotecas pessoais, privadas ou particulares existentes em Florianópolis (SC), escrito por Debora Zamban e Gisela Eggert-Steindel, discutem a presença de acervos pessoais pouco conhecidos ou divulgados localizados na cidade de Florianópolis e outras em seus arredores. Ao todo, as autoras identificaram sete bibliotecas criadas ao longo do século XX, resultantes das trajetórias e escolha de seus criadores, evidenciando diálogos com áreas de pesquisa e campos profissionais diversos. Além disso, esses acervos testemunham e registram passagens dos múltiplos percursos de seus criadores, como Norberto Ungaretti, Osni Régis e Cleber Teixeira, preservando suas trajetórias pessoais e públicas e elaborando a memória da cidade na articulação entre memória pessoal e social.

A geração dos novos na biblioteca de Salim Miguel e Eglê Malheiros, de Natan Schmitz Kremer e Alexandre Fernandez Vaz, reconstrói e analisa a atuação do Grupo Sul mediante a figura de Salim Miguel como nuclear para a constituição do movimento na metade do século XX em Florianópolis. O literato e sua esposa, Eglê Malheiros, atuam na criação de uma biblioteca como lugar de circulação de outros autores e de ideias de vanguarda. A iniciativa permite o enraizamento do movimento de modo simultâneo à legitimação de seu integrante no cenário da produção local e nacional por meio do exame das dedicatórias em seus livros, cartas trocadas com outros escritores e críticas às obras de Salim Miguel. Trata-se, assim, de um caso no qual a biblioteca pessoal configura-se como apoio da memória local e estímulo à construção de relações com a história da literatura nacional.

Em Biblioteca pessoal-coletiva-itinerante: saberes constituídos na ação de formar formando-se, as autoras Maria do Socorro de Sousa e Tânia Maria de Sousa França, valendose da pesquisa narrativa, abordam a maneira como elaboraram uma biblioteca pessoal no Ceará. Ao retomarem suas memórias de infância, as autoras evidenciam os espaços escolares e familiares como catalisadores da constituição de um acervo doméstico, em função de necessidades escolares, que pouco a pouco se tornou coletivo e aberto aos outros. As autoras e irmãs constituem uma narrativa que articula as práticas de oralidade, o acesso à escolarização e práticas culturais cotidianas na constituição de elos entre o universo letrado e seus lugares mais próximos na construção de uma biblioteca pessoal tornada coletiva.

O conjunto dos trabalhos aqui reunidos apresenta os diferentes significados das bibliotecas vividas. Pode-se reconhecer no conjunto três núcleos: o primeiro referente à elaboração de um espaço profissional mediante as apropriações de obras que concorrem para a consolidação do fazer docente e de outras atividades que se beneficiam da aproximação com a literatura e as bibliotecas. O segundo privilegia a elaboração de um espaço pedagógico imaginado e praticado por meio de repercussões individuais dos conteúdos literários que auxiliam seus autores a definir fronteiras do que pode ser pensado e concretizado no âmbito educacional. O terceiro núcleo diz respeito ao espaço familiar e aos afetos que podem envolver o desenvolvimento de relações profícuas com os livros e ato de ler. Um tal conjunto traduz um universo de práticas, gestos e pensamentos que compõe a força das bibliotecas vividas e dos espaços de elaboração pessoais e coletivos evidenciando o muito que se pode construir a partir das reconstituições das experiências de formação.

São Paulo, 15 de abril de 2021.

Notas

1 GOULEMOT, Jean-Marie. Da leitura como produção de sentidos. In: CHARTIER, Roger (dir.) Práticas de leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2009, p. 113.

2 CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: Editora UnB, 1999.

3 Ibidem, p. 70.

4 CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Duas cidades; Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2004.


Organizadores

Patrícia Aparecida do Amparo – Universidade de São Paulo.

Denice Barbara Catani – Universidade de São Paulo


Referências desta apresentação

AMPARO, Patrícia Aparecida do; CATANI, Denice Barbara. Apresentação. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto) Biográfica. Salvador, v. 06, n. 17, p. 16-20, jan./abr. 2021. Acessar publicação original [DR]

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