A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico Revolucionário / Peter Linebaugh e Marcus Rediker

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O livro A hidra de muitas cabeças, publicado pela Companhia das Letras em 2008, é o resultado do trabalho em conjunto de dois historiadores: Peter Linebaugh e Marcus Rediker, ambos especialistas em estudos sobre o Atlântico colonial e história do trabalho. Peter Linebaugh é um historiador marxista especialista em História da Inglaterra com estudos direcionados ao Atlântico colonial e à história do trabalho. Lecionou nas Universidades de Harvard, Boston e Rochester, atualmente é professor na Universidade de Toledo. Uma de suas obras de destaque é Fatal Tree: Crime and Society in Eighteenth-Century England (1975).

Marcus Rediker é historiador, escritor e ativista americano. Assim como Peter, também é inspirado pelo pensamento do historiador inglês Edward Palmer Thompson, o que culmina em sua decisão por aprofundar-se nos estudos da classe operária em Londres, inspirando-se também em Malcom-X1, tornando-o uma das chaves para o entendimento e estudo do pan-africanismo radical. Rediker lecionou na Universidade de Georgetown e atualmente é professor emérito de História do Atlântico e presidente do Departamento de História na Universidade de Pittisburg. O autor possui diversas obras sobre o Atlântico trabalhista e história marítima, dentre elas O navio negreiro: uma história Humana (2011).

Em A hidra de muitas cabeças, os autores analisam a história oculta do Atlântico durante os séculos XVII e XVIII a partir de uma abordagem sobre a negligenciada história dos trabalhadores, dos excluídos, dos vencidos. A classe trabalhadora estudada no livro é ampla e heterogênea em muitos sentidos: localidade, língua, etnia, condição social, diversidade cultural. Nela se incluem escravos, plebeus, piratas, marinheiros, índios, dentre outros. Segundo os autores, tais personagens foram essenciais no desenvolvimento do capitalismo europeu, além de desempenharem importantes funções para o empreendimento colonial inglês. Em contrapartida, os autores apresentam os entremeios do empreendimento capitalista, seus atores, suas propostas, suas ações e principalmente sua violência na implantação de um sistema baseado na exploração e no terror.

O ponto de partida da obra é o Radicalismo Inglês do século XVIII e suas primeiras ações para a organização do sistema colonial e para a formação das instituições necessárias à expansão desse empreendimento. O grande “insight” de Rediker e Linebaugh está na percepção de que o Atlântico não foi apenas um local de passagem, foi também um espaço de lutas, de conexões e de resistências, pois, em meio ao Atlântico, encontraram-se proletários de diferentes origens, culturas, etnias e religiões que compartilharam experiências e muitas vezes participaram dos mesmos movimentos de resistência. Na tentativa de homogeneizar a massa proletária, os governantes associados ao empreendimento colonial inglês utilizaram-se do mito de Hércules e da Hidra para simbolizar a dificuldade de impor um sistema de trabalho global a essa gama tão diversificada de trabalhadores. Hércules representava os dirigentes e os colonizadores, a Hidra de muitas cabeças representava os colonizados, os trabalhadores, os pobres, os menos favorecidos. É partindo desse mito que Linebaugh e Rediker analisarão as origens, as características e as lutas dessas múltiplas cabeças da Hidra no Atlântico.

Influenciados pelo pensamento de Thompson, os autores buscam fazer uma história “vista de baixo”, isto é, uma história dos oprimidos, das minorias, das manifestações populares como parte importante para o entendimento da história. Na obra os autores fazem um resgate da multiplicidade de experiências de opressão, violência e dominação em diferentes cenários, geralmente em locais ou instituições de controle (instituições totais) como navios, prisões, “plantations”, terras comunais, fábricas, espaços que também eram de sociabilização e mobilizações entre diferentes povos e culturas.

A obra divide-se em nove capítulos, sempre marcados por uma intensa conexão entre historiografia e política. No primeiro capítulo, “O naufrágio do Sea Venture”, é traçado um paralelo entre o naufrágio do navio Sea Venture e a peça de Shakespeare, A Tempestade, de 1611, apresentando uma hipótese do possível acesso de Shakespeare aos relatos de bordo de Willian Straky. O Sea Venture fazia parte de um comboio de oito navios recrutados pela Companhia da Virgínia que partiam da Inglaterra rumo à América; sua tripulação era formada pelas classes excluídas da Inglaterra, aqueles que não possuíam terras ou vínculos trabalhistas, ou seja, plebeus, operários urbanos, soldados e marinheiros.

No caminho, o navio se desvia do comboio e naufraga no arquipélago das Bermudas, sua tripulação fica por três meses ilhada e parte dela se rebela formando quilombos – neste caso, o conceito de quilombo remete a um assentamento diversificado, misto, heterogêneo, multicultural, mesmo porque tal termo não está vinculado apenas à questão racial e étnica.

Muitos tripulantes se rebelaram e formaram quilombos devido à abundância de água, comida, frutas, terra para todos, além da possibilidade do ócio, o trabalho não era necessário, situação que seria muito diferente na Virgínia. Muitos dos tripulantes haviam escutado relatos da fome, do excesso de trabalho e da exploração em que viviam os colonos na América. A situação era tão crítica que muitos colonos optavam pela fuga, abandonavam suas terras e se juntavam aos índios. Por isso, devido à abundância de comida e água, à divisão de terras e do trabalho compartilhada nesta ilha, muitos tripulantes associavam o arquipélago ao Paraíso, além de fazerem analogias às terras comunais das quais muitos deles foram expropriados na Europa.

Ainda em relação ao primeiro capítulo, o naufrágio ali descrito é utilizado para consolidar quatro temas presentes nas origens e no desenvolvimento do capitalismo do século XVIII: a) a expropriação – a partir do desenvolvimento capitalista e da competição imperialista, a Companhia da Virgínia foi uma das instituições responsáveis pelas expropriações e pelo translado da população campesina; b) as lutas por modos alternativos de vida – busca pelo retorno das tradições das terras comunais, aspecto de um modo de vida que muitos marinheiros levaram para território americano; c) os padrões de cooperação e resistência – união de diferentes classes em busca de objetivos comuns; d) por fim, a imposição de disciplina de classe – os dirigentes da Companhia da Virgínia implantam a força e o terror no intuito de alcançar disciplina de trabalho. Para a construção desse capítulo são utilizados relatos de viajantes, documentos administrativos da Companhia da Virgínia e obras literárias como A Tempestade, de Shakespeare.

No segundo capítulo, “Rachadores de lenha e tiradores de água”, são retomados argumentos de importantes intelectuais ingleses do século XVIII como Francis Bacon e Walter Raleigh. São apresentadas as interpretações desses intelectuais sobre o mito da hidra nas quais Bacon associa Hércules ao intelecto, à mente e considerava que o homem estava no “centro do mundo”. Além disso, Bacon desenvolveu a “teoria da monstruosidade”, na qual comparava alguns grupos de pessoas a enxames ou cardumes. Para sustentar sua teoria, recorre à antiguidade clássica e à bíblia, denominando estes sete grupos como candidatos ao extermínio: antilhanos, cananeus, piratas, salteadores, assassinos, amazonas e anabatistas.

Embora os dois primeiros capítulos se relacionem com o início da investida colonial, o segundo é mais descritivo no que tange às funções dos cortadores de lenha e tiradores de água, profissões que eram consideradas menores, desprezíveis e, como se isso não bastasse, eram vistas como maldição ou castigo pelos próprios trabalhadores. Os rachadores de lenha eram responsáveis pela construção de portos e navios, executavam trabalhos de expropriação, drenagem dos pântanos e recuperação de brejos. Os tiradores de água eram responsáveis por manter diariamente as casas e abastecê-las com água. Essa função era, na grande maioria das vezes, exercida por mulheres. Este capítulo faz uma retomada da história e das lutas de trabalhadores que atuaram em períodos importantes do empreendimento colonial, mas que em muitos momentos suas ações passaram despercebidas pela historiografia. Mais uma vez é utilizado o mito da hidra, em que Oliver Crownel e a burguesia revolucionária são os responsáveis pela transformação da hidra de muitas cabeças em tiradores de água ou rachadores de lenha, ou seja, a analogia da Hidra é aplicada a esses trabalhadores, que também eram partes das muitas cabeças da Hidra.

Já os capítulos três e quatro, “Uma criada negra chamada Francis” e “A ramificação dos debates de Putney”, respectivamente, podem ser enquadrados em uma segunda fase do processo de colonização no Atlântico datado entre 1640 e 1680, onde ocorreu o aparecimento das primeiras colônias centrais e os calorosos debates entre soldados e oficiais do exército de Oliver Cromwell e a população civil sobre a constituição, o sufrágio universal e o futuro da Inglaterra. O capítulo três, que tem como personagem principal uma criada negra chamada Francis, participante ativa dos debates realizados em sua igreja, representa a população civil, parcela significativa nas discussões sobre direito e cidadania. Neste capítulo, os autores partem de um único documento escrito por Edward Terril – presbítero de uma Igreja em Broadmead – sobre a criada Francis em direção a diversas questões de cunho estrutural e também conjectural. A partir dessa fonte eles traçam um perfil social da época, abordando questões de raça, gênero, religiosidade, classe e dinâmica social no contexto da Revolução Puritana Inglesa. Já o capítulo quatro aborda a questão dos soldados rebeldes que para defender uma maior democracia assumiam os postos dos generais como forma de protesto.

Linebaugh e Rediker mostram como a hidra levantou suas diversas cabeças em diferentes contextos, inclusive em debates políticos como foi o caso do ocorrido entre Oliver Cromwell, chefe dos oficiais do exército, e Tomas Rainborough, agitador de um grupo de soldados que lutavam por questões referentes às terras comunais e ao fim da escravidão.

O início de uma nova etapa ocorre no capítulo “Hidrarquia: marinheiros, piratas e Estado marítimo”, marcando a guinada do sistema financeiro construído para abarcar mercados atlânticos, além da consolidação do capitalismo através da mediação dos Estados Nacionais, compreendendo o período de 1680 a 1760. O processo de “Hidrarquia” consiste na participação das organizações de marinheiros na criação do Estado Marítimo, onde a mão-de-obra utilizada vinculava-se às seguintes atividades: a agricultura comercial, a produção artesanal, a produção de produtos manufaturados e a manutenção do barco, que funcionava como espaço de sociabilização e circulação de pessoas, sendo por muito tempo, segundo os autores, um dos principais motores do capitalismo.

O capítulo “A horda heterogênea na Revolução Americana” trata dos movimentos revolucionários multiétnicos, onde marinheiros, escravos e trabalhadores urbanos se agrupavam em lutas comuns relacionadas à melhoria das condições de trabalho.

Os dois últimos capítulos intitulados “A conspiração de Edward e Catherine Despard” e “Robert Wedderburn e o Jubileu Atlântico” abordam uma série de revoluções ocorridas a partir de 1790, além de tratarem do rearranjo ocorrido nesses movimentos, que de locais passam a possuir caráter universal, além do relato da história de um filho de uma escrava com um proprietário de terras e a partir deste caso específico os autores abordam questões sobre a abolição da escravidão e a universalidade dos direitos humanos, no que tange à questão da cidadania universal.

Em suma, o livro transita entre os duzentos anos de história do processo de fundação do capitalismo no mundo Atlântico e para tanto os autores utilizam conceitos, analogias, métodos que servem para costurar todas essas histórias que culminam na elaboração de uma história global, porém as abordagens não se fecham nesse espaço onde conexões são elaboradas entre os dois lados do Atlântico. Para desenvolverem essa tese e sustentarem as argumentações, Rediker e Linebaugh generalizam, ampliam e expandem questões que, muito possivelmente, seriam tratadas de maneira diferente por especialistas regionais e, talvez, com diferentes posturas metodológicas e teóricas.

Nesse contexto, a obra se torna bastante polêmica no campo historiográfico, porque em diversos momentos do livro os autores utilizam conceitos considerados anacrônicos como, por exemplo, a formação de quilombos no mar, ou seja, nos navios e também em algumas ilhas como o já citado arquipélago, além da definição do navio como motor do capitalismo.

Nesse momento, a força de trabalho humana desaparece. Na tentativa de sustentar a tese do Atlântico enquanto lugar de passagem, os autores generalizam, fazem uma história total que busca enquadrar as diferentes lutas do período colonial na dicotomia oprimido e opressor, governantes e governados, Hidra e Hércules. Portanto, o livro abre margens para um intenso debate na forma de escrita da história, sobre a possibilidade da escrita de uma história total, sobre o uso de conceitos ditos anacrônicos, sobre a imparcialidade do historiador na tentativa de defender uma tese e sobre as diferentes posturas metodológicas, teóricas e também políticas dos historiadores.

Sabrina Fernandes Melo – Mestranda PPGH-UFSC/Bolsista CAPES. Florianópolis, Santa Catarina-Brasil. E-mail: [email protected].


LINEBAUGH, Peter; REDIKER, Marcus. A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico Revolucionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 440p. Resenha de: MELO, Sabrina Fernandes. Outros Tempos, São Luís, v.8, n.12, p.269-274, 2011. Acessar publicação original. [IF].

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