A norma brasileira em construção: a vez das classes populares | LaborHistórico | 2015

A revista LaborHistórico apresenta, neste segundo número, o dossiê temático A norma brasileira em construção: a vez das classes populares, que reúne distintos estudos feitos a partir de um material homogêneo e bastante representativo do português popular brasileiro da primeira metade do século XX.

A documentação, analisada em quatro estudos individuais, é constituída por 96 cartas de amor escritas por um casal de noivos, Jayme e Maria1, residentes no estado do Rio de Janeiro nos anos de 1936 e 1937. Trata-se de um material ímpar e de grande relevância para a sociolinguística histórica do português do Brasil por ser constituído de manuscritos pessoais do início do século passado que refletem o discurso de indivíduos comuns em sua vida cotidiana. Da noiva, dispomos de 29 cartas escritas, em sua maioria, na cidade de Petrópolis. Do noivo há 68 cartas remetidas da cidade do Rio de Janeiro, sendo duas dessas missivas, poemas.

Como se sabe, a busca incessante de documentos que revelem os usos linguísticos de sincronias passadas não é uma tarefa simples aos pesquisadores de linguística histórica que procuram reconstruir a história da língua portuguesa no Brasil. Nos arquivos públicos nos deparamos, geralmente, com a produção escrita de pessoas ilustres que pertenciam ao topo da pirâmide social. São em geral presidentes, políticos, poetas, médicos, engenheiros etc. Os arquivos e bibliotecas públicas guardam a documentação dessas pessoas ilustres que tiveram algum destaque ou influência em sua época. O problema é que a história social e, consequentemente, a história linguística de uma nação não se reduz a tais figuras. Como se pergunta Bertolt Brecht, em seu poema “Perguntas de um trabalhador que lê”: “Quem construiu Tebas, a cidade das sete portas? Nos livros estão nomes de reis; os reis carregaram pedras? (…) A grande Roma está cheia de arcos-do-triunfo: quem os erigiu? Quem eram aqueles que foram vencidos pelos césares?”

Nessa perspectiva, a descoberta desse material produzido por cidadãos comuns que viveram no primeiro quartel do século passado foi um achado inestimável. As cartas dentro dos seus respectivos envelopes não constam de um acervo institucional, mas foram doadas por um aluno de graduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro que as encontrou no lixo. Por pura sorte, estamos diante de um material representativo do português popular brasileiro escrito.

Apesar das diversas visitas feitas a cartórios, ao endereço que constava dos envelopes e aos arquivos históricos, não foi possível obter informações sobre os autores dessas missivas. A descrição das características sociais dos remetentes está respaldada na própria documentação, a partir da análise da estrutura das cartas, do seu conteúdo temático, das propriedades da escrita referentes à grafia e da organização do próprio texto. É de fundamental importância ressaltar que este conjunto de cartas está disponível, no site do Projeto HistLing – Projeto de História da Língua Portuguesa (http:// www.letras.ufrj.br/laborhistorico), para outros pesquisadores interessados na história cotidiana do Rio de Janeiro em uma época de grandes mudanças sociais no Brasil. Apesar de não termos informações precisas sobre os autores das cartas, estamos permitindo o acesso à documentação de um homem e de uma mulher que pertenciam ao mesmo grupo etário, residiam em um grande centro urbano (Rio de Janeiro) e tinham nível sócio-cultural equivalente.

Nesse sentido, um destaque deste dossiê temático é justamente o fato de os estudos aqui reunidos apresentarem evidências linguísticas que permitem a caracterização do perfil social dos dois missivistas desconhecidos do início do século XX. As análises dos fenômenos linguísticos adotam uma única direção: caracterizar o maior ou menor grau de letramento dos missivistas a partir de análises grafofonéticas. Como mostram os artigos que compõem este número, as cartas desses cidadãos residentes no Rio de Janeiro entremostram domínios de escrita diferenciados. A noiva, como será mostrado nas análises, era uma moça com cultura mediana, nos termos de Barbosa (2005), pois sabia ler e escrever, mas tinha pouco domínio das regras de escrita. As cartas de Maria são uma fonte preciosa para o conhecimento da norma popular do português brasileiro da primeira metade do século XX. As cartas de Jayme, por outro lado, demonstram que o missivista tinha um grau de letramento um pouco maior que a noiva. Não se tratava de um informante completamente escolarizado por também apresentar certos desvios de grafia e marcas de oralidade em seu texto, mas certamente teve mais acesso aos bancos escolares que sua noiva.

A partir da leitura dessas cartas o leitor poderá conhecer um pouco mais sobre certos traços afetivos de comportamento nas relações amorosas do início do século passado. Descortinando a história da vida privada desse casal de noivos, o leitor conhecerá um pouco melhor a história das relações sociais, a história urbana e a vida cotidiana do subúrbio da cidade do Rio de Janeiro em uma época de grandes transformações no cenário carioca novecentista.

O trabalho introdutório (Cartas amorosas de 1930: um casal não-ilustre do Rio de Janeiro), de Érica Nascimento Silva, oferece uma breve descrição do perfil sociolinguístico dos missivistas. Emilio Gozze Pagotto explora, em seu texto (O amor em fragmentos: intertexto nas cartas de amor suburbano nos anos 30), algumas relações intertextuais nas cartas de amor, proporcionando uma leitura das missivas à luz da canção popular brasileira, especialmente aquela produzida no período em que as cartas foram escritas. O estudo de Fabiane de Mello Vianna da Rocha (Variação das vogais pretônicas em cartas de um casal não-ilustre de 1930) observa a variação existente na representação grafemática das vogais pretônicas anteriores e posteriores. O objetivo é procurar indicar o grau de contato dos dois missivistas com modelos de escrita a partir de marcas de fala em suas missivas e/ou a insegurança sobre os padrões ortográficos da época. Por fim, Karilene da Silva Xavier (O grau de letramento de um casal carioca: uma análise da grafia <r>) também procura traçar o grau de letramento dos dois missivistas a partir da análise dos desvios da grafia do <r> nas cartas de amor estudadas. Com base nos desvios grafemáticos relacionados ao <r> encontrados, a autora procura caracterizar a diferença entre o casal fundamentando-se em uma análise de natureza filológica. Considera ainda a influência dos resultados traçados em uma perspectiva sociolinguística.

Além do dossiê temático, o segundo número da revista LaborHistórico também conta com sete artigos inéditos sobre temas relacionados à linguística histórica. Os cinco primeiros artigos tratam de distintos aspectos de natureza morfossintática. No primeiro texto, Topics, Subjects and Grammatical Change: from Classical to Modern European Portuguese, Silvia Regina de Oliveira Cavalcante, Charlotte Galves e Maria Clara Paixão de Sousa apresentam uma análise diacrônica, do português clássico ao português europeu moderno, para a sintaxe dos sujeitos em português através da comparação de três construções diferentes (ativas, passivas e construções com se), relacionando a mudança na posição dos sujeitos à perda da ordem V2. Carolina Salgado Lacerda Medeiros (Ordem V2 no português arcaico: revisitando a problemática da periodização) revisa as principais análises sobre a sintaxe do verbo no período arcaico do português, relacionando o debate teórico acerca do tema com a questão da periodização da língua. O estudo de Xavier Frias Conde (A concordância verbal em ibero-românico) trata de casos específicos de concordância estabelecidos entre o predicado verbal e o objeto em línguas ibero-românicas. Em O século XIX e sua crise de identidade: PB ou PE? Uma questão de competição de gramáticas, Elaine Alves Santos Melo discute, com base em uma perspectiva formal, se as construções com se, assim como a colocação pronominal, podem ser tomadas como evidências de que o século XX seria um período de competição de gramáticas na escrita de brasileiros. Em uma perspectiva sociolinguística, Carla da Silva Nunes (Estudo diacrônico da colocação pronominal em complexos verbais na escrita do PB e do PE – séculos XIX e XX) trata da colocação do clítico se em complexos verbais no português brasileiro e no português europeu, com base na análise de textos da modalidade escrita (editoriais, notícias e anúncios) produzidos nos séculos XIX e XX. Na área da pragmática histórica, em Quão cortês é você? O pronome de tratamento você em Português Europeu, Ana Rita Bruno Guilherme e Víctor Lara Bermejo propõem uma discussão sobre a carga pragmática de cortesia assumida pelo pronome você em Português Europeu, ao longo do século XX. O último artigo contempla a interface morfologia-semântica. Em Aspectos diacrônicos nos estudos sufixais, Érica Santos Soares de Freitas apresenta, a partir da análise do sufixo – mentum latino e seus derivados em distintas línguas românicas, a metodologia de pesquisa empregada para estudos diacrônicos sobre sufixos, de acordo com os métodos criados no Grupo de Morfologia Histórica do Português (GMHP) e no Núcleo de Apoio à Pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa (NEHiLP), liderados pelo professor Dr. Mário Eduardo Viaro e sediados na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP).

Por fim, trazemos, também, na seção Didáticos, um artigo de Célia Regina dos Santos Lopes, intitulado Tópicos de história do português pelo viés da gramaticalização. Tendo como público-alvo sobretudo alunos da graduação em Letras e áreas afins, o objetivo do texto é discutir, de forma didática, os conceitos básicos do fenômeno da gramaticalização, aplicando-os a fenômenos de mudança na história do português.

Esperamos que este número da revista LaborHistórico possa (des)cobrir possíveis lacunas nos temas aqui tratados e fomentar o debate na área da linguística histórica.

Nota

1 Em alguns estudos, os autores fazem referência a ambos pelas iniciais de seus nomes. O noivo é identificado por JOS e a noiva MRC.


Organizadores

Leonardo Lennertz Marcotulio

Célia Regina dos Santos Lopes

Valéria Severina Gomes


Referências desta apresentação

MARCOTULIO, Leonardo Lennertz; LOPES, Célia Regina dos Santos; GOMES, Valéria Severina. Apresentação. LaborHistórico. Rio de Janeiro, v.1, n.2, p. 10-12, jul./ dez. 2015. Acessar publicação original [DR]

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