A religião vai à escola pública | Ciências da Religião | 2015

Em 2015, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Roberto Barroso convocou uma audiência pública para discutir o ensino religioso em escolas públicas. Com isso, ele pretendia amparar o parecer que emitiria a respeito da ação direta de inconstitucionalidade (ADI) n. 4.439 pro‑ posta em 2010 pela então vice‑procuradora da República Debora Duprat, visando ao reconhecimento da natureza não confessional do ensino religioso. De acordo com a petição inicial da Procuradoria‑Geral da República (PGR), o ensino religioso deve ser garantido conforme o disposto no artigo 33, parágrafos 1º e 2º, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LBD – Lei n. 9.394/96), e no artigo 11 do anexo do Decreto n. 7.107/2010 (que estabeleceu acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé1 ); não pode, contudo, ser vinculado a uma religião específica, de‑ vendo ser “histórico e doutrinário, com a exposição neutra de todas as principais religiões”.

Tal audiência expôs os termos atuais da controvérsia a respeito do ensino religioso2 ao acentuar o dilema entre dois ideais, a liberdade de expressão religiosa dos cidadãos e a laicidade do Estado. Explícitos assim os termos da discussão sobre escola e religião no Brasil, o debate tomou novas dimensões e urgência, o que nos levou a propor uma breve reflexão sobre o tema, trazendo aos leitores da revista Ciências da Religião: história e sociedade uma tríade de textos produzidos em diálogo com aportes teórico‑metodológicos das Ciências Sociais e que, em comum, têm como tema a participação da religião na conformação de práticas educativas.

Em “Formação de professores para o ensino de religião nas escolas: dilemas e perspectivas”, Elisa Rodrigues nos faz notar que, embora já se disponha de regulamentação para o ensino religioso, inexistem diretrizes nacionais fixadas pelo Ministério da Educação que orientem as práticas pedagógicas relativas a essa disciplina. Em termos práticos, isso resulta em barreiras e dificuldades para a plena oferta desse componente curricular obrigatório ao ensino fundamental, de matrícula facultativa para alunos e alunas. Na tentativa de oferecer subsídios para a consolidação da disciplina, organizações tais como o Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (Fonaper), a Associação Inter‑Religiosa de Educação (Assintec) e o Grupo de Pesquisa Educação e Religião (Gper) têm fomentado discussões sobre o tema, assumindo, assim, lugar proeminente na formulação de modelos para o ensino religioso no contexto brasileiro.

Rodrigues oferece ao leitor uma sofisticada análise acerca desses modelos, inquirindo sobre as questões epistemológicas subjacentes às orientações teóricas e metodológicas presentes nos documentos e nas capacitações voltados ao ensino religioso. O artigo de Rodrigues retraça, pois, alguns dos caminhos que vêm sendo trilhados, não sem percalços, por agentes interessados em defender a garantia da oferta do ensino religioso como disciplina de caráter não proselitista – ou seja, em termos consoantes ao espírito da ADI que a PGR apresentou ao STF.

Janayna de Alencar Lui, por sua vez, em “Religião na escola laica: ainda o ensino religioso em debate”, analisa a implementação do ensino religioso confessional nas escolas públicas do Rio de Janeiro. Acompanhando os desacordos em torno da realização de concursos públicos para contratação de docentes para a disciplina de ensino religioso, as denúncias de casos de intolerância religiosa que afetam, sobretudo, discentes que se declaram ateus, agnósticos, candomblecistas ou um‑ bandistas e a propagação de relatos sobre práticas pedagógicas não condizentes com o ensino não proselitista, Lui reconstitui de modo instigante a polarização do debate público, que opôs educadores, religiosos e líderes laicos favoráveis e contrários à presença de religiões no espaço escolar, demonstrando o quão complexa – e muitas vezes tensa – é a situação de quem busca realizar a “exposição neutra de todas as principais religiões”.

Concordando com Rodrigues, Lui destaca que compreender essas tensões requer ter em conta o cenário de indeterminações sobre a prática do ensino religioso e que é preciso também ter em mente – e este é o ponto central de seu artigo – a dinâmica própria do campo religioso brasileiro e suas relações de força. Afinal, a religião vai à escola não apenas como objeto de conhecimento, mas também (e sobretudo, talvez) como esquema de percepção e apreciação do mundo, aciona‑ do, portanto, não apenas em espaços e situações marcadamente religiosos, mas, sim, em meio às mais diversas experiências e relações. Analisar a polêmica em torno da institucionalização da religião como disciplina escolar, seja como conteúdo específico das aulas de ensino religioso, seja como tema abordado de modo transversal, é, nesse sentido, apenas uma das tarefas a serem enfrentadas por nós, pesquisadores; outra diz respeito aos modos como elementos religiosos promovem a seleção de conteúdo, produzindo inflexões sobre os processos de aprendizagem e ensino, quer relativos ao ensino religioso, quer não.

Este último desafio é encampado por Adriane Knoblauch no artigo intitulado “Formação docente e religião”. A autora nos apresenta os resultados parciais de uma investigação interessada em compreender a interface entre a formação de professores que atuarão na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental e os diferentes vínculos religiosos das alunas entrevistadas. As respostas a uma série de situações hipotéticas, imagens e textos que foram apresentados às entrevistadas são aqui exploradas de modo a revelar como os vínculos religiosos colaboram para a seleção e o ordenamento de conteúdos acadêmicos, trazendo pistas interessantes para nossa reflexão sobre como convicções religiosas são colocadas em ação e sobre as diferentes portas de entrada da religião no universo escolar.

Uma das vias de acesso a essas elaborações é a discussão a respeito das relações de gênero; outra, o debate em torno da rotina escolar, mais especificamente em torno das festas de caráter religioso e de atividades tais como orações, as quais organizam o tempo e a experiência escolar. A desnaturalização das relações de gênero e da rotina escolar é assumida por Knoblauch como uma operação relacionada a um pensamento reflexivo, associado à capacidade de ampliar repertórios, de relativizar visões de mundo. Os dados da pesquisa apontam, de modo bastante original, que essas operações são multivariadas, cheias de nuances: são inúmeras as possibilidades de conjugação das doutrinas religiosas com perspectivas não religiosas, decorrentes da caleidoscópica combinação de experiências religiosas e educativas, entre tantos outros elementos formadores do habitus dessas futuras professoras.

Antevê‑se que as posições que defendem ou rejeitam o proselitismo religioso não derivam, portanto, de um “pacote fechado”, mas resultam, antes, do engajamento dos agentes em situações práticas que lhes permitem mobilizar elementos de um repertório vasto e díspar e, portanto, sempre suscetível de novas recombinações. Não é possível, portanto, predeterminar o grau e o sentido da refração religiosa sobre o processo de formação docente e, por extensão, sobre as práticas educativas, ainda que seja inevitável reconhecer a existência de conexões entre vínculos religiosos e processos de ensino e aprendizagem.

Rodrigues, Lui e Knoblauch exploram, assim, diferentes facetas da presença pública das religiões em ambientes educacionais laicos, sejam eles as carteiras das escolas de ensino fundamental ou os bancos de uma universidade pública federal. Ao mapearem atores, discursos e práticas constituintes desse universo, esses artigos certamente contribuem para a ampliação de nossa compreensão acerca das relações entre religião e espaço público.

A todos uma boa leitura!

Notas

1 Os termos da concordata começaram a ser definidos ainda em 2007, durante a visita do papa Bento XVI ao Brasil, sendo firmados ao final de 2008. Em agosto de 2009, o texto do acordo foi homologado pela Câmara dos Deputados (Decreto Legislativo n. 1.736) e, logo em seguida, aprovado pelo Senado. Em fevereiro de 2010, o acordo foi promulgado.

2 Parcela expressiva da bibliografia dedicada à compreensão de diferentes elementos lançados nesse debate ao longo dos últimos anos encontra‑se relacionada na página virtual do Observatório da Laicidade na Educação, na aba biblioteca (), tornando ociosa sua reprodução neste espaço. São dissertações e teses rastreadas nas áreas de Antropologia, Ciência Política, Ciências da Religião, Ciências Sociais, Direito, Educação, História e Teologia que, em conjunto, exploram os meandros das relações entre religião e ensino no contexto brasileiro.


Organizadora

Eva L. Scheliga – Universidade Federal do Paraná (UFPR).


Referências desta apresentação

SCHELIGA, Eva L. Apresentação. Ciências da Religião – História e Sociedade. São Paulo, v. 13, n. 2, p. 14-18, jul./dez. 2015. Acessar publicação original [DR]

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