A transfiguração do político: a tribalização do mundo | Michel Maffesoli

Na obra A transfiguração do político: a tribalização do mundo, Michel Maffesoli se propõe a demonstrar que passou o tempo da política, a qual por não estar mais capacitada para enfrentar os desafios do momento, tornou-se objeto de desconfiança geral. A política perdeu a força de atração porque as pessoas não querem mais adiar o gozo, numa espera messiânica do paraíso celeste ou da ação urdida para um amanhã que canta, ou outras formas de sociedades futuras reformadas, revolucionadas ou mudadas. Somente o presente vivido aqui e agora com outros importa.

O autor nos diz que, ao longo da História humana, sempre existiu uma força imaterial, imaginal que deu sustentação ao político. Há sempre na origem de qualquer coletividade uma idéia fundadora: mito, história racional, fato legendário, pouco importa, tal idéia serve de substrato à dominação legítima do Estado. O político é uma instância, que, na sua acepção mais forte, determina a vida social, limita-a, constrange-a e permite-lhe existir. Se referindo à servidão voluntária, o autor afirma que existe uma curiosa pulsão que força a submissão a outro, a aceitar chefes, um efeito de estrutura ou lei natural inexorável que incita a dobrar a espinha e a aceitar de alguém ou alguns a lei: o bem, o verdadeiro, o desejável e o contrário disso tudo. Quando reina absoluto (o que nem sempre acontece), a coerção é a marca do político. Qualquer que seja o nome com o qual se condecora, o detentor do poder cristaliza a energia interna da comunidade, mobiliza a força imaginal que a constitui como tal e assegura o bom equilíbrio entre esta e o meio circundante, tanto social quanto natural. Portanto, todo poder, que tem sua origem legitimada por uma espécie de contrato, de consentimento, pode até mesmo impor a coerção, mas se trata aí, paradoxalmente, de coerção consentida. Para que a coerção política possa funcionar, deve-se aceitar a evidência de sua autoridade moral, deve-se, de certa maneira, ter fé nela. Ou seja, qualquer imposição repousa sobre uma forma de aceitação. Um regime político sobreviverá enquanto corresponder às aspirações da base.

O problema é que, na atualidade, parece ter se rompido este pacto que deu sustentação ao político ao longo da modernidade. Por diversas formas, nesse período, o político se baseou na razão monovalente, numa visão linear e progressista e, portanto, teleológica da história que não comporta a pluralidade da vida social, que é a sua base. Esse modelo inspirado num jacobinismo matricial, centralizador, de sentido único, tem desembocado em várias formas de totalitarismos brutais e repressores da diversidade social. Antes do triunfo do imaginário totalitário, cuja transcrição política é o Estado-nação, prevalecia o equilíbrio conflitual, numa realidade de múltiplas facetas. A pluralidade e a diferença são necessárias para a existência de uma sociedade sadia. Quando a unidade quer atingir a perfeição, negando as diversidades e pluralidades de gostos e interesses, o conjunto social acaba se degradando e caindo na intolerância. Por querer reduzir a diversidade, e se inspirar sobre o fantasma do Uno, esquece-se, para o pior, que a vida não se deixa encerrar, mas repousa essencialmente sobre o pluralismo.

Todos os governantes, todos os regimes políticos são obcecados por tudo abstrair e a tudo racionalizar, administração racional, etc. Esquecem-se que as paixões desempenham um papel importante na luta política. Assim, a coisa pública assume um caráter de exterioridade e com isso se afasta da vida que flui, que não segue necessariamente os cânones da razão. Quando se torna negócio de especialistas: tiranos, burocratas, tecnocratas, a vida pública transforma-se numa entidade abstrata, negócio dos outros, negócio alheio do qual não há razão para se ocupar. De maneira estóica, poder-se-ia dizer que o longínquo, o macroscópico, o instituído, tudo aquilo que escapa à minha ação, torna-se indiferente. A força imaginal em ação na vida social pode aceitar (e mesmo se reconhecer na) a libido dominandi de um só, de uma casta ou de uma classe; mas pode também se diluir no corpo ou nos menores corpos sociais e, dessa forma libertar-se de todos os procedimentos de delegação e de representação, característicos da modernidade. Estabelece-se, dessa maneira, um conflito que será a base da ruptura entre o poder e a sociedade. Tal conflito nem sempre se expressa na forma de revolução, terrorismo, fanatismo ou outros tipos de violência aberta contra o poder estabelecido, mas pode assumir várias características: indiferença para com a coisa pública, astúcia, ironia, inércia, derrisão, resistência silenciosa, abstenção, brincadeira escancarada, inversão carnavalesca, etc. São formas de viver as pequenas utopias intersticiais, que manifestam o instinto de conservação do grupo.

Por mais de dois séculos de modernidade, valorizamos a ação capitalizada pelos sistemas políticos que se basearam na administração racional de tudo e de todos. Entretanto, Maffesoli vê na atualidade o surgimento de um movimento subterrâneo baseado na não-ação, em que o político cede lugar à contemplação, numa espécie de orientalização do mundo, um certo tempo social mais descontraído, que deixa correr as coisas e permite também a cada um ser a si mesmo. Trata-se menos de agir sobre o mundo e mais de aceitá-lo pelo que ele é. O fim e o sentido não seriam mais procurados numa utopia exterior, ao contrário, seriam encontrados aqui e agora. Assim, prossegue o autor, os representantes das instituições ficam satisfeitos quando a desobediência não é espetacular, mas o consentimento é um desprezo discreto à opressão e dinamita um elemento central da sustentação do poder através dos tempos, a fascinação. Nenhum regime resiste muito tempo aos efeitos do distanciamento interior induzidos pelo desprezo. Esse distanciamento interior pode explodir em levantes incontroláveis ou exprimir-se através da desafeição em relação à coisa pública. É o que está acontecendo com os regimes democráticos, uma reação orgânica do corpo social que não se reconhece mais nos seus representantes e busca um novo equilíbrio capaz de traduzi-lo melhor.

Maffesoli diz que a implosão do político está ligada à saturação da lógica de identidade, que metaforicamente chama de patriarcado, pivô da modernidade. Se o sujeito está fragilizado, o contrato estabelecido entre ele e outros sujeitos históricos também está. Tal contrato repousava essencialmente sobre as associações desejadas racionalmente organizadas de identidades tipificadas: sexuais, profissionais, classes, camadas, categorias sócio-profissionais, ideológicas, religiosas, filosóficas e políticas. O poder construiu-se e reforçou-se na gestão e na regulação de tal organização. Mas esse sistema está cedendo lugar a uma lógica, mais mole, da identificação, que ele chama de matriarcado, o qual conota um estado civilizacional mais frouxo, diverso, estilhaçado, mais próximo da vida em suas diversas potencialidades. Para o autor, está surgindo uma nova ordem na qual a fusão das emoções comuns está sucedendo à distinção das representações separadas. Nesse novo ciclo, as representações não se baseiam em convicções racionais, mas sobre a fascinação e a contaminação. Elas exercem uma forma de osmose, de autodifusão que não utiliza os canais tradicionalmente definidos pelo racionalismo ocidental. É assim que ele interpreta os diversos fanatismos religiosos, os movimentos de massa, o desabamento dos sistemas ideológicos mas rígidos, a queda dos regimes políticos e das ditaduras aparentemente muito sólidas, todos resultantes da pressão irresistível de um nós fusional cujo cimento é feito de idéias comuns que contaminam, um a um, multidões cada vez maiores. A saturação do político destaca uma nova forma de socialidade, que não tem objetivos precisos. Não é dramático como a política que repousa na busca de soluções, mas funciona como um sentimento trágico, para o qual pouco importa o objetivo a atingir, a finalidade, somente tendo sentido o momento oportuno partilhado aqui e agora. Sua especificidade é o presenteísmo, que basta a si mesmo, não se projeta no futuro. Vive-se uma estética, entendida como o experimentar emoções, sentimentos, paixões comuns, nos mais diversos domínios da vida social.

A nova ordem é involutiva e encontra seu equilíbrio menos na ação prometéica do que numa paixão/compaixão para com o outro de forma natural. Ao êxtase revolucionário ou político que pretendia se apropriar do mundo, está sucedendo o êxtase doméstico, satisfeito em possuir com outros um momento e um lugar bem delimitados. Suspensão do tempo. É o presenteísmo que permite compreender a transfiguração do político. O instante, a oportunidade e o momento vivido representam a alternativa absoluta à filosofia da história, ou do progresso, lentamente elaborada ao longo da modernidade. Além disso, há uma tendência de refluxo do individualismo que caracterizou a modernidade. Trata-se de um estar junto grupal que privilegia o todo em relação aos seus diversos componentes. O indivíduo é mais agido do que ator, no lugar do “eu penso” surge o “eu sou pensado”. Acaba a distinção sujeito-objeto, vive-se numa ambiência objetal, na qual o indivíduo não é mais o eu todo poderoso, mas um objeto entre outros, intercambiável á vontade, que comunga com o outro e cede lugar a um nós arcaico, realidade pré-individual. Ainda que ocorra confronto entre eles, o eu não passa de um momento de elaboração do nós, perde-se no nós e obtém novas forças. Surge uma nova ordem confusional, imaginativa, orgânica, exemplificada nessas pequenas tribos afetuais das megalópoles, nos movimentos étnicos e religiosos.

Estamos diante de uma obra instigante, que faz uma discussão, no mínimo, bastante original sobre a política, particularmente no que se refere à decadência da vida pública. A grandeza do texto de Maffesoli está em nos fazer pensar essa problemática fora dos cânones tradicionais, em que o desinteresse do povo pela política sempre foi visto como expressão de ignorância, desinformação, apatia, etc. e nunca como sintoma de uma ordem subterrânea que, em silêncio, por intermédio da astúcia, da indiferença, da ironia e da inércia estaria solapando as bases sobre as quais os sistemas políticos têm se apoiado ao longo da modernidade. Além disso, a obra nos alerta para o fato de que, quando o político nega as paixões, esquecendo-se de que o irracional é um autor legítimo da história, acaba sucumbindo aos seus golpes. Assim, o povo se distancia da política porque ela sempre se baseou num projeto, numa visão teleológica da história, de sentido único, e, portanto, totalitária, que entra em contradição com a diversidade da vida em sociedade que não se deixa encerrar numa via reta.

Mas, paradoxalmente, o problema com a tese de Maffesoli parece residir naquilo que constitui a sua própria originalidade. Em primeiro lugar, ao discutir a transfiguração do político, o autor se apressa em decretar a morte da política. Não cabe nas dimensões desta resenha fazer uma discussão relativa às sentenças judiciosas sobre o fim das ideologias, o fim da história, etc., mas nunca é demais lembrar que todas caíram em retumbante fracasso. Talvez fosse melhor dizer que a transfiguração do político denota novas maneiras de exercer a atividade da polis e não propriamente o seu fim. Desde a antigüidade grega que o ser político, o viver numa polis, tem significado que, na sociedade humana, tudo é decidido mediante a palavra e a persuasão, e não através da força e da violência, ou seja, um modo de vida em que o discurso e somente o discurso tem sentido. Foi isto que, segundo Hannah Arendt, possibilitou a Aristóteles definir o homem não somente como político, mas também como um ser dotado de fala. Se aceitarmos tal premissa, então fica difícil imaginar algum tipo de comunidade em que essas faculdades não estejam presentes. O próprio autor afirma que, na origem de toda coletividade, estabelece-se uma espécie de pacto original, onde uma força imaginal cimenta a ligação da comunidade com o poder ou o líder político. E somente quando o regime político se distancia da base, quebra-se o pacto (ou o encanto), e o povo se afasta, tornando-se indiferente à vida pública. A pergunta a se fazer é porque que esse pacto sempre recorrente ao longo da história estaria, nesse momento, rompendo-se para sempre? Não seria mais possível novos pactos, ainda que sobre outras bases?

Concordamos com Maffesoli sobre o fato de que as lutas e os conflitos recentes já não têm mais conteúdos reivindicativos precisos. A democracia e a liberdade são emoções demasiado vagas para constituírem objetos reais de conflitos. Porém, o difícil é aceitar as pequenas utopias intersticiais, que ele aponta como forma de resistências eficientes aos regimes estabelecidos. Estas se manifestam através da abstenção, da astúcia, da ironia, da inversão carnavalesca, do distanciamento, da inércia e do exílio interior. Segundo o autor, tais comportamentos não seriam meras passividades frente ao poder político, mas a expressão de um movimento subterrâneo baseado na não-ação, em que o político cede lugar à contemplação, numa espécie de orientalização do mundo, um tempo social mais descontraído, que deixa as coisas correrem. Ainda que seja compreensível que a indiferença, o distanciamento e o desprezo possam, a longo prazo, minar a legitimidade de qualquer regime político, a curto e médio prazo, tais atitudes só podem ser prejudiciais ao próprio povo e benéficas para os políticos inescrupulosos, que assim podem se sentir bastante à vontade para utilizar o poder público em proveito próprio. Nesse sentido, não conseguimos ver nenhuma grandeza nessa prática política do avestruz por parte do cidadão comum, que mesmo sentindo na própria carne os abusos do poder, prefere combatê-lo com ironia, indiferença, derrisão ou a inércia. A nosso ver, trata-se mais de um tipo de conformismo, muito bem vindo para os regimes estabelecidos, do que uma forma de combate eficiente, no sentido de propiciar alguma forma de liberdade e conforto aos menos favorecidos.

Por fim, Maffesoli aponta como uma característica fundante da nova ordem que vê surgindo uma tendência para a vida em comunidade, em grupos. Os indivíduos estariam propensos a se integrar num todo orgânico, num nós fusional, sem objetivos preestabelecidos, sem preocupação com o futuro, sem projetos políticos, sem a pretensão de adiar o gozo, mas preocupados tão somente em viver o presente, o aqui e agora, compartilhando sentimentos, pequenos prazeres da vida na companhia de outros. Nada contra as afabilidades da vida em pequenas comunidades ou grupos, mas parece não ser bem esse o mundo em que vivemos. Pelo menos não existe consenso a respeito dessa tendência para a vida em comunidade apontada pelo autor. Há muito tempo que se discute que o individualismo seria o comportamento característico do homem contemporâneo. Maffesoli não vê no ato de deleitar-se sobre si mesmo uma forma de narcisismo, porém unicamente uma maneira de encontrar equilíbrio, não no longínquo, numa hipotética sociedade perfeita, mas no aqui e agora, no presente. Contudo, Richard Sennett em sua obra o declínio do homem público, pensa diferente. Para ele, passamos a viver numa sociedade intimista, voltada para dentro de si mesma, guiada pelo código do narcisismo, o qual faz com que as pessoas se preocupem mais com a descoberta do seu próprio eu do que com qualquer outra coisa. Nessa sociedade, não temos mais interesse na vida pública porque as relações impessoais não nos dão prazer ou gratificação psicológica. Não temos a pretensão nem espaço para desenvolver essa questão nesta resenha. Citamos Sennett apenas para mostrar que se trata de um tema controvertido, e não há razão para acreditarmos que Maffesoli tenha sido convincente na sua tentativa de demonstrar que vivemos numa sociedade propensa para a vida em comunidade. Argumentar que as tribos urbanas, fanatismos religiosos e nacionalismos étnicos seriam sinais de tal tendência é muito pouco porque tais grupos ou comportamentos políticos já possuem uma longa história.

Referências

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981.

SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Cia. das Letras, 1988.


Resenhista

Luiz Miguel do Nascimento – Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá.


Referências desta Resenha

MAFFESOLI, Michel. A transfiguração do político: a tribalização do mundo. Porto Alegre: Sulina, 1997. Resenha de: NASCIMENTO, Luiz Miguel do. Diálogos. Maringá, v.3, n.1, 349-354, 1999. Acessar publicação original [DR]

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