África: saberes, pesquisas e aprendizagens | Crítica Histórica | 2021

African roots. Dahomey amazonen África
African roots. Dahomey amazonen | Imagem: DW

É com muita alegria que apresentamos aos leitores o presente Dossiê dedicado às Histórias das Áfricas, inspiradas na desconstrução de narrativas pautadas no que a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie definiu como o “perigo de uma história única”. As pesquisas históricas sobre o continente africano vêm crescendo de forma significativa nas últimas décadas. Muitas dessas novas abordagens derivam de novas propostas metodológicas, da formação de professores especialistas e da implementação da Lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino das Histórias africanas. Acreditamos que compreender a pluralidade do continente africano e suas representações seja fundamental para entendermos os processos de formação de nossas identidades e que essas análises podem contribuir na construção de uma educação antirracista.

O presente dossiê reúne sete artigos inéditos sobre estudos africanos tendo como recorte os séculos XVIII, XIX e XX. Trata-se de textos que refletem sobre as representações produzidas acerca do continente africano e sobre a imprensa angolana, como os textos de Anderson Oliva, Washington Nascimento e Eduardo Estevam, mas que também apresentam reflexões sobre a aplicabilidade desses temas em salas de aula da educação básica, como indica o artigo de Amanda Palomo Alves. Os textos do dossiê também evidenciam o protagonismo dos africanos em suas complexas relações com os portugueses nos séculos XVIII e XIX, como demonstram os artigos de Mariza Soares e Ariane Carvalho Cruz. Ainda considerando a presença portuguesa em Angola, o texto de Juliana Abrahão lança luz à figura dos degredados que estavam na região e realizaram uma conjuração no ano de 1763. O dossiê também traz uma resenha de Rogéria Cristina Alves sobre o livro “Independência Africana: como a África Contemporânea redefiniu o mundo”, de Tukufu Zuberi, publicado em 2021.

No artigo “O lugar do rei no comércio de escravos: Portugal, Daomé e Porto Novo em 1810”, a professora Mariza Soares trata das relações diplomáticas entre os reinos africanos de Ardra e Daomé com Portugal entre os anos de 1810 e 1812. A autora utiliza a correspondência trocada entre esses monarcas em razão de duas embaixadas enviadas ao Brasil em 1810 com o objetivo de negociar as condições do tráfico de pessoas escravizadas dos portos de Ajudá (Daomé) e Porto Novo (Ardra/Hogbonu) para o Brasil. A partir dessa troca de cartas, é demonstrado o protagonismo dos agentes africanos no debate sobre a extinção ou continuidade do tráfico depois da assinatura do Tratado de Aliança e Amizade entre Portugal e Inglaterra (1810) que determinava a progressiva extinção do tráfico atlântico. Mariza Soares evidencia que, para além dos fatores econômicos, as relações comerciais foram pautadas pelas relações de poder. A partir delas é que a negociação comercial se realizava, o que mostra o uso do poder como instrumento de pressão para garantir acordos comerciais favoráveis. A correspondência dos monarcas do Daomé e Ardra com dom João indica uma face pouco conhecida das relações comerciais do período joanino, mostrando a importância da diplomacia entre Portugal e o reinos africanos no tráfico de escravos.

O artigo “Protagonistas das batalhas: a guerra preta de Angola”, de Ariane Carvalho Cruz analisa a guerra preta, o maior contingente presente nas campanhas militares em Angola do século XVIII. A autora demonstra como a importância desta tropa é confirmada pela historiografia especializada, evidenciando a necessidade de reconhecimento das forças locais africanas e o estabelecimento de alianças políticas para sucesso das campanhas. Mesmo nas guerras de iniciativa portuguesa, a guerra preta foi o elemento demográfico principal das fileiras militares, o que fez prevalecer os costumes bélicos locais. Sem tais grupos, seria impossível aos poderes lusos formar tropas e fazer guerras. Considerando a centralidade desta tropa, Ariane Cruz demonstra os elementos que compunham a guerra preta, bem como seus títulos políticos, suas hierarquias, os discursos, e as memórias sobre esta força militar.

No artigo “A conjuração dos degredados em Angola, 1763”, Juliana Abrahão aborda a atuação política dos degredados que participaram da Conjuração dos Degredados, ocorrida em 1763, em Angola. Utilizando documentos avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino e a obra do cronista militar Elias Alexandre da Silva Corrêa, a autora revela as razões da conjuração e como ela ocorreu, indicando os insurgentes, suas condenações pregressas e as que ocorreram após a conjuração. Ademais, Abrahão discute as possíveis disparidades nas punições e o caráter exemplar das sentenças.

Anderson Oliva em seu artigo “Visões sobre a África: representações e estereótipos coloniais nas capas da revista Visão, Portugal (2006-2019)” analisa as representações sobre a África e os africanos nas capas das edições da revista portuguesa Visão, publicadas entre 2006 e 2019. Os resultados demonstrados identificam a existência de dois eixos discursivos hegemônicos. O primeiro associa a África às narrativas eurocêntricas e colonialistas. O segundo veicula referências racistas e estereotipadas. Esses discursos se reinscrevem no cotidiano das notícias e (re)produzem imagens negativas, estruturadas pelas representações coloniais, racistas e por novas fórmulas de subalternização e inferiorização do continente. Tal texto é uma continuidade da investigação anterior realizada em sua tese “Lições sobre a África. Diálogos entre as representações dos africanos no imaginário Ocidental e o ensino de História da África no Mundo Atlântico” defendida em 2007, na qual já havia mapeado os discursos de Visão sobre a África, mas para as edições publicadas entre 1993 e 2006.

O artigo “Vida social e economia dos Humbi do sudoeste angolano: aproximações a partir do padre Carlos Estermann”, de autoria de Washington Santos Nascimento, apresenta uma discussão sobre os aspectos da vida social e econômica dos Humbi, povos agropastoris, habitantes do Sudoeste de Angola a partir dos relatos do Padre Carlos Estermann, missionário da Congregação do Espírito Santo no contexto colonial português e seus estudos etnográficos sobre as sociedades que pretendia evangelizar. A partir da análise do segundo volume etnográfico escrito por Estermann, intitulado: Etnografia do sudoeste de Angola, de 1975, Nascimento revela que a catequização empreendida era atrelada aos parâmetros e moldes eurocêntricos colocados pelo poder colonial, obedecendo aos mecanismos de dominação e subalternidade à cultura dos brancos. Foi neste contexto de disputas, que Estermann produziu suas etnografias e narrou sobre os diversos aspectos das sociedades endógenas dos respectivos territórios. As memórias dos povos locais presentes em seus relatos, bem como as disputas em torno das diferentes narrativas que ele acaba por levar para seu texto, possibilitam uma aproximação a diferentes aspectos e vozes da história dos Humbi.

Eduardo Antonio Estevam Santos em seu artigo “História e historiografia da imprensa angolana oitocentista: notas teóricas e metodológicas” interpreta historicamente a produção de periódicos na segunda metade do século XIX, apresentando um balanço do estado da arte, as metodologias empregadas, as dinâmicas e particularidades desse tipo de imprensa. Ademais, analisa as circunstâncias do seu lugar de inserção, suas ligações com diferentes poderes, recepção e audiência no âmbito do sistema colonial português. Em linhas gerais, Santos nos revela que a imprensa oitocentista foi mais opinativa e ideológica (imprensa de opinião) do que de notícias. Ela foi, sobretudo, um fórum de discussão. A mudança do tom opinativo para o relato de notícias do cotidiano só teria ocorrido nas primeiras décadas do século XX.

O artigo “N’biri Birin” renasce: praticando a descolonização do currículo escolar a partir das canções do grupo “N’gola Ritmos” (1947-1959)”, de autoria de Amanda Palomo Alves, apresenta uma proposta de ressignificação de conteúdos relacionados ao colonialismo em Angola com base numa abordagem pedagógica decolonial e inovadora. Para tanto, a autora utiliza as chamadas “canções-lamento” do grupo musical angolano “N’gola Ritmos”. As canções, compostas e interpretadas na língua quimbundu, apresentam características importantes relacionadas à cultura nacional, como a tradição oral, e apontam, também, aspectos cruciais relacionados à violência do sistema colonial naquele país. A autora salienta que a proposta do artigo é indicar possibilidades em torno da descolonização do currículo escolar ao evidenciar o trabalho de investigação musical realizado pelo líder-fundador do conjunto, Liceu Vieira Dias, e ao iluminar o papel de músicos angolanos que, ao valorizarem a alteridade, naquele contexto específico da história, ousaram legitimar suas ações a partir de suas próprias visões de mundo. Para Amanda Alves, o trabalho com as canções do grupo “N’gola Ritmos” pode ser um caminho profícuo na promoção de uma reeducação das relações étnico-raciais no Brasil.

Além dos artigos inéditos supracitados, o presente dossiê também apresenta a resenha da professora Rogéria Cristina Alves, sobre o livro “Independência Africana: como a África Contemporânea redefiniu o mundo”, de Tukufu Zuberi, professor de Sociologia e Estudos Africanos da Universidade da Pensilvânia. Publicado em 2021, o livro apresenta um relato detalhado, do ponto de vista histórico, dos processos de independência dos países africanos. Segundo Alves, a pesquisa de Zuberi é baseada em relatos orais, entrevistas com líderes africanos e participantes destes movimentos. A riqueza de fontes históricas utilizadas pelo autor (relatos, entrevistas, bibliografias, fotos) também contribui para um importante debate atual: reforça a perspectiva metodológica dos trabalhos que tratam da História e que separam a escrita da História de narrativas ficcionais ou de opiniões somente.

Gostaríamos de agradecer muito aos autores que contribuíram para a organização deste dossiê, que se constitui como uma leitura inescapável para pessoas interessadas em ter contato com análises recentes, inéditas e que demonstram um refinado trabalho de pesquisa sobre os estudos africanos. Boa leitura!


Organizadores

Flávia Maria de Carvalho

Ingrid Silva de Oliveira Leite


Referências desta apresentação

CARVALHO, Flávia Maria de; LEITE, Ingrid Silva de Oliveira. Apresentação. Crítica Histórica. Maceió, v. 12, n. 24, p. 7-10, dez. 2021. Acessar publicação original [DR]

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