Afro-Américas | Revista Eletrônica da ANPHLAC | 2019

Os estudos sobre as experiências e contextos históricos que envolveram os povos de ascendência africana nas Américas constituem um campo de pesquisa potente desde a primeira metade do século XX. A crescente demanda tanto na academia quanto dos movimentos sociais por pesquisas e reflexões sobre a história de homens e mulheres afrodescendentes na Era das Emancipações e após a Abolição da escravidão, ao longo de todo o continente americano, nos impulsionou a propor esse dossiê. Nada mais apropriado que a coletânea de artigos aqui reunida fosse ofertada pela Revista Eletrônica da ANPHLAC, cujo objetivo é publicar estudos sobre a história e o ensino de história das Américas.

Embora os estudos sobre a escravização dos africanos e seus descendentes no Brasil, no Caribe e nos Estados Unidos tenham concretizado uma importante área de pesquisas historiográficas desde a década de 1960, apenas recentemente observamos uma ampliação das investigações sobre o impacto da racialização da escravidão negra e as consequentes relações raciais no Pós-Abolição nas Américas, sobretudo na América Latina. Nas últimas décadas, este campo vem se definindo como estudos afro-americanos ou, ainda, estudos afro-latinoamericanos.

George Reid Andrews e Alejandro de la Fuente definem o “dinâmico e crescente campo dos estudos afro-latino-americanos”, primeiramente como “o estudo dos povos de ascendência africana na América Latina”, abordagem na qual os pesquisadores estudam “histórias, culturas, estratégias e lutas do negro na região”. Segundo, como “o estudo das sociedades mais amplas das quais esses povos [de ascendência africana] fazem parte”, quando são abordadas questões sobre “negritude e raça de modo geral, como uma categoria de diferença, como motor de estratificação e desigualdade e como uma variável-chave nos processos de formação nacional.” (ANDREWS & DE LA FUENTE, 2018-a, p. 19). Ambos historiadores são membros do Afro-Latin American Research Institute (ALARI, Hutchins Center, Universidade de Harvard), o qual vêm incentivando a criação e ampliação do campo de estudos afro-latino-americanos, não apenas nos Estados Unidos.3

Em 2004, George Andrews lançou a obra América Afro-Latina: 1800-2000 (tradução publicada em 2007 no Brasil), na qual apresenta uma síntese comparativa da história dos afrodescendentes em diferentes regiões da América Latina, ao longo de duzentos anos. O historiador retoma o termo “América Afro-Latina” (em inglês, Afro-Latin America) e sua conceitualização dos trabalhos de dois intelectuais especialistas em questões raciais na América Latina, Anani Dzidzienyo (1978) e Pierre-Michel Fontaine (1980). A expressão foi utilizada por estes autores e retomada por Andrews para designar as regiões da América Latina onde são encontrados números significativos de “pessoas de conhecida ascendência africana”. Nessa definição, América Latina é entendida como o conjunto de nações americanas colonizadas e dominadas por Portugal e Espanha entre os séculos XVI e XIX. Andrews estabelece um “limiar de significância” de um mínimo de 5 a 10% do total da população de indivíduos afrodescendentes para que a região ou nação seja considerada como parte da “América Afro-Latina”. Segundo o historiador, esse nível parece tornar a “negritude” um “elemento visível em sistemas de estratificação e desigualdade social, e que a cultura de origem africana ─ padrões de sociabilidade e expressão de grupo ─ torna-se parte visível da vida nacional” (ANDREWS, 2007, p. 29-30).

O termo cunhado por Dzidzienyo e Fontaine, retomado na obra de Andrews, se tornou referência para vários pesquisadores que têm utilizado o conceito de “América Afro-Latina”. É interessante observar que no livro organizado por Andrews e De La Fuente, na versão original em inglês, vários autores utilizam a expressão Afro-Latin America (ALBERTO & HOFFNUNGGARSKOF, p. 291; DE LA FUENTE, p. 357; JONES, p. 571) ou, ainda, Afro-North America (PUTNAM in ANDREWS & DE LA FUENTE, 2018-b, p. 543) em seus textos. Contudo, na tradução feita para o português, os tradutores Mariângela de Mattos Nogueira e Fábio Baqueiro Figueiredo (historiador, docente da UNILAB) optaram utilizar o termo “Afro-América” e derivações, como “Afro-América Latina” (ALBERTO & HOFFNUNG-GARSKOF, p. 342; DE LA FUENTE, p. 418; JONES, p. 543) ou “Afro-América do Norte” (PUTNAM in ANDREWS & DE LA FUENTE, 2018-a, p. 620). Essa opção se revelou abrangente e útil para se referir às regiões onde a presença africana e afrodescendente se destacou na história e marca o presente de várias localidades nas Américas e no Caribe.

Como o próprio Andrews destaca, a definição de América Afro-Latina não inclui os países caribenhos de língua inglesa e francesa, que fazem parte da história da diáspora africana no Novo Mundo, como, por exemplo, Haiti, Jamaica e Barbados (ANDREWS, 2007, p. 29), muito menos os Estados Unidos da América. Por isso, neste dossiê, pensando principalmente do ponto de vista das instituições de pesquisa brasileiras, acreditamos ser mais apropriado e amplo falarmos de “Afro-Américas”. Este termo ainda é pouco utilizado, apesar de aparecer em alguns trabalhos importantes. A mesma CLACSO, que lançou em 2018 o livro organizado por Andrews e De la Fuente, já havia publicado em 2008 uma coletânea, compilada por Gladys Lechini ─ e editada por Diego Buffa e María José Becerra ─, intitulada Los Estudios Afroamericanos y Africanos en America Latina: herencia, presencia y visiones del otro. Nessa coletânea, Lechini também utiliza o termo “Afro-América” em seu artigo introdutório, no qual faz um levantamento do campo de estudos sobre “África e Afro-América na América Latina”. Lechini analisa o “estado da arte” de estudos nas áreas das ciências humanas acerca da presença de populações “afro-americanas” em regiões ou nações que Andrews definiria como América Afro-Latina, comentando trabalhos sobre Argentina, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Equador, México, Panamá, Paraguai e Peru.

Em 1982, Ciro Flamarion Cardoso publicou um pequeno livro de síntese sobre os sistemas escravistas no continente americano, intitulado “A Afro-América: a escravidão no Novo Mundo”. Naquela obra, Cardoso afirma que convém reservar a denominação de “AfroAmérica” apenas para a parte do continente onde a escravidão africana chegou a ser a relação de produção predominante; onde, portanto, a presença de africanos e afrodescendentes teve maior importância (CARDOSO, 1982, p. 8). No entanto, ao retomarmos o termo no plural, procuramos deixar mais fluidas as fronteiras que definem as “Afro-Américas”. Dessa forma, buscamos dialogar com pesquisas mais atuais do campo dos estudos afro-americanos e/ou afrolatino-americanos, dentro da grande área de História da América. Mais uma vez citando Andrews, quem sempre faz referência a Fontaine, a definição de América Afro-Latina ─ ou Afro-Américas, como insistimos ─ “implica movimento e mudança nas fronteiras” no decorrer do tempo; “não é uma entidade fixa e imutável; ao contrário, ela flui e reflui” (ANDREWS, 2007, p. 30).

O termo Afro-Américas utilizado aqui pretende, portanto, ampliar os recortes geográficos, aproximando reflexões sobre as antigas colônias inglesas e francesas no Caribe, sobre a América do Norte e sobre América Latina. Os estudos das experiências da diáspora africana, do racismo e todas as constantes e variadas estratégias e lutas por direitos e igualdade criadas por homens e mulheres africanas e seus/suas descendentes têm muito a ganhar com reflexões comparativas e transnacionais que ultrapassem os limites latino-americanos. Inclusive, é nessa perspectiva que o Brasil aparece neste dossiê.

De acordo com Barbara Weinstein ─ em artigo publicado na Revista Eletrônica da ANPHLAC ─, nas últimas duas décadas observou-se uma “virada transnacional”, sobretudo no campo dos estudos sobre a América Latina e Caribe, em pesquisas que buscam examinar processos de interações e intercâmbios no espaço hemisférico ou até global (WEINSTEIN, 2013, p. 10). Nesse campo de abordagem transnacional, há uma quantidade significativa de estudos sobre a diáspora africana e a história do racismo no Mundo Atlântico, na intersecção das grandes áreas de pesquisa da história cultural (incluindo os estudos pós-coloniais) e da história social. Em geral, procuram enfatizar a importância da esfera e dos intercâmbios culturais, da circulação de ideias – assim como a mobilidade e as formas de resistência ocasionadas pelo colonialismo, a diáspora africana e o escravismo – nos desdobramentos políticos, econômicos e sociais nas Américas (ABREU, 2017; AZEVEDO, 2010; BRASIL, 2016; BRITO, 2014; STEPHENS, 1998; SEIGEL, 2009). Vários artigos publicados neste dossiê Afro-Américas apresentam, de alguma forma, essa perspectiva transnacional.

Apesar do visível aumento de pesquisas sobre temáticas relacionadas à História da Escravidão e do Pós Abolição nas Américas e no Caribe (excetuando o Brasil) entre os historiadores nas instituições acadêmicas brasileiras nas últimas duas décadas,4 a divulgação científica desse campo aparece ainda com pouca expressividade nos periódicos publicados no país. Em pesquisa de iniciação científica, no projeto “Quais Américas? Um estudo das produções de História da América Latina e Caribe no Brasil” (UNILAB/campus dos Malês), utilizando softwares de apoio a análise de dados qualitativos (CAQDAS), Kaick Yuri Vieira da Silva demonstra que entre 1991 e 2018 o número de publicações referentes a temáticas das Afro-Américas foi pequeno nas principais revistas acadêmicas nacionais (SILVA, 2019). Nessa pesquisa, foram analisados 3.356 artigos publicados (excetuando entrevistas, resenhas, apresentações) em oito revistas de História, qualificadas como A1 no Qualis da Capes, quadriênio 2013-2016, disponibilizadas na base Scielo. Dentre aquele total, 103 artigos tratavam de temas relacionados à América Latina (excetuando Brasil). Ao analisá-los, Silva identificou apenas oito artigos tratando de temáticas acerca das Afro-Américas, sendo seis deles publicados depois de 2010. 5

Entre revistas especializadas em história das Américas, o resultado é um pouco diferentes. Fizemos um levantamento sobre artigos publicados na Revista Eletrônica da ANPHLAC, desde o primeiro número, em 2001, até o último, em 2019. De fato, este é o primeiro dossiê dedicado especificamente a estudos sobre as experiências e contextos históricos que envolveram os povos de ascendência africana nas Américas e no Caribe. Contudo, o número de textos sobre essa temática publicados na Revista Eletrônica da ANPHLAC, embora baixo (em torno de 5% dos 267 textos observados em 26 números), é proporcionalmente muito superior ao número de artigos encontrados naquelas oito revistas de História analisadas na pesquisa mencionada anteriormente. Entre os 267 textos contabilizados, treze abordam questões relacionada ao que definimos como Afro-Américas, considerando entre esses, duas resenhas. Os números dos dossiês História do Caribe (partes I e II, n. 20 e 21, 2016) se destacam, com a publicação de cinco artigos dos treze mencionados. Entre essas cinco publicações, três tratam da história de Cuba, uma sobre Trinidad (Port-of-Spain) e uma sobre a Bolívia (Santa Cruz de La Sierra) ─ publicado na seção de artigos livres. Entre os treze artigos, encontramos apenas dois enquadrados em temas relacionados aos estudos afro-americanos que fazem referência aos Estados Unidos da América (EUA).

Já neste dossiê Afro-Américas, vários dos textos selecionados, coincidentemente, abordam de alguma forma a história dos afro-americanos nos EUA ou pensadore(a)s negro(a)s estadunidenses, geralmente em uma perspectiva transnacional em relação ao Brasil, mas também à Cuba ou ao Haiti. O texto de Bethânia Santos Pereira, que abre o dossiê, vai exatamente nesse sentido. De forma original e criteriosa, a autora investiga as categorias raciais que estavam em formação e disputa, em duas importantes nações americanas no século XIX, o Haiti e os EUA. A partir da análise de dois diferentes retratos de Jonathas Granville, representante do governo haitiano enviado aos Estados Unidos em 1824, e em confronto com outras fontes (periódicos da época, correspondência oficial e discursos proferidos em cerimônias do governo do Haiti), Pereira analisa as variações e as instabilidades das classificações raciais entre aqueles países onde as imagens foram produzidas.

Procurando seguir mínimos critérios cronológicos, o segundo artigo do dossiê vem contribuir para a diversidade dos recortes geográficos das Afro-Américas tratados nesta edição. Elaine Pereira Rocha aborda o debate sobre Pós-Abolição no Caribe Inglês, a partir do estudo de caso da ilha de Barbados, localidade da Afro-América colonizada e dominada no passado pelo Império Britânico, onde a escravidão foi abolida em 1834. Em uma análise de longa duração, Rocha demonstra a relação entre desigualdade, miséria e escravidão, mas, sobretudo a luta dos negros barbadianos por moradia e trabalho, entre o logo pós-abolição e meados do século XX. A autora procura desvendar as dinâmicas de controle dos trabalhadores negros e as estratégias que construíram para escapar ao controle dos patrões e da elite. Em seu artigo, a luta pela moradia e pela posse da terra é examinada em conexão com outros fatores, como extensão territorial, lutas políticas e o desenvolvimento de um sistema de educação mais inclusivo, passando pelas migrações negras e distinções de gênero.

Luara dos Santos Silva, no artigo “Experiências negras no Atlântico: relações raciais, de gênero e classe. Diálogos possíveis entre Norte e Sul (1900-1920)”, discute as experiências de homens e mulheres negras nas cidades do Rio de Janeiro e de Nova York em fins do século XIX e primeiras décadas do XX, através das trajetórias dos intelectuais Coema Hemetério dos Santos, Hemetério José dos Santos, Jessie Redmon Fauset e Willian Edward Buchardt Du Bois. Em perspectiva transnacional, a autora aproxima as experiências desses quatro intelectuais a partir de fontes primárias, especialmente periódicos, apresentando suas redes de sociabilidade e problematizando as relações raciais, de gênero e de classe nas primeiras décadas do século XX.

No artigo “Uma Era de contradições: segregação e resistência afro-americana no período progressista, 1890-1920”, Carlos Alexandre Nascimento busca analisar as relações raciais entre brancos e negros nos Estados Unidos, durante os anos de 1890 e 1920, período de intensificação da violência racial por parte dos brancos, enfocando nas formas de protesto construídas pelos afro-americanos para enfrentar tanto a legislação racista, conhecida como “Jim Crow”, quanto às convenções sociais, inclusive no norte do país, que buscavam limitar a população negra ao acesso à cidadania.

Buscando analisar o processo de “transnacionalização” do movimento negro nos EUA, o artigo de Matheus Cardoso da Silva, “Do antirracismo local ao antifascismo global: A transnacionalização do movimento negro nos EUA entre as duas guerras mundiais”, aborda o período que se estende entre o final da Primeira Guerra Mundial ao início da Guerra Civil Espanhola, em 1936. Analisa os debates étnicos sobre racismo e exclusão da população afrodescendente empreendido por intelectuais e movimentos sociais organizados e seu engajamento nos debates internacionais, e como a luta anti-establishment da população afrodescendente nos EUA é indissociável da autodeterminação dos povos no mundo. Três momentos históricos são centrais para a construção de seu argumento: o retorno dos soldados da Primeira Guerra Mundial, o Congresso Pan-Africanista de 1919 e a influência da Revolução Russa.

Numa perspectiva transnacional, examinando a “circulação de ideias”, Heloísa Maria Teixeira apresenta uma análise da correspondência entre Arthur Ramos e Melville Herskovits que ilumina aspectos institucionais dos diálogos intelectuais e disciplinares que estiveram na base da formação dos estudos afro-brasileiros nas décadas de 1930 e 1940, a partir de uma perspectiva de análise que privilegia a constituição de redes e de interações entre intelectuais, alinhando-se a abordagens metodológicas recentes no estudo da história intelectual. Apresenta uma contribuição fundamental para este dossiê, ao analisar um conjunto documental epistolar de relevante importância para o estudo dos intercâmbios entre intelectuais brasileiros e norteamericanos no século XX, sobre o pensamento culturalista no Brasil nas décadas de 1930 e 1940, sobretudo no campo dos estudos afro-brasileiros.

Avançando cronologicamente, o artigo de Lídia Maria de Abreu Generoso e Taciana Almeida Garrido de Resende, “Cuba, a Tricontinental e o Movimento Negro estadunidense: algumas reflexões sobre os caminhos da solidariedade (1966-1974)”, analisa as relações, redes e debates sobre as relações raciais, as pautas antirracistas no plano internacional e internamente à sociedade cubana. Para tanto, as autoras analisam as estratégias políticas e discursivas dos grupos sociais que participaram tanto da Organização de Solidariedade dos povos de África, Ásia e América Latina (OSPAAAL), criada em 1966 e sediada em Havana, quanto da revista Tricontinental – porta-voz da organização.

O artigo de Caroline da Cunha Rocha, “Canciones de resistencia, canciones de esperanza: formas de protagonismo negro en las protestas raciales de Estados Unidos (1950- 1960)”, pretende demonstrar como a religião e as canções, tanto escravas quanto no período pós-abolição, são instrumentos de resistência e mecanismos capazes de romper com o silêncio num contexto opressor nos EUA. A autora argumenta que o protagonismo dos afrodescendentes através da música e da espiritualidade construído nos tempos da escravidão formaram uma memória coletiva que se mostraria fundamental como legado de resistência nas lutas pelos direitos civis nas décadas de 1950 e 1960.

No último artigo do dossiê, “O pensamento feminista “amefricano” e a ideia de articulação entre gênero, classe, raça e sexualidade: ferramentas de análise para a história das sociedades americanas”, Bárbara Araújo Machado apresenta uma contribuição teórica significativa, buscando direcionar novos olhares sobre a escrita da história da perspectiva do feminismo negro. Machado aborda diferentes expressões da ideia de que relações de gênero, raça, classe e sexualidade devem ser compreendidas de forma articulada no pensamento feminista “amefricano”. A autora define este conceito, em referência à categoria de “Amefricanidade” de Lélia Gonzalez, para designar mulheres afrodescendentes nas Américas não apenas no que partilham em termos geográficos, mas também histórico e cultural. Para tanto, Machado analisa proposições teóricas, metodológicas e políticas de feministas negras norte-americanas, latino-americanas e brasileiras, com foco na historicização das obras de Kimberlé Crenshaw e Lélia Gonzalez, procurando sublinhar a importância desse pensamento não apenas para a elaboração de reflexões sobre mulheres negras, mas também como ferramenta de análise para a história das sociedades nas Américas.

A seção de artigos livres desta edição apresenta três artigos de temas bem diversos, com contribuições extremamente importantes para a História das Américas. Analisando as formas de recepção dos monumentos públicos erigidos em Lima, Peru, Rafael Dias Scarcelli, no artigo “Da devoção à explosão: manifestações populares de adesão e contestação à estatuária urbana de Lima (1859-1921)”, busca compreender tanto as manifestações de contestação e apoio ao projeto escultório, quanto as estratégias desenvolvidas pelo Estado peruano para difundir determinados valores sobre os citadinos. Tais objetivos são perseguidos com a análise de guias de viagem, postais, artigos publicados na imprensa e ofícios trocados entre autoridades municipais.

Bruno Silva e André Furtado, no artigo “Novo Mundo historiográfico: As Américas na pauta de Sérgio Buarque de Holanda, Ruggiero Romano e Max Savelle”, analisam os discursos historiográficos dos três historiadores, a partir do encontro dos mesmos em 1963, reunidos na capital chilena, Santiago. Os autores analisam principalmente as aulas inaugurais  ministradas no curso promovido pelo Centro de Investigaciones de Historia Americana (CIHA).

O último artigo deste volume analisa as relações políticas e culturais da União Soviética com a América Latina entre o final dos anos 1950 e início dos anos 1960. Em “Latinskaya Amerika: as relações entre a União Soviética e a América Latina (1957-1962)”, Marcos Napolitano apresenta e analisa a ampliação da presença soviética no continente americano, levando em consideração seu caráter e também o papel dos nacionalismos e antiamericanismo na América Latina nessas relações.

Essa edição da Revista Eletrônica da ANPHLAC ainda apresenta duas resenhas sobre obras que abordam as Afro-Américas. A primeira delas, “Música e política, passado e presente: trânsitos atlânticos das canções escravas”, escrita por Cecília da Silva Azevedo, trata do livro de Martha Abreu, “Da senzala aos palcos: Canções escravas e racismo nas Américas, 1870- 1930”, publicado pela Editora da Unicamp em 2017 em formato digital. A resenha aponta a importância do trabalho de história social da cultura realizado por Abreu, refletindo sobre as conexões entre música e política, memória e identidade, passado e presente.

A segunda resenha, “A Afro-latino América em perspectiva comparada”, de Caroline Santos Guedes, aborda o livro “Territórios ao Sul: escravidão, escritas e fronteiras coloniais e pós-coloniais na América”, organizado por María Verónica Secreto e Flávio dos Santos Gomes, publicado pela Editora 7 letras em 2017. As conexões entre as histórias negras latinoamericanas tanto no período escravista quanto após as abolições e as possibilidades de reflexão sobre as experiências de africanos e seus descendentes no Atlântico Sul são destacados na resenha.

Esperamos, com este dossiê, divulgar, congregar, mas também inspirar novos trabalhos que abordem histórias e experiências de africanos e afrodescendentes nas Américas, desde o início da era do tráfico de escravos até os dias de hoje, do norte dos Estados Unidos ao sul da Argentina, passando pela América Central e Caribe, incluindo os territórios anteriormente colonizados por Portugal, Espanha, França, Inglaterra e Holanda. Dessa forma, em uma perspectiva cronológica e geograficamente abrangente, poderemos reforçar aspectos transnacionais e comparativos que possam consolidar o campo de estudos das Afro-Américas6 no continente, mas especialmente no Brasil. Por fim, agradecemos imensamente aos autores e autoras que submeteram seus textos à Revista Eletrônica da ANPHLAC e às dezenas de pareceristas que participaram deste número. Seus esforços merecem um maior reconhecimento em tempos (difíceis) como estes, de profunda desestruturação das políticas de pesquisa e ensino no país.

Notas

3 Veja https://alari.fas.harvard.edu/

4 Além dos trabalhos indicados no parágrafo anterior, apenas para citar mais alguns, veja MARQUESE, 2004; COUTO, 2006; SANTOS, 2012; SAMPAIO, 2014; MATA, 2015; SILVA, 2017; CANELAS, 2017.

5 As revistas analisadas foram: Estudos Históricos; Revista Brasileira de História; História (São Paulo); História, Ciências, Saúde – Manguinhos (online); Revista de HIstória (USP); Tempo (Niterói, online); Topoi (online); Varia Historia. Agradeço a Leonardo Fernandes Nascimento pelo desenvolvimento dos scripts para realização de web scraping das revistas da base Scielo, e por todo auxílio e formação no uso das ferramentas digitais de pesquisa qualitativa (NASCIMENTO, 2017). Para saber mais sobre o projeto de pesquisa ver: https://www.researchgate.net/project/Quais-Americas-Um-estudo-das-producoes-de-Historia-da-AmericaLatina-e-Caribe-no-Brasil-utilizando-softwares-de-apoio-a-analise-de-dados-qualitativos-CAQDAS-entre-1991-e-2018

6 Queremos agradecer a um grupo que vem tentando se formar e fortalecer este campo no Brasil, e que nos estimulou a propor este dossiê. A começar pela atual editora-chefe da Revista Eletrônica da ANPHLAC, Prof. Dra. Kátia Cilene do Couto (UFAM), mas também às Profs. Dras. Elaine Pereira Rocha (University of the West Indies – Barbados), Fernanda Oliveira da Silva (UNIPAMPA), Iacy Maia Mata (UFBA), Luciana Brito (UFRB), ao Prof. Dr. Flávio Thales Ribeiro Francisco (UFABC), às pós-graduandas Luara dos Santos Silva (UFF) e Bethania Santos Pereira (UNICAMP).

Referências

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Organizadores

Eric Brasil – Professor do curso de licenciatura em História e do bacharelado interdisciplinar em Humanidades do Instituto de Humanidades e Letras, campus dos Malês, Unilab. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6853705640900524 E-mail: [email protected]

Leticia Canelas – Pós-doutoranda do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), doutora em História, área de História Social, pela Unicamp (2017). Lattes: http://lattes.cnpq.br/9926814061461975 . E-mail: [email protected]


Referências desta apresentação

BRASIL, Eric; CANELAS, Leticia. Apresentação. Revista Eletrônica da ANPHLAC, n. 27, p. 1-11, ago./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]

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