Ahlan wa Sahlan: uma introdução aos mundos árabes | Karime Ahmad Borraschi Cheaito

Capa de Ahlan wa Sahlan uma introducao aos mundos arabes. Karime Ahmad Borraschi Cheaito Imagem Sheike Culinaria Arabe
Capa de Ahlan wa Sahlan: uma introdução aos mundos árabes. Karime Ahmad Borraschi Cheaito | Imagem: Sheike Culinária Árabe

Ahlan wa sahlan, 1 provavelmente “a primeira coisa que vocês ouvirão ao chegar em um país árabe ou ao entrar na casa de árabes”, é o título de recém lançada coleção de artigos sobre os ditos “mundos árabes”. 2 A obra não poderia ter timing mais pertinente, uma vez que o ano de 2021 foi marcado por três importantes fatos que se relacionam com o Oriente Médio: a efeméride dos 10 anos desde o início da Primavera Árabe; o marco de 20 anos do atentado ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001; e o retorno do Talibã ao poder no Afeganistão.

Organizada por Karime Cheaito, a obra possui proposta multidisciplinar3 e reúne alguns dos grandes nomes brasileiros da pesquisa em ciências humanas sobre Oriente Médio. A proposta é apresentar dimensões dos “mundos árabes” para o público leigo de forma simplificada, mas não simplista. Cada artigo apresenta ao leitor um olhar verticalizado e bem embasado, deixando ensejos para pesquisas ulteriores, fornecendo bibliografia especializada, respaldando uma construção de conhecimento com leitura crítica sobre o Oriente Médio, e produzindo um panorama síntese para a abordagem da história, política e cultura destes povos sem tom generalista. Comumente, na grande mídia e veículos ou autores mais tradicionalistas, nos deparamos com exposições que tratam o Oriente Médio como um grande bloco homogêneo, ahistórico, primitivo. Isso não é fenômeno recente: como já afirma Edward Said, autor seminal para os estudos culturais e sobre o Oriente, já desde os fins do século XVIII os orientais são referidos como “mais ou menos a mesma coisa”. 4

Segundo Cheaito, estamos constantemente em contato com produções permeadas de enunciados orientalistas, o que em muito afeta a forma de interpretação das informações que chegam sobre o Oriente. É importante frisar que o Orientalismo é uma mensagem contínua, conduzida sistematicamente para manter a hegemonia ocidental através de formas políticas, sociológicas, militares, ideológicas, científicas, imaginativas e, principalmente, discursivas, de forma a “dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente”. 5

Projetada a partir da percepção da organizadora sobre as principais dúvidas dos leitores brasileiros, a coletânea oferece cinco artigos e um prefácio. Neste, escrito pelo professor Mohammed Nadir (UFABC), além da apresentação padrão de cada um dos tópicos que serão abordados no livro posteriormente, o ponto central é explicitar a forma pela qual cada capítulo se interliga com os demais, ainda que aparentemente possuam recortes temporais e temáticos distintos. Um dado relevante trazido por Nadir, logo ao início de exposição, é justamente o quanto tais estudos atingiram volume de produção e demanda depois de 2001: “A história do mundo árabe tem sido a mais investigada nos últimos anos sobretudo, pelo acontecimento do 11 de setembro, que fez com que o estudo sobre o Oriente Médio se tornasse quase que equivalente aos estudos de segurança nacional” (p. 7).

O capítulo seguinte é redigido por Samira Adel Osman (UNIFESP) e se delineia a partir de pertinente explicação do que é, ou o que são, as identidades árabes a que o título do livro se refere, historicizando essa premissa e apresentando os diferentes modos dela ser entendida ao longo do tempo, baseando-se em documentos que vão desde os primeiros registros árabes escritos, de cunho mítico religioso, passando pelo histórico das eras dos Califados, da colonização imperialista, e culminando nos processos de independência, já no século XX. A partir da disposição e análise desse vasto escopo, bibliografia e mapas, Osman define os atuais 22 países árabes6 (hoje, todos independentes, com exceção do território da Palestina que é administrado por Israel), e auxilia no entendimento das mudanças e permanências que houveram nessa constante construção da identidade árabe, uma vez que “a simplificação ou a complexificação dos critérios pode nos ajudar ou não a definir quem são os árabes, como surgiram na história, como desenvolveram sua história e quais elementos foram selecionados para explicar quem são eles” (pp. 17-18).

É interessante perceber como tal formação foi vastamente influenciada pelas relações que o Oriente estabeleceu com o Ocidente e, também, pelo que ela chama de arabização (pg. 17-18). Defende-se como cruciais, para a definição do que é “ser árabe”, a língua, o nomadismo – característica dos antigos grupos beduínos7 , primeiros a se “arabizar” -, a conversão e profissão do islamismo – “religião árabe professada em língua árabe pregada e transmitida por um árabe para todos os árabes da Arábia” (pp. 25) -, e os processos de expansão da etnia ao longo do tempo (pp. 25-30).

O capítulo seguinte, “Recortes Femininos do Mundo Árabe”, de Muna Omran (UFF), aborda certa produção cultural no contexto do século XX a partir de um recorte de gênero e linguagem, qual seja, a literatura e a produção cinematográfica encabeçadas por mulheres. É necessário o comentário de que o artigo deixa de fora muitas outras importantes vertentes e objetos, ainda dentro do campo artístico e cultural, tais como a música, a dança e as artes visuais. Para essa abordagem nomes como Marcia Dib, 8 Naiara de Assunção, 9 Vitória Baldin10 e Geraldo Adriano de Campos11 trariam boas contribuições.

O capítulo reúne informações relevantes, especialmente para desfazer algumas noções do senso comum que enxergam as mulheres árabes como “oprimidas, silenciadas, cobertas pelo hijab, includas e iletradas”, ou “erotizadas, lascivas e sedutoras” (pp. 45-46). Omran nos apresenta a nomes importantes para a própria consolidação do cinema árabe, especialmente do cinema egípcio da era nasserista (1956-1970), quando, inclusive, houve vultosos investimentos estatais na indústria cultural. Especialmente para as mulheres, além de poderem se desprender da imagem já derrotada do Império Otomano, o cinema era grande oportunidade para expressar seu desejo de participação social, cultural e política, “tirando o véu dos costumes tradicionais” (p.48). Os dois nomes citados no capítulo, Aziza Amir e Assia Dagher, foram precursoras neste sentido, e suas produções foram estancadas somente após o período da Infitah 12.

No campo da literatura, é demonstrado que as mulheres também deixaram certo legado, ainda que imersas em culturas factualmente sexistas e misóginas, especialmente em seu tempo. O maior trunfo do capítulo é apresentar ao público leitor a obra de May Ziadeh, autora e ativista cultural de origem líbano-palestina, que ainda não foi traduzida para a língua portuguesa, o que esperamos que possa ser um incentivo para a pesquisa sobre ela e/ou a providência de versões das suas publicações.

O terceiro e o quarto capítulos da obra abordam as duas maiores religiões dos territórios árabes: o cristianismo e o islamismo13. O primeiro, escrito por Rodrigo Ayupe Bueno da Cruz (UFF), traça uma breve síntese cronológica das origens, desenvolvimento e expansão da fé cristã no Oriente Médio, abordando inclusive os conflitos internos à religião, como o caso da Grande Cisma, os Concílio da Calcedônia, de Nicéia e Constantinopla, e demais divisões da Igreja. Merece destaque sua menção ao processo histórico que concerne às Igreja Ortodoxa e Católica armênias, que são atuantes no Brasil com sedes eclesiásticas próprias. O capítulo é significativo, ainda, por demonstrar como a questão política se imbricou, muitas vezes, com a trajetória do cristianismo tanto em seus períodos de perseguição como de aceitação oficiais. Esse papel é relevante para que lancemos olhar sobre outras camadas menos superficiais da composição política dos países árabes, maiormente a Síria, o Líbano, o Egito e o Iraque, que possuem amplas cotas de representação cristã em seus sistemas de governo. Ainda, a análise da relação que o cristianismo tem de estabelecer com a parcela muçulmana também é digna de nota: para o autor, “em alguns momentos as comunidades cristas colaboram com os muçulmanos sob forma de um nacionalismo árabe ou dos nacionalismos locais, ao passo que em outras situações suas lideranças acionam uma identidade política genérica cristã em oposição ao Islã” (pp. 89-90).

Justamente este é tratado com mais profundidade no capítulo quatro, de autoria da profa. Dra. Francisrosy Barbosa (USP), a partir de dois grandes blocos de conteúdo: o primeiro com alguns dos principais termos e normas do Islam; o seguinte, tratando da islamofobia, definida por “uma discriminação constante que pode ser expressa em forma de violência física, verbal ou outras. Sobretudo, é uma forma de racialização de pessoas muçulmanas […]” (p. 108). Este capítulo se apresenta como introito à própria doutrina islâmica, onde são esclarecidos termos como sharia, hadices, sunnah e alcorão, frequentemente empregados de forma errônea pela mídia e pelo senso comum. É claro que há de se recordar que a proposta do livro é fornecer uma introdução sobre os assuntos; portanto, não podemos esperar explicações aprofundadas sobre todos os preceitos do Islam, do uso de seus instrumentos, ou de formas das suas jurisprudências. A autora ressalta a importância de buscar fontes escriturárias para compreender o Islam, inclusive como importante recurso de cotejo para pesquisas (pp .109-110), sobretudo para que possamos construir uma literatura deseuropeizada, que trate da cultura com seus próprios pressupostos e epistemologia.

O quinto e último capítulo, escrito pela organizadora Karime Cheaito (UFF) em parceria com Aysha Raed Sleiman (UFABC), aborda recorte contemporâneo, referindo-se a alguns dos principais acontecimentos do século XX e XXI; qual seja, o projeto pan-arabista, no pós-guerra, e a Primavera Árabe, iniciada em 2011. Se verifica que é também nesse entretempo que o Oriente Médio passa a ser associado com o extremismo religioso, terrorista e radical, pela generalização de atos de certos grupos islamitas que, diga-se, são fortemente repudiados pela maioria dos muçulmanos e mesmo nos seus contextos de origem (pp. 130-132). É o caso da Al-Qaeda e do Daesh.

É significativo notar que ambos os processos levaram a intervenções ocidentais, responsáveis não somente por incentivar um tratamento belicoso entre partes, mas também por forçarem, ao mesmo tempo, posturas neoliberais nos governos e as reacionárias na sociedade. O alinhamento à grupos islamitas se tornou, para alguns, uma alternativa ao imperialismo e às autocracias políticas – antes e depois da Primavera Árabe -, pois essas pareciam ser “as únicas organizações da sociedade civil que não estavam necessariamente vinculadas aos governos contestados pelos protestantes” (p.136).

A obra Ahlan wa Sahlan cumpre o que promete em expor e divulgar os termos mais gerais para compreendermos o passado e presente das regiões árabes e de seus povos. Longe de esgotar o assunto, a obra propõe reflexões sobre as abordagens convencionais que o Oriente árabe recebe e deixa o convite de que esses “mundos” sejam estudados com seus pormenores e complexidades, a partir de quadros que os coloquem no centro de debates e sem antagonismos com o Ocidente, como é exemplo a Samuel Huntington14 , retomado fortemente de 2001 em diante, gerando análises que se furtam de compreender debates internos às comunidades árabes e que reforçam visões orientalistas e estereotipadas que, na atualidade, não apenas não devem perpetuar como também devem ser ativamente evitadas.

A atualização, a busca por pluralidade de discursos e abordagens, bem como a numerosa comunidade de imigrantes e descendentes de árabes no Brasil e as atuais relações exteriores com esses países são pontos que enfatizam a necessidade de que os seus assuntos sejam tratados com seriedade e maior amplitude. Para Cheaito, ainda há certa carência de “pesquisas sobre a região” e de “espaços para exposições e debates sobre estas pesquisas que estão sendo produzidas, como congressos voltados para pesquisadores de Oriente Médio e dos países árabes”. 15 Ahlan wa Sahlan pode ser catalisador justamente para possibilitar e ampliar esses desígnios.

Notas

1 Literalmente, pode ser traduzido como “boas-vindas”.

2 Em entrevista concedida para a elaboração desta resenha, Karime Cheaito afirma que a escolha para a grafia “mundos árabes” se deu em referência à pluralidade das identidades, culturas e religiões presentes nos 22 países árabes.

3 MORIN, 2003, p. 115.

4 SAID, s/d, posição 983.

5 SAID, s/d, posição 332.

6 A definição aceita por Osman, e ratificada por boa parte dos especialistas no assunto e comunidade das relações internacionais, é a proposta pela organização de estados Liga Árabe. Os países membros são: Egito, Iraque, Jordânia, Líbano, Arábia Saudita, Síria, Iêmen, Líbia, Sudão, Marrocos, Tunísia, Kuwait, Argélia, Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Catar, Omã, Mauritânia, Somália, Djibuti, Comores e Palestina (Estado de jure).

7 Hoje, o termo beduíno é tido como controverso, pois foi cunhado para contexto pejorativo. Atualmente, o mais correto seria grafar o nome de cada grupo nômade da região desértica. Opto por usar este termo, aqui, pois é como são referidos no livro.

8 DIB, 2009 e DIB, 2013.

9 DE ASSUNÇÃO, 2018.

10 BALDIN, 2021a, b, c.

11 DE CAMPOS, 2019.

12 Política de abertura e desestatização neoliberais promovidas por Anwar Sadat, sucessor de Gamal Abdel Nasser, a partir de meados dos anos 1970. 1

3 Percentualmente, a religião muçulmana tem maior taxa de convertidos; entretanto, optou-se por utilizar, para o texto, a ordem de apresentação das religiões no livro.

14 HUNTINGTON, 1997.

15 Karime Cheaito, em entrevista concedida para a elaboração desta resenha.

Referências

Ahlan wa Sahlan: uma introdução aos mundos árabes. Karime Ahmad Borraschi Cheaito (org;). Marília: Lutas Anticapital, 2021. 158 p.

BALDIN, Vitoria. Os mártires da Primavera Árabe no Cairo: o grafite enquanto promessa de memória. In Congresso Internacional de Estudos das Diferenças & Alteridade, 2021 (a).

BALDIN, Vitoria. Quando há muito a se dizer: os discursos verbais no grafite palestino. In Diversitates, vol. 13, n.14, 2021 (b).

BALDIN, Vitoria. A produção de Cake$ Stencils na Cisjordânia: um local de crianças, muros e drones. In Revista Hydra, vol.6, n.10, ago/2021 (c).

DE ASSUNÇÃO, Naiara. Entre Ghawazee, Awalim e Khawals: viajantes inglesas da Era Vitoriana e a “Dança do Ventre”. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018.

DE CAMPOS, Geraldo Adriano Godoy. Por uma filosofia da espera e da permanência: o tempo no cinema de Elia Suleiman e Kamal Aljafari. Tese (Doutorado em Filosofia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.

DIB, Marcia. Música árabe: expressividade e sutileza. São Paulo, 2013.

DIB, Marcia. A diversidade cultural da Síria através da música e da dança. 2009. Dissertação (Mestrado em Língua, literatura e cultura árabe) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.

HUNTINGTON, Samuel. O choque das civilizações e a recomposição da nova ordem mundial. Rio de janeiro: Objetiva, 1997.

MORIN, Edgar. Inter-poli-transdisciplinaridade. In MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a forma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras. Versão Kindle.


Resenhista

Nina Ingrid Caputo Paschoal – Doutoranda em História da Arte pela Universidade Federal de São Paulo, membra do Laboratório de Estudos Orientais e Asiáticos (UNIFESP), mestra e bacharela em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e educadora do Museu de Arte Sacra de São Paulo. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0748-2455


Referências desta Resenha

CHEAITO, Karime Ahmad Borraschi (Org). Ahlan wa Sahlan: uma introdução aos mundos árabes. Marília: Lutas Anticapital, 2021. Resenha de: PASCHOAL, Nina Ingrid Caputo. Uma abordagem multidisciplinar para os “mundos árabes”. Projeto História. São Paulo, v. 74, p. 230 – 237, maio/ago. 2022. Acessar publicação original [DR]

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