Alegoria do património | Françoise Choay

As argumentações desenvolvidas por Françoise Choay em Alegoria do património se ancoram, reiteradamente, em demonstrações etimológicas cujo pressuposto fundamental é assinalar as transfigurações das relações estabelecidas entre os seres humanos e as suas edificações ocorridas nos últimos séculos no Ocidente e em países como o Japão e a China. Deste modo, à designação “patrimônio”, cujo abarcamento restringia-se originalmente às propriedades hereditárias, foram acrescentadas categorias mais abrangentes, tal como o complemento “histórico” (CHOAY, 2014, p. 11). Enquanto o monumento é uma obra espontânea, seja auxiliar da rememoração ou da magnificência das localidades, o monumento histórico é produto de uma distinção artificial (CHOAY, 2014, p. 17-25). A destruição de um monumento pode se dar por diversos fatores, humanos ou naturais, mas ao monumento histórico é pressuposta uma irrestrita proteção (CHOAY, 2014, p. 25-26).

O acondicionamento destas construções como projeto nacional provém de um lugar específico e de um tempo também específico: o Ocidente oitocentista (CHOAY, 2014, p. 25-26). Pontualmente, o delineamento de um tal empreendimento é evidente em França ainda no século XVIII, marcado pela circunstância revolucionária, mesmo que propalado somente no XIX (CHOAY, 2014, p. 26-27). Por detrás destas constatações está a introdução do monumento histórico ao repertório linguístico francês, cuja autoria poderia ser atribuída precipitadamente a Guizot, porém trata-se de uma realização de Millin (CHOAY, 2014, p. 26-27). Neste sentido, é notória a relevância das ações de Françoise Choay pertinentes ao exame pormenorizado do referido léxico, visto que conduzem a oportunas reflexões acerca do delineamento da conservação patrimonial e de seus princípios.

As discussões empreendidas pela autora no livro aludido são, é válido reforçar, provocativas, por detalharem os deslocamentos revelados entre as interpretações sobre as edificações ao longo do tempo. Isto é, aos monumentos são atribuídos propósitos distintos em períodos diferentes (CHOAY, 2014, p. 17-20). Primeiramente mais um dispositivo promotor da memória, à obra monumental é conferida, de forma gradual, uma valorização estética e prestigiosa, convencionada no século XVII europeu (CHOAY, 2014, p. 18-19). A ampla difusão da arte, do impresso e da fotografia explica o desenvolvimento de tal apreciação (CHOAY, 2014, p. 18-22).

Ademais, para além das destruições das quais os monumentos estão sujeitos, sejam elas involuntárias, consequências da indiferença, ou propositais, resultantes da ação humana (CHOAY, 2014, p. 25-26), a escritora demonstra a existência histórica de uma outra forma de relação com a obra edificada. Assim, a salvaguarda ancestral de arquiteturas gregas por parte dos romanos se distingue da moderna conservação patrimonial por não se fundamentar em concepções históricas e artísticas (CHOAY, 2014, p. 34-36). As motivações para tal preservação rudimentar consistiam-se, efetivamente, em aspirações à promoção de apropriações de uma materialidade grega e, neste sentido, à obtenção de prestígio social (CHOAY, 2014, p. 36). Por outro lado, a defesa medieval pela manutenção material destas produções se deu principalmente por líderes religiosos cujos intuitos delimitavam-se, sobretudo, a um reaproveitamento dos antigos edifícios (CHOAY, 2014, p. 38-41).

Dessarte, é oportuno sublinhar que Françoise Choay se interroga quanto a este medievo compadecimento perante o patrimônio de modo escrupuloso, apresentando elementos da conjuntura intelectual na qual os pontífices estavam insertos. Assim, a solicitação de Gregório I para que demais missionários apenas expurgassem os edifícios profanos sem os demolir foi uma ação emblemática (CHOAY, 2014, p. 38). Com efeito, os pressupostos de uma atuação deste tipo, neste período, relacionaram-se não só a um projeto de reutilização espacial, mas ao reconhecimento de qualidades cognitivas e sensitivas das obras (CHOAY, 2014, p. 37-38). Isto ocorreu porque a essência intelectiva de tais antiguidades era aludida nos escritos acessados por este grupo, que a entendia como clássica (CHOAY, 2014, p. 38). As grandes proporções, o primor, o vislumbre da destreza técnica de sua criação e a opulência material destes imóveis proporcionariam o deslumbramento destes religiosos (CHOAY, 2014, p. 38-39).

A autora expõe, no entanto, outras referências para o exame desta contemplação na Idade Média, constituídas por pontos de vista de sujeitos seculares. As observações de Petrarca, por exemplo, a respeito das edificações antigas constituem-se em um entendimento no qual o escrito é prioridade em detrimento da materialidade (CHOAY, 2014, p. 45-47). Nesta circunstância, os viajantes que iam até Roma a descreviam a partir de seus textos, relegando a sua dimensão plástica (CHOAY, 2014, p. 47). Uma verificação epistolar da comunicação do físico e astrônomo italiano Giovanni de ‘Dondi, todavia, evidencia uma paulatina e declarada afirmação do aspecto artístico das antiguidades, engendrada do século XIV ao XV (CHOAY, 2014, p. 47-49).

Outrossim, é válido assinalar que a historiadora apresenta o cunho paradoxal da salvaguarda dos monumentos por parte deste clero. Por um lado, são notórias as iniciativas de conservação patrimonial empreendidas por estes sujeitos, indicadas através dos documentos oficiais eclesiásticos (CHOAY, 2014, p. 52-55). Um decreto feito por Pio II Piccolomini, por exemplo, assenta punições, da indenização à excomunhão, como embargo à deterioração destes objetos (CHOAY, 2014, p. 54). Por outro, não obstante, estes mesmos agentes da preservação protagonizaram desintegrações que disponibilizassem matéria para novas construções (CHOAY, 2014, p. 56-58). Afinal, tal procedimento era consonante à compreensão equeva acerca das antiguidades, igualmente depredadas por colecionadores coetâneos (CHOAY, 2014, p. 58).

Como sobredito, os deslocamentos deste olhar cambiante em relação ao legado arquitetônico são, em contrapartida, realçados pela escritora. Assimilados enquanto antiguidades nacionais pelos antiquários, esse patrimônio foi investigado como tal ainda no século XVII (CHOAY, 2014, p. 65-71). O advento do museu sanciona o resguardo de materiais longínquos, de afrescos a outras representações artísticas, como esboço de uma postura equivalente quanto às antiguidades (CHOAY, 2014, p. 66). Ao inventariar tais obras, estes homens almejavam rastrear resquícios greco-romanos, prover ao cristianismo um quadro de criações congênere ao repertório antigo e ratificar a primazia ocidental (CHOAY, 2014, p. 70). Detalhamentos iconográficos, elaborados por artistas ou mesmo por estes amadores, foram recursos utilizados para a efetivação deste projeto, apesar dos obstáculos impostos por estas fabricações ao trabalho dos antiquários (CHOAY, 2014, p. 77-81). É neste sentido que esta operação se tratou de uma preservação alegórica, porquanto a depredação dos monumentos antigos ainda era imensamente predominante frente à sua conservação concreta (CHOAY, 2014, p. 88).

Françoise Choay também dedica um capítulo do seu livro para apresentar de forma mais detida as movimentações em prol dos monumentos no âmago da Revolução Francesa. De fato, a atuação das ligas insurgentes quanto à conservação patrimonial foi mais efetiva do que a dos antiquários (CHOAY, 2014, p. 103-105). Esta intervenção se processou com o apoderamento das posses eclesiásticas, régias e de emigrados por parte do Estado e como resposta ao vandalismo do qual parcelas destas propriedades eram alvos (CHOAY, 2014, p. 105). Assim, uma junta instituída decreta o resguardo do patrimônio através do seu armazenamento e de sua selagem (CHOAY, 2014, p. 107).

Na ocasião desta iniciativa, entretanto, muitos destes bens foram comercializados devido às adversidades administrativas e financeiras enfrentadas pelo regime amotinador (CHOAY, 2014, p. 107). Com a adaptação funcional destes haveres, as classificações móvel e imóvel são demarcadas (CHOAY, 2014, p. 107). O delineamento de um espaço que abrigue as infixas materialidades é então traçado por estes revolucionários (CHOAY, 2014, p. 107). Ademais, o museu é projetado enquanto um lugar propício para o fomento de diversas aprendizagens: conhecimentos sobre a pátria e o seu passado, sobre a arte e o seu conjunto de métodos e procedimentos (CHOAY, 2014, p. 107). Contudo, as circunstâncias governamentais, monetárias e de imperícia prática circunscreveram os êxitos desta proposta (CHOAY, 2014, p. 108).

Enfim, Alegoria do património compreende uma investigação multifacetada sobre a conservação patrimonial e as suas origens, cuja totalidade não foi abrangida nestes parágrafos. É importante frisar, ainda assim, que a autora se detém, de forma minuciosa, na elucidação do conflituoso desenvolvimento das técnicas de restauração, do processo de historicização de cidades e do fenômeno da industrialização de monumentos históricos. Trata-se de uma relevante referência bibliográfica para o estudo dos progressos da catalogação de determinados bens materiais como patrimônio.

Edições Brasileiras do Texto

O livro resenhado possui edições brasileiras. A Editora Estação Liberdade e a Fundação Editora da UNESP o editaram, de 2001 até 2006, como A Alegoria do Patrimônio. Luciano Vieira Machado foi o tradutor dessas edições.


Resenhista

André Araujo de Oliveira – FE/UNICAMP. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

CHOAY, Françoise. Alegoria do património. 3ª edição. Lisboa: Edições 70, 2014. Resenha de: OLIVEIRA, André Araujo de. Revista Iberoamericana do Patrimônio Histórico-Educativo. Campinas, v. 7, 2021. Acessar publicação original [DR] 

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