Amílcar Cabral e a crítica ao colonialismo – Entre harmonia e contradição | Patricia Villen

A obra, “Amílcar Cabral e a crítica ao colonialismo”, autoria de Patricia Villen, publicada em 2013, encontra-se organizada em duas partes. A primeira: O mundo que o colonialismo português criou, contendo os três primeiros capítulos e a segunda: O mundo que o anticolonialismo de Cabral começou a construir, contendo os dois últimos, que se somam cinco capítulos de um estudo da colonização portuguesa. A autora procura mostrar a colonização a partir da perspectiva dos colonizados, abordando o tema na contramão da visão dominante, mostrando a independência dos países africanos como uma conquista que foi muito além do militar. A abordagem adotada nesta obra consiste em evidenciar que, para além do confronto militar, as lutas independentistas no continente africano se assentaram numa outra perspectiva ontológica proporcionando uma outra maneira de se relacionar que não fosse através das guerras de conquista.

No capítulo 1, intitulado “A estrutura de opressão racial na colônia de exploração: O modelo Português”, a autora discute o sentido da colonização e a condição servil dos colonizados, barreiras raciais do império e a questão racial na antologia colonial portuguesa. Segunda Patrícia, a ideia de “ocupar com povoamento”, ou seja, de constituir no território descoberto uma sociedade parecida com a europeia, caracterizou a colonização das regiões temperadas da América do Norte: “o que os colonos dessa categoria têm em vista é construir um novo mundo, uma sociedade que lhe ofereça garantias que no continente de origem já não são mais dadas”.

Com a descoberta dessa terra e a perda da hegemonia do comércio com o Oriente, o sistema colonial português se voltou para o cultivo agrícola e a exploração dos novos recursos dos territórios descoberto na américa. Todavia nesse tipo de colônia não interessava o extermínio da raça nativa, como ocorria nas regiões de clima temperado. Ao contrário, a força de trabalho dos nativos e a importância dos escravos negros africanos eram o único meio possível de exploração desses territórios. A base material de uma economia agrária movida pelo trabalho escravo do negro são portanto os três fatores (trabalho escravo, exploração dos recursos naturais, e uma produção agrícola direcionada exclusivamente ao fornecimento de bens à Europa), de acumulação de riqueza, que se encontram na base da colônia de exploração adotados pelos portugueses nos territórios ultramarinos e entender esse contexto é o ponto de partida para entender o sentido da colonização, sua complexidade e o desenvolvimento no tempo da colônia portuguesa.

No capítulo 2, “A reconstrução do aparato ideológico”, a autora aborda o novo discurso colonial de Adriano Moreira, se contrapondo de forma direta à premissa racista em que se permeia o pensamento colonial português do Segundo Pós-Guerra, definindo o colonialismo como “benefício histórico”, isto é, como instrumento de enriquecimento das civilizações por meio da ação portuguesa e europeia no mundo. Destaca O princípio da unidade da nação, a identidade portuguesa e o Ultramar, eleito pela publicação do Acto Colonial, em 1930, como a expressão sacra do Império colonial. A construção da “verdade” da unidade tinha como função calar qualquer conflito que colocasse em questão a ideia de Portugal como um todo indivisível de suas colônias.

O capítulo 3, “O percurso cultural”, relata a ideologia da convivência racial e da interpenetração de culturas: um diálogo com Gilberto Freyre, analisando as estratégias ideológicas presentes no “novo” discurso colonial português, fazendo emergir da ideologia da “convivência racial” e da “compenetração de culturas”. A autora explica a ligação existente entre a tese de Freyre e a ideologia colonial portuguesa do Segundo pós-Guerra, se encaixando perfeitamente às exigências da empresa ideológica de defesa da legitimidade do colonialismo, manifestando assim uma lógica: a mudança de foco na temática da inferioridade racial e cultural dos povos colonizados à defesa da especificidade do caráter “cultural” do colonialismo português. Surge a ideia de que “são as culturas e não as raças, que tem vocação da eternidade”, como epicentro ideológico para mascarar a materialidade racial congênita à política e à doutrina colonial portuguesa, que até o momento aludiam sem escrúpulos a estereótipos de inferioridade dos povos de suas colônias para justificar a necessidade do domínio colonial.

O sistema de assimilação cultural, fundamentava-se nos ideais de convivência e da tolerância racial, partindo do pressuposto da existência de uma base igualitária, reconhecendo o valor positivo da reciprocidade de troca cultural decorrente do contato colonizador-colonizado. Ela mostra ainda “O português e o indígena: duas personalidades jurídicas não comunicantes”, comparando como uma separação hierárquica entre dois mundos – o colonizado e o colonizador.

Na segunda parte do livro, “O mundo que o anticolonialismo de Cabral começou a construir”, a autora fala de Amílcar Cabral: vida e obra, descrevendo-o como uma personalidade guia do movimento de libertação nacional dos territórios de Guiné e Cabo Verde. Cabral via com olhos críticos o desenvolvimento das lutas de libertação nacional do contexto africano, e por isso, já naquela época fazia alusão a uma “crise de conhecimento”, que considerava ser um aspecto fundamental para qualquer análise da situação de países submetidos ao imperialismo que tivesse por perspectiva a transformação radical dessas realidades. Para ele, a falta de ideologia no sentido de tomada de consciência da situação histórica dos povos africanos e de suas próprias contradições, revelava-se como problema crucial a ser enfrentado pelos movimentos de libertação nacional. Segundo a autora, o corolário da teoria de Cabral era, “Entender a realidade do país para transforma-la”, que só pode ser verdadeiramente compreendida se relacionada com a luta de libertação nacional.

O capítulo 4, “O anticolonialismo revolucionário”, aborda o posicionamento de Cabral contra a tese da menoridade histórica do povo africano, o antifascismo, anticolonialismo e a reconquista da personalidade histórica. Segundo a autora, a empresa de moralização do aparato ideológico português do Segundo Pós-Guerra é reconhecida por Cabral como um conjunto de “manobras demagógicas e criminosas” do colonizador, posta em ação pelo objetivo preciso de manter os povos das duas colônias na condição de menoridade histórica.

A estratégia do discurso colonial português para manutenção da invisibilidade do regime racista e da violência perpetrada nos territórios africanos, por meio da consagração do mito da fraternidade multirracial, tinha poder de persuadir, segundo Cabral, até mesmo entre os próprios africanos. Ele parte da situação real desses territórios para demostrar a equivalência entre dominação colonial e negação do direito de um povo de possuir a própria história. As condições de “miséria”, “ignorância”, e “medo” vividas pela população colonizada não é fruto do estado de evolução da sociedade e da cultura africana, e sim do sistema colonial de “domínio e exploração de 15 milhões de seres humanos, cujo 12 milhões são africanos”.

No capítulo 5, “Cultura e Libertação”, a autora discorre sobre a cultura, identidade e materialidade histórica, sobre a questão de derrota do sistema colonial imperialista: liquidar, assimilar ou integrar? Sobre a assimilação da elite e marginalização da cultura popular e também sobre a luta de libertação: fato e fator de cultura. Segundo Patricia villen, Cabral considerava que a destruição de tudo que tornava possível a dominação estrangeira requeria resistência do colonizado em diversos âmbitos e que essa resistência iria muito além da econômica, política armada e cultural, abrangendo um elemento essencial determinando que seria a principal força de reação ao sistema de opressão. Esse elemento determinante seria o homem em toda sua capacidade intelectual, com sua mentalidade e seu comportamento como resistência humana da luta de liberdade nacional. A prova mais gritante da repressão permanente e organizada da vida cultural do povo dominado ecoa na própria opinião, absorvida pela propaganda do regime nazista e que é para Cabral “expressão mais trágica do imperialismo e da sede de domínio”.

Analisando o efeito colonial na sociedade colonizada, que persistia em mascarar os efeitos negativos da ação da colonização sobre os aspectos essenciais da cultura e das tradições do povo colonizado, Cabral, assinalou três possíveis opções à tentativa imperialista de agir sobre a identidade cultural do povo colonizado: a eliminação total da população dominada, a pretensão de assimilação gradual da população autóctone e a suposta harmonização do domínio político e econômico com o respeito da personalidade cultural do povo dominado. No primeiro caso teria que haver o genocídio de uma população inteira. As duas últimas são problemas de caráter essencialmente teórico, que, segundo Cabral, nunca poderão ter uma ação prática efetiva na cultura do povo dominado.

Segundo a autora, diante desse ilusório plano de ação na cultura dos povos colonizados, Cabral foca em analisar o motivo real da não operacionalidade prática: o denominador comum de todas as políticas imperialistas, uma vez levada em consideração a sua dimensão cultural. Ele também enfatiza sobre a importância de entendermos a atuação dos princípios racistas e de separação cultural dos “civilizados” e dos “não civilizados” contido no estatuto dos indígenas e no funcionamento do sistema colonial português de acesso à educação, para que se perceba o limitado acesso de “aculturação” que uma pequena parcela de africanos recebia.

Cabral observava nessa classe uma maior conservação de valores culturais endógenos. Ele considerava a cultura (especialmente de Guine e Cabo Verde) como um ponto de vista político e um instrumento de renovação da vida social e individual, na medida em que se permite a compreensão e a integração e seu meio (o indivíduo), a identificação com os problemas fundamentais, as aspirações da sociedade, e aceitação da possibilidade de modificação no sentido de progresso.

Patricia Villen, conclui levantando questionamentos sobre a realidade dos povos colonizados após a independência política, a teoria de Cabral, sua importância e relevância para os dias atuais. A autora cita duas referências que respondem os questionamentos, levantados por ela, de forma complementar. Na opinião de Monteiro, a “importância futura do pensamento de Cabral dependerá em grande medida do quanto ele resulte despolitizado”, isto é, que não seja mais “unicamente visto como um homem político ou militar”, mas como um “teórico social, uma figura literária, um ícone cultural“. A autora explica que este posicionamento a figura de Cabral é uma crítica ao modo como a memória de Cabral tem sido instrumentalizada depois de sua morte, “como se fosse domínio exclusivo de um partido político, em vez e uma herança cultural e todo o país”.

Para a autora a ativista, Aminata Traoré, avalia a partir de uma perspectiva mais ampla, a atual situação da África, abordando o descrédito político, a despolitização e a relação de políticas econômicas desligadas da realidade do continente e dos interesses de seus povos. Para Traoré, a perda do interesse na política é uma das principais ameaças para a África contemporânea, ainda necessitada de curar suas feridas “simbólicas”, tanto do passado quanto do presente: “o descrédito político cria, tanto a médio e a longo prazo, situações explosivas das quais a comunidade de credores tira lucro para dar renovada legitimidade à políticas neoliberais”. Um efeito de imaginário roubado, “jogos de poder” do atual processo de globalização. Traoré diz que nesse fértil terreno de reprodução de mentiras, a mais gritante de todas é a assertiva de que “a pobreza será a principal característica da África”. Para ela, os Estados africanos e sua classe política mais corrupta reivindicam e se apropriam dessa grande mentira, e isso faz com que “a luta pela pobreza se transforme numa regressão mental e política”.

Para a autora esses dois discursos são indicadores do desequilíbrio nas relações de forças em escala mundial do atual processo de globalização. Villen também lembra que tanto a ameaça quanto os desafios ligados a esse mesmo desequilíbrio de escala global já eram objetos de cuidadosa atenção no pensamento político africano. Afirma ainda que a teoria de Cabral faz parte da história da África, e que suas reflexões confirmam o amplo horizonte aberto pelo seu pensamento.

Esta obra expressa uma história de opressão da máquina de poder exercida pelo colonialismo, na qual focava seu domínio econômico e político no controle – imposição pessoal e psicológica que permeia e subjuga a autonomia e capacidade de auto reconhecer os processos que os formam – dos colonizados. “Amílcar Cabral e a crítica ao colonialismo”, contribui para a construção de um raciocínio de perspectiva crítica e de aspirações revolucionárias, orientando a transformação das relações de dependência e da afirmação de um processo geral de “despolitização” (a exemplo, exercida pelo colonialismo português), que repercute seus atos de influencias de forma preponderante. Sugere o conhecimento como uma arma de luta no combate a alienação, a diversidade (cultural e racial), e ao contexto imposto pelo mundo capitalista globalizado.

A obra, por fim, constitui leitura reflexiva para os que lutam por uma sociedade justa, sugerindo ao leitor como contribuição valiosa a desmitificada da realidade de um povo explorado, alvo de um conjunto de técnicas persuasivas, explícitos a olhos nus, capaz de manter por décadas latentes aspectos culturais tão específicos, assim como, a tomada de consciência dos mesmos. A perspectiva crítica e de aspiração revolucionária que a obra evidencia, são de grande relevância para os estudiosos de sociologia, geografia, e todos que trabalham na temática do contexto de exploração, colonização (de luta política, econômica e cultural), enfrentados pelo “terceiro mundo”, “países em desenvolvimento”, “subdesenvolvido”, “realidades pós-coloniais”, enfim, realidade em que o Brasil ainda se insere.


Resenhista

Brena Regina Lopes Machado – Discente da Universidade do Estado do Pará, cursando Licenciatura em Geografia, com publicações na área de Geografia Humana. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

VILLEN, Patricia. Amílcar Cabral e a crítica ao colonialismo – Entre harmonia e contradição. Editora Expressão Popular. São Paulo, 2013. Resenha de: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Pará. Belém, v. 06, n. 02, p. 92-97, jul./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.