As Excelências do Governador. O panegírico fúnebre a D. Afonso Furtado, de Juan Lopes Sierra (Bahia/1676) | Alcir Pécora e Stuart B. Schwartz

O livro As excelências do Governador, panegírico fúnebre a Dom Afonso Furtado de Castro do Rio de Mendonça, composto em 1676 por Juan Lopes Sierra e organizado em edição modernizada por Stuart B. Schwartz e Alcir Pécora, foi publicado em 2002 pela Editora Companhia das Letras.

Ao estudioso norte-americano, Schwartz, couberam os apontamentos elucidativos quanto ao manuscrito de Sierra, no tocante aos diversos acontecimentos históricos que permeiam a composição do panegírico. O professor Alcir Pécora, por sua vez, analisa, no manuscrito, os seus aspectos estéticos, a partir de referenciais retóricos e poéticos tais como eles eram compreendidos e realizados no século XVII, no mundo ibérico.

O encontro casual de Stuart Schwartz com o manuscrito, em Lisboa, no ano de 1968, despertou-lhe, de imediato, a convicção de que aquele texto era de fundamental importância para os estudos do período colonial da História do Brasil. Por seu intermédio, assim, o Panegírico foi adquirido pela Universidade de Minnesota e, em 1979, saía uma versão em inglês (o texto é originalmente escrito em espanhol), mas apenas no decorrer da década de 90 se constata, entre pesquisadores brasileiros, uma real consciência da dimensão histórica e literária do texto.

Segundo Schwartz, ao se comparar o manuscrito de Minnesota a uma outra versão conhecida, depositada na Biblioteca da Ajuda, em Portugal, percebe-se que esta última é uma cópia da primeira, como evidenciam referenciais geográficos diferentes existentes em ambos os manuscritos, bem como a observação de que a versão da Ajuda seria “uma cópia para apresentação, enriquecida com os poemas e um frontispício decorativo, e escrito de maneira mais cuidadosa” (p. 9).

Para Pécora, que teve contato com a tradução inglesa da obra em 1997, o Panegírico, conquanto o autor se auto-intitule “um rústico”, é possuidor de enorme riqueza no que diz respeito à sua composição retórico-poética. Aliás, o auto-referenciar-se como rústico nada mais é do que o uso da tópica retórica da modéstia afetada, algo de que voltaremos a falar, sempre amparados nas palavras dos organizadores.

Consoante as observações feitas por Schwartz na introdução do livro ora resenhado, a obra de Juan Lopes Sierra pertence, no âmbito dos estudos literários, ao gênero conhecido como panegírico honorífico, típico da literatura ibérica, e, ademais, o seu valor histórico é de grande relevância.

O homenageado pelo panegírico, D. Afonso Furtado de Castro do Rio de Mendonça, Visconde de Barbacena e Governador do Brasil de 1671 a 1675, tem os seus grandes feitos, a sua vida e a sua morte narrados por Sierra.

Como nos mostra Schwartz, são revelados no corpo da obra diversos aspectos importantes da História do Brasil Colonial, mormente aqueles ligados ao desbravamento do interior, ao confronto bélico com os índios hostis, à procura ensandecida por minas de ouro, prata, diamantes, aos desdobramentos destes últimos fatos em disputa pelo poder, e à organização militar da colônia; sem desprezar, é claro, as configurações culturais que ora podem aflorar de maneira explícita, ora podem ser recuperadas a partir de ilações. Sem dúvida, no que tange à questão cultural, é de grande importância e riqueza a descrição das cerimônias públicas do enterro, o ritual fúnebre e as suas pompas, dignas da celebração da morte de uma proeminente figura representante do Estado Monárquico, e o comportamento da elite colonial diante deste episódio.

O período do governo de Afonso Furtado de Castro é revelador de uma mudança significativa na estrutura econômica do Império Colonial Português e da posição de destaque ocupada pela colônia brasileira. O ano de 1670, para muitos, é o marco inicial da crise da produção açucareira no Brasil, atividade econômica essencial para que se mantivessem os luxos da corte portuguesa. Assim, a procura por ouro na África e América portuguesas torna-se uma atividade imperativa. É nesse ínterim que chega ao Brasil o novo governador geral, D. Afonso Furtado, personagem central do panegírico, embora o manuscrito não seja muito pródigo, digamos, horizontalmente, em fornecer dados sobre sua personalidade e vida privada. Assoma, no encômio, apenas a figura de um experiente soldado, preocupado com a hierarquia, a lealdade, a obediência. Soldado preocupado em apaziguar conflitos e, sobretudo, em lançar-se na direção do interior na incessante busca de riquezas.

Uma das mais importantes atitudes tomadas por Afonso Furtado, bastante enfatizada no Panegírico, foi a aliança com os paulistas, para que esses pudessem auxiliar no combate aos índios. A grande habilidade dos bandeirantes paulistas em lidar com a resistência dos silvícolas foi um grande adjutório na empreitada em que se lançou o Governador Geral, e possibilitou, à medida que as suas frentes avançavam, a proteção das fazendas face os assoladores ataques indígenas, concomitantemente garantindo novas áreas para a criação de gado e a atividade mineradora.

Assim, todas as ações narradas no panegírico, centralizadas pela figura do governador encomiado, caminham para um píncaro, a convalescença e a morte honrada do mesmo governador. Na sociedade estamental portuguesa, mesmo um evento como a morte deveria desempenhar o papel de mantenedor da ordem social. Mais do que um fim, ela era um símbolo de toda a vida do indivíduo membro do corpo místico do Estado, cujas virtudes deveriam ser respeitadas e imitadas e os vícios e erros purgados e superados, obviamente, com o auxílio autorizado da Santa Madre Igreja. Portanto, a morte, como um rito que irradiava valores sociais na sociedade colonial do século XVII, tinha um valor eminentemente didático. Dessa forma, todos os grandes feitos empreendidos por D. Afonso Furtado de Castro, desde a chegada imponente, o apaziguamento das quizilas, o desbravamento do sertão ínvio, a promoção da aliança com os paulistas, até a procura incansável pelas sonhadas riquezas minerais, culminam com a aquisição da doença e, honrosamente, a aceitação, como cristão, da morte.

Porquanto o seu grande interesse pelo panegírico tenha-o feito empenhar-se à recolha de informações acerca da vida e produção de Juan Lopes Sierra, Stuart B. Schwartz não logrou êxito. Não que tenha lhe faltado ânimo ou método, mas porque a vida do panegirista é falta de documentos, de marcas que possam ajudar a reconstituir a sua passagem pela Salvador setecentista, onde provavelmente ele deu à luz a obra a D. Afonso Furtado. O que se sabe sobre Sierra são as informações que o próprio apresenta no texto, com as quais se atesta que ele tinha 72 anos quando da escrita do panegírico, além de outras, pela desimportância, aqui indignas de nota. A referência à própria rusticidade , embora o pesquisador norte-americano não desconheça o seu uso retórico, poderia ser confirmada com os erros ortográficos banais presentes no texto, bem como com a falta de requinte da obra; segundo Schwartz, a falta de referência à sua filiação religiosa ou a qualquer prêmio a ele concedido pela coroa seria indício de sua formação como autodidata que, segundo palavras do próprio Sierra, teria tido apenas nove meses de instrução.

Mesmo uma análise que se queira unicamente histórica do manuscrito, se é que isso poderia se fazer viável, considerando-se o mínimo de rigor metodológico, não pode ignorar que omissões, ênfases, recortes etc., não são, em hipótese alguma, aleatórios; estes procedimentos intentam, sempre, no interior de uma obra com o fim claro de encomiar, atingir a este objetivo.

A leitura do professor Alcir Pécora, centrada nos aspectos retóricos e poéticos do texto, informa-nos que o panegírico, tal como se configurou na cultura ibérica, é a narrativa de ações de um homem, ocupante de importante cargo público, de caráter e temperamento ímpares. Mais do que uma bajulação vil, esse tipo de texto almeja “a produção do exemplo virtuoso para a emulação das pessoas” (p. 48), garantindo, assim, a saúde do organismo do Estado.

Segundo Pécora, quando a figura encomiada é um governador, os argumentos utilizados devem convergir para magnificar as virtudes da justiça, da eqüidade, da distribuição equânime dessa justiça, consoante a posição de cada indivíduo no corpo do Estado monárquico. Juan Lopes Sierra parecia ser conhecedor das preceptivas (conjunto de normas que orientava a produção letrada no século XVII, legado pelos antigos, desde a Grécia, e extraído dos modelos julgados excelentes pelos preceptores), pois o seu texto articula devidamente três argumentos extraídos dos lugares comuns atinentes à justiça ligada ao governante, segundo as regras retóricas: o exercício do mando; a prudência; e o encargo, fardo e trabalho de governar sem procurar privilégios diante da lei.

Da primeira parte do Panegírico, que Alcir Pécora chama de liminares, composta de título, dedicatória, prólogo e exórdio, o detalhe mais notável é a persona do rústico, adotada pelo autor e que, segundo o professor Pécora, independente de uma comprovação no vivido, desempenha importante papel na composição do encômio, com uma referência especial a dois desdobramentos: a) o uso da modéstia afetada, em que o autor, de pronto, subordina-se hierarquicamente, reconhecendo a sua pequenez diante da dimensão grandiosa da matéria tratada; b) a afirmação de fidedignidade do relato, já que, desprovido de arte, o autor não teria como florear, fantasiar os fatos por ele relatados, ganhando a sua narrativa, assim, o foro de verdade. Pécora mostra ainda como o fato de se dizer com 72 anos de idade, quando da escrita do texto, angaria para o autor, além da benevolência do leitor, o respeito à experiência de quem escreve. E mais: a rusticidade confessa do autor pede a destreza de um leitor nobre, na época também denominado discreto, que saiba preencher, com a sua erudição superior, as lacunas, os conceitos deixados vazios ou incompletos.

Um panegírico compõe-se ainda do exórdio, que prepara o desenvolvimento da narração propriamente dita, a qual, consoante os preceitos retóricos que regem a composição de uma obra de tal natureza, vai mostrar como a chegada do governador foi obra da providência divina; como a vida do governador logrou sucessos gloriosos; como o herói foi desprovido de culpa nos supostos fracassos da sua administração.

A totalidade das ações de D. Afonso Furtado de Castro vai atribuir-lhe virtudes civis e teologais: justiça, prudência, temperança e fortaleza, relativas às primeiras; fé, esperança e caridade, relativas às segundas.

O professor Pécora mostra, em acurada análise bibliográfica, de que maneira a disposição das ações do Governador na obra, bem como a extensão, o número de páginas ocupadas por cada ação, intensifica a natureza laudatória do texto. Por meio da alternância das várias linhas narrativas – a conquista dos bárbaros (ação bem-sucedida); a procura das minas (ação malsucedida); ações intermediárias (todas bem-sucedidas) – há uma predominância dos acontecimentos favoráveis, na ordem de 80%, em detrimento de apenas 20% dos acontecimentos malogrados. Dessa forma, os fracassos são dissolvidos diante da quantidade bastante superior dos êxitos. Conforme demonstra Alcir Pécora, Juan Lopes Sierra ainda utiliza, à guisa de justificativa para os infortúnios administrativos de D. Afonso Furtado, parábolas que, aparentemente, e da maneira abrupta como são intercaladas na narrativa, nada teriam a ver com o seu eixo central.

As últimas ações do governador, desde que contraíra a doença até sua morte, soam no panegírico “no tempo da enunciação, como citações da fala de um morto” (p. 56), o que serve, como recurso retórico, para dar mais dinamismo e vivacidade à narrativa. Daqui por diante, dá-se a luta do moribundo com a morte. Sierra, mais uma vez, comparece com as tópicas mais usadas nesta situação: o temor pelas dores físicas; o sofrimento que se acumula até o último instante; a preocupação com a salvação ou a danação da alma; o medo do desconhecido, da hora precisa da travessia para a morte.

A batalha do doente para conseguir a salvação da sua alma implica, segundo o rito católico, o domínio dos temores; a confissão; a contrição; o pedido de perdão aos inimigos; a encomenda de orações e missas; as últimas decisões concernentes ao cargo que ocupa(va) etc. Doravante, com a morte consumada, opera-se a descrição do aparato fúnebre: a ornamentação da sala onde o corpo será velado; o cerimonial dos disparos intermitentes de artilharia, o repicar dos sinos, a posição dos terços da infantaria; o acompanhamento do corpo e os arranjos presentes na igreja; a descrição dos monumentos erguidos em homenagem ao morto. Pécora destaca que toda a pompa que tal aparato ostenta se dá em virtude de o morto ser um homem que viveu em função do bem do Estado, sempre a serviço do Rei, e que todo esse rito serve de sustentáculo à ordem hierárquica vigente, pois diante de tão imponente cerimônia, “a fama dada ao corpo do herói excita à emulação de sua alma” (p. 63). A última parte do panegírico configura-se como o momento de rebater os argumentos dos inimigos, já que eles jamais devem ser ignorados, mas antes reduzidos a elementos anônimos e sem importância.

As análises dos organizadores da edição são, pois, indispensáveis a uma compreensão do panegírico fúnebre, tanto enquanto documento revelador de importantes caracteres de um momento obscuro na História do Brasil, quando ainda era colônia portuguesa, quanto como resgate de uma peça importante, exemplo de um fazer literário estranho ao público moderno e que, por isso mesmo, só poderia ser resgatada pelo trabalho de especialistas, capazes de respeitar a historicidade das práticas letradas vigentes naquele período.

Ratificamos, também, a conciliação entre análise histórica e análise retórico-poética. Ambos os estudiosos conseguem complementar-se em suas respectivas ilações a respeito da obra, convergindo para que ela possa ser o mais integralmente compreendida pelos leitores. A existência, ainda, de cinco apêndices: a) Pessoas; b) Uma nota acerca da organização militar portuguesa e brasileira; c) Genealogia de Afonso Furtado, Visconde de Barbacena; d) Pesos, medidas e câmbios; e) Transcrição paleográfica do manuscrito, apenas confirma a nossa observação.

Finalmente, apenas obtemperamos que Schwartz utiliza, ao longo da sua análise, para designar a arte produzida no período, inclusive o próprio panegírico, a rubrica Barroco, considerada inadequada, porque anacrônica, segundo os estudos empreendidos no Brasil pioneiramente pelo professor João Adolfo Hansen, da USP, e, pelo próprio professor Alcir Pécora, coorganizador do volume ora resenhado, da Unicamp.


Resenhista

Vanderli Marques da Silva – Estudante do curso de especialização em Teoria e História Literária da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

PÉCORA, Alcir; SCHWARTZ, Stuart B. (Orgs.) As Excelências do Governador. O panegírico fúnebre a D. Afonso Furtado, de Juan Lopes Sierra (Bahia, 1676). São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Resenha de: SILVA, Vanderli Marques da. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v. 3, n. 1, p. 223-229, 2003. Acessar publicação original [DR]

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.