As Irmandades de São Miguel e as Almas do Purgatório: culto e iconografia no Setecentos mineiro | Adalgisa Arantes Campos

A obra As Irmandades de São Miguel e as Almas do Purgatório: culto e iconografia no Setecentos mineiro é a publicação aprimorada da tese de doutoramento defendida por Adalgisa Campos em 1994, junto ao Departamento de História da Universidade de São Paulo. Engavetada durante considerável tempo, a autora mobilizou sua publicação somente em 2013. Ao longo do livro, a historiadora coteja a documentação levantada com trabalhos consagrados sobre devoção cristã, representação dos lugares do além-mundo, etc. (destaque para os estudos dos historiadores Jacques Le Goff e Michel Vovelle).

O estudo de Adalgisa Campos tem como escopo a análise do culto às “Almas Santas” através de uma rica análise documental, sobretudo iconográfica. Esta fecunda gama documental permite ao leitor uma abordagem mais ampla sobre o tema, especialmente no tocante à religiosidade. Ainda que voltada para a realidade das Minas nos séculos XVIII e XIX, a autora não deixa de examinar as representações das Almas na iconografia portuguesa. Nesse sentido, o trabalho oferece uma comparação sobre a representação das Almas supliciadas no Purgatório em ambas as localidades.

Compreendendo que a religiosidade não deve ser meramente concebida por meio de modelos rígidos e fechados, Adalgisa Campos ressalta a importância das interações culturais existentes na Colônia devido à convivência entre diversas culturas que lá existia. Durante o processo de urbanização das Minas, houve, de acordo com Campos, um cuidado em transferir a mesma cultura barroca de origem, conjugada às próprias visões de mundo na Colônia, tendo em vista que, muitas vezes, pode ter sido influenciada pela multiplicidade cultural intrínseca à história da formação de Minas Gerais. O dinamismo existente na cultura barroca nas Minas tornou possível sua existência até meados do século XIX. Desse modo, a conclusão da historiadora é que a estética barroca, em contraposição ao cenário da América Espanhola, pouco se transformou quando transplantada para aquela região, no entanto manteve dessemelhanças quando comparada aos exemplos paulista e baiano.

Ao longo do primeiro capítulo, a historiadora dedicou-se a analisar como o Purgatório e seus habitantes, as “Almas Santas”, foram representados iconograficamente. A autora apresenta o que a doutrina religiosa pregava sobre esse terceiro local através de diversas fontes, desde textos doutrinários até Compromissos de irmandades mineiras. A pesquisadora também analisa concisamente o Purgatório dantesco descrito em A Divina Comédia. O foco do capítulo é apresentar as Almas confinadas no Purgatório enquanto santas, isto é, enquanto Almas capazes de operar prodígios aos vivos, dada sua proximidade com Deus. As Almas se encontravam em estado de aflição, pois desejavam a visão beatífica o quanto antes e para conseguirem alçar aos céus mais brevemente se colocavam a rezar com mãos postas em sinal de oração. Esse cenário é o qual Adalgisa Campos encontra representado nas irmandades, nos altares e nas documentações da região das Minas. Diferentemente das Almas condenadas à danação, as Almas do Purgatório eram representadas imersas no fogo purificador que não as abalava, pois se dedicavam incansavelmente às orações a fim de suspenderem à Igreja Triunfante.

Conforme a crença da época, o corpo místico de Cristo era composto pela Igreja Triunfante integrada pela corte celestial, pela Igreja Padecente integrada pelas Almas suplicantes no Purgatório e, por fim, pela Igreja Peregrina ou Militante integrada pelos vivos. Os três componentes do corpo de Cristo possuíam relações entre si, o que legitimava a eficácia dos sufrágios. Para além de ajudar uma alma suplicante, a oração de um vivo para um morto podia resultar numa ajuda futura daquele morto para o vivo, isto é, havia um sistema de reciprocidade entre as partes desse corpo.

Em outras palavras, a noção “Almas Santas” estava relacionada ao fato dessas Almas serem capazes de auxiliar os vivos, ainda que estivessem encarceradas no Purgatório. Dessa forma, os vivos rezavam pelas Almas Santas, isto é, para que elas alcançassem mais rapidamente a Igreja Triunfante e também rezavam para as Almas Santas, visando que estas intercedessem à corte celestial, dada sua proximidade com os céus. O termo “Almas Santas” foi encontrado recorrentemente por Adalgisa Campos no corpus documental por ela analisado.

No segundo capítulo, a historiadora analisa como se deu a devoção às Almas em Portugal e como tal devoção foi expressa iconograficamente. Em Portugal, era comum a existência das “Alminhas”, que eram pequenos oratórios em homenagem aos falecidos. As “Alminhas”, em cujo retábulo representavam as Almas suplicantes, eram comumente localizadas em beiras de estradas e encruzilhadas. Além das “Alminhas”, em Portugal também tinham os cruzeiros que demarcavam, através de cruzes, que aquele território. Ao fazer um levantamento sobre a devoção às Almas em Portugal, Adalgisa Campos conclui que os lusitanos possuíam uma forte devoção às Almas que não foi transplantada identicamente para as Minas.

O terceiro capítulo apresenta um minucioso estudo sobre a importância das missas nas Minas. A historiadora explora os significados do sacrifício eucarístico, bem como a forma na qual os clérigos deveriam administrá-los com muita decência. As missas constituíam uma das principais formas de sufrágios pelos mortos, sendo consideradas mais eficazes na trajetória da alma aflita para a Igreja Triunfante. Ao analisar os testamentos mineiros, Adalgisa Campos constata a crença no Purgatório e eficácia da missa na redenção através dos pedidos de missas pelas almas que os testadores especificavam em seus testamentos. Muitas dessas missas eram encomendadas às Irmandades de São Miguel e outras invocações. As irmandades, enquanto famílias espirituais, eram responsáveis pelo cuidado de seus mortos. Essas oravam e celebravam missas em intenção daqueles irmãos que integravam a Igreja Padecente.

No quarto capítulo, Adalgisa Campos analisa os ofícios, as procissões e os sepultamentos ocorridos nas Minas no Setecentos. É importante salientar que, na época em questão, sepultar um cristão conforme as prescrições da Igreja era uma prática dispendiosa. No adro (grosso modo o entorno da igreja paroquial) era possível abrir as sepulturas gratuitamente, necessitando arcar apenas com o culto divino. Mas eram as sepulturas localizadas no interior do templo que as irmandades almejavam. Ao analisar os Compromissos de irmandades nas Minas, Adalgisa Campos explora a preocupação dos irmãos em conceder aos seus essas sepulturas diferenciadas, onde os corpos repousariam mais próximos ao sacrifício do altar. A historiadora cita que, na primeira metade do Setecentos, a Irmandade de São Miguel da Igreja Matriz do Pilar de Vila Rica pleiteou o direito de possuir dez covas na dita matriz, argumentando que o dito sodalício contribuía para a fábrica paroquial. O pedido não foi completamente atendido pelo bispo e a Irmandade conseguiu apenas seis covas no interior do templo paroquial.

As Almas também se beneficiavam com os ofícios e as procissões executadas pelos vivos. Os ofícios eram diversas orações ditas juntamente com a leitura de passagens bíblicas. Diferentemente da missa rezada, os ofícios barrocos eram repletos de pompa, logo eram também mais dispendiosos. Além desses conjuntos de orações, havia a Procissão dos Defuntos. Conforme as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, toda segunda-feira o vigário devia realizar a procissão a fim de que se rezasse para os defuntos. Normalmente, a irmandade que desempenhava tal norma eram as de São Miguel e Almas.

Já no quinto capítulo, é analisada a representação iconográfica de São Miguel na Europa e nas Minas, bem como a devoção ao santo. Desde a Baixa Idade Média, o santo esteve vinculado à Paixão de Cristo e ao Final dos Tempos. Com a difusão da crença no Purgatório no século XIII, o santo passou a ser representado com as vestes de soldado romano, ao invés da túnica de anjo. A balança que carregava consigo, a partir do Renascimento, passou a significar o julgamento individual. São Miguel era tido como um juiz no post-mortem, cujo simbolismo era expresso por meio da balança pesando as almas para separar os pecadores dos puros.

Ao analisar as imagens de São Miguel nas Minas no Setecentos, Adalgisa Campos afirma que as representações do Arcanjo com almas nos pratos da balança rapidamente se esgotou nas Minas. Além da colonização tardia na região, a historiadora aponta como hipótese para as balanças vazias os gastos que as miniaturas de almas consumiriam para as irmandades.

A representação iconográfica de São Miguel e de seus atributos teve grande difusão no território colonial, sendo comum a ereção de altares ao santo, como também a criação de irmandades e igrejas em sua homenagem. Foram as irmandades de São Miguel e Almas, segundo a historiadora, as principais responsáveis pela representação do Purgatório e das Almas Santas nas Minas. Eram esses sodalícios que se dedicavam a rezar pelos defuntos e convocar os demais fiéis para cuidar das almas de seus mortos. Desse modo, é possível afirmar a importante contribuição dessas irmandades para manutenção da crença no sistema do Purgatório nas Minas.

Por meio dessa breve resenha, intentou-se mostrar os principais objetivos de cada capítulo da obra de Adalgisa Campos. No entanto, para além de uma pequena descrição desses capítulos, é importante situar a pesquisa de Campos dentro dos estudos relativos à morte e às práticas fúnebres no período colonial e imperial. Hoje a historiografia brasileira já possui alguns trabalhos que podem ser considerados como referência no estudo da morte, como as pesquisas empreendidas por João José Reis, Claudia Rodrigues e Luiz Vailati. Com diferentes perspectivas de análise, tais pesquisas abordam minuciosamente a temática da morte, no entanto, a preciosidade do trabalho de Adalgisa Campos reside na sua análise iconográfica do Purgatório e das Almas Santas que possibilitou à historiadora a examinar melhor a cultura do barroco, bem como sua duração nas Minas.

Sem dúvidas, a obra de Campos serve de inspiração para novas pesquisas que intentem trabalhar em qualquer dimensão a morte enquanto objeto de estudo. Ainda que amedrontadora para alguns, a morte tem sido alvo de diversos pesquisadores nos programas de pós-graduação do país, mas que, certas vezes, ficam restritas e sem divulgação. Nesse sentido, a publicação da tese de Adalgisa Campos possibilitará um acesso mais abrangente a sua pesquisa e, quem sabe, instigar pesquisas mais aprofundadas. Não seria exagero afirmar que a leitura de As Irmandades de São Miguel e as Almas do Purgatório: culto e iconografia no Setecentos mineiro é imprescindível para aqueles que trabalham com a morte cristã, mas sem se limitar apenas ao público que trabalha sob a perspectiva cristã, servindo de pontapé para diversas reflexões sobre a finitude humana e suas representações.


Resenhista

Anne Elise Reis da Paixão – Mestranda em História Social Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]


Referências desta resenha

CAMPOS, Adalgisa Arantes. As Irmandades de São Miguel e as Almas do Purgatório: culto e iconografia no Setecentos mineiro. Belo Horizonte: C/Arte, 2013. Resenha de: PAIXÃO, Anne Elise Reis da. Temporalidades. Belo Horizonte, v.7, n.2, p.632-636, maio/ago. 2015. Acessar publicação original [DR]

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