Big tech: a ascensão dos dados e a morte da política | Evgeny Morozov

Inicialmente vistas como instrumentos de armazenamento de dados e facilitadores de comunicação, as plataformas midiáticas e digitais tornaram-se um “emaranhado confuso de geopolítica, finança global, consumismo desenfreado e acelerada apropriação corporativa dos nossos relacionamentos mais íntimos”, conforme aponta Evgeny Morozov (2018, p. 7), autor do livro aqui resenhado. Nascido em Soligorsk, na Bielorrússia, em 1984, estudou Economia e Administração de empresas na American University in Bulgaria, atuando como colaborador em jornais como The New York Times, The Economist, The Guardian.

Primeiro livro do autor publicado no Brasil, pela Editora Ubu, Big tech: a ascensão dos dados e a morte da política, reúne textos produzidos por Morozov entre 2013 e 2018 (ano da publicação original do livro, em inglês), apresentando um prefácio inédito na edição brasileira. Os nove capítulos do livro conversam entre si, mostrando o impacto no nosso cotidiano causado pela cultura dos dados e a questão do digital. Já no prefácio, Morozov cita como exemplo o caso das eleições brasileiras de 2018, no qual se deu maior peso para a viralização de mensagens propagadas no ambiente virtual acerca dos candidatos à presidência, do que para sua devida compreensão, demonstrando o poder político e o papel determinante das redes.

O autor inicia seu percurso histórico sobre o tema a partir da década de 1960, quando videoativistas, tendo câmeras portáteis e animados com a popularidade da tv a cabo, propuseram-se a “documentar as injustiças e contestar os poderes constituídos” (MOROZOV, 2018, p. 13); atitude considerada revolucionária, já que era possível o uso de tecnologias por indivíduos comuns para produção de seus próprios programas. Morozov (2018, p. 13) realiza uma leitura crítica desse momento, destacando a “ingenuidade absoluta da crença então demonstrada na força política dessas tecnologias” e trazendo sua análise para o tempo presente. Inicialmente colocado como algo democrático e capaz de construir uma aldeia global, o autor analisa o “mundo tecnológico atual” como “um domínio feudal, nitidamente partilhado entre as empresas de tecnologia e os serviços de inteligência” (MOROZOV, 2018, p. 15), que ditam e regem os comportamentos da sociedade contemporânea. Todavia, pontua que “o verdadeiro inimigo” não seria a tecnologia, mas o regime econômico e político contemporâneo, de caráter capitalista e neoliberal, tido por ele como “uma combinação selvagem do complexo militar-industrial e dos descontrolados setores banqueiro e publicitário” (MOROZOV, 2018, p. 30) e que faz uso das tecnologias mais recentes como forma de alcançar seus objetivos lucrativos. Nesse cenário, o comando caberia aos Estados Unidos e o conjunto de empresas pertencentes ao Vale do Silício seria sua parte mais visível.

Diante desse contexto, temos uma “retórica da emancipação” (MOROZOV, 2018, p. 19) através do consumo, a qual destaca uma multiplicidade de ferramentas produzidas no Vale do Silício, ferramentas que por sua vez geraram plataformas digitais de serviços para auxiliar nas atividades do nosso cotidiano, como Uber (que conecta alguém interessado no serviço de transporte a alguém disposto a ofertá-lo, contrapondo-se ao serviço de táxis) e Airbnb (que ajuda a localizar acomodações, evitando o setor hoteleiro); ambas são apresentadas como mais eficientes e baratas, características apreciadas pelo “típico cidadão neoliberal” (MOROZOV, 2018, p. 20).

As iniciativas do Vale do Silício ganharam forte aceitação, tornando-se a “narrativa propulsora do próprio capitalismo contemporâneo”, conforme aponta Morozov (2018, p. 22). Nesse sentido, o autor questiona, na Introdução do livro, se estamos diante do surgimento de “um verdadeiro pós-capitalismo cooperativo” ou apenas uma adaptação daquele já conhecido, com “a sua tendência a transformar tudo em mercadoria, mas com anabolizantes” (MOROZOV, 2018, p. 22). Assim, elenca razões para desconfiar de suas empresas, sendo algumas cabíveis de menção.

Primeiramente, tais empresas constroem aquilo que ele denomina “cerca invisível de arame farpado’ ao redor de nossas vidas” (MOROZOV, 2018, p. 31), apesar de prometerem mais liberdade, abertura e mobilidade. Esses elementos são comparados àqueles concedidos a um criminoso que foi recém-libertado, mas que ainda faz uso de uma tornozeleira. Exemplo disso seria um condutor que faz uso do Google para se locomover com seu veículo. Por mais que tenha autonomia sobre o carro, seus percursos e lugares frequentados são automaticamente registrados pelo sistema, tornando-se o automóvel algo próximo de “um santuário à vigilância – sobre rodas” (MOROZOV, 2018, p. 31).

Da mesma forma, o Vale do Silício impossibilitou que os indivíduos pensassem outros modelos de organização e gestão da infraestrutura comunicativa que não sejam aqueles produzidos nos Estados Unidos. Uma terceira razão seriam os modos de solucionar problemas existentes numa sociedade: através da produção de computação e processamento de informações. É aqui que temos a nossa situação atual: buscando inspiração no Vale do Silício, os formuladores de políticas redefinem as principais causas dos problemas como sendo a falta de informações apresentando como solução o fornecimento de dados através do uso de aplicativos. O “debate digital” (2018, p. 41), referindo-se à adoção de novas tecnologias de comunicação e informação, chega a um equívoco: por mais que seja capaz de promover a discussão sobre ferramentas, não consegue levar a reflexões sobre sistemas políticos, sociais e econômicos.

Vivemos diante da ascensão da “economia compartilhada”, criticada por Morozov, a qual faz o indivíduo “correr sempre atrás do dinheiro” (MOROZOV, 2018, p. 77); conecta-o com o mercado global e estabelece que tudo aquilo que possuímos, tangível ou não, seja classificado e ganhe algum tipo de identificador. Tudo ao nosso redor tem potencial para ser mediado pela tecnologia e ligado a um perfil que pode ser monetizado e aperfeiçoado: desde risadas num show de comédia até o conjunto de livros comprados ou sites visitados. A popularização da economia compartilhada atinge até o modo com que o Estado lida com a população como um todo.

Nesse cenário, temos um Estado de bem-estar social em crise, que não consegue cumprir o seu papel diante da sociedade, uma vez que a popularização das plataformas digitais gerou um “Estado do bem-estar privatizado, paralelo e praticamente invisível” (MOROZOV, 2018, p. 146). Através de sensores e da conectividade com a internet, os objetos mais cotidianos e banais adquiriram enorme poder de controlar nosso comportamento. Tal “inteligentificação da vida cotidiana” (MOROZOV, 2018, p. 84) tem um “padrão familiar”: há os “dados primários”, aquilo que pode ser visto num primeiro nível, tangível, possível de ser percebido (ex.: o local onde você dorme), e os “metadados”, no qual se entra num nível mais profundo e subjetivo, próprio de cada um (ex.: se você dorme bem, quais problemas de saúde você enfrenta e que uma boa noite de sono pode te ajudar), gerando ideias interessantes e eficientes, como colchões inteligentes, capazes de acompanhar a respiração e os batimentos cardíacos.

Intrínseco a isso, temos o “conto de fadas do ‘empoderamento do usuário’” (MOROZOV, 2018, p. 49) prometido pelo Vale do Silício, no qual a reputação do usuário ganha maior importância unindo-se à retroalimentação de informações, uma vez que pode ocorrer o registro e avaliação dos dados de cada indivíduo em plataformas digitais de serviços, seja como passageiro, estudante, hóspede, cliente; assim, gera uma comunidade na qual não se manifestam quaisquer diferenças sociais. O que importa é a classificação que o indivíduo recebe de alguém que utilizou seus serviços oferecidos na plataforma, ou se fez uso dele com um terceiro. Assim, o Estado algorítmico é posto como novo Estado de bem-estar social, apresentando uma nova opção política: “por que confiar em leis, se podemos contar com sensores e mecanismos de retroalimentação?” (MOROZOV, 2018, p. 84). Contudo, tal perspectiva é criticada pelo teórico, pois ele vê a necessidade da adoção de tecnologias pautadas pelo respeito ao Estado de bem-estar social, gerando condições ideais para o desenvolvimento humano.

O debate das “questões digitais” é fundamental “para o futuro da privacidade, da autonomia, da liberdade e da própria democracia” (MOROZOV, 2018, p. 135). Quando um partido político deixa de lado a sua responsabilidade em relação ao digital, Morozov aponta que anula a sua responsabilidade em relação ao futuro da própria democracia. Esta, por sua vez, sempre teve como alicerces a ideia de que o conhecimento do mundo é incompleto e de que não existe resposta definitiva para grande parte dos questionamentos do campo político. A política que coloca as questões digitais como solução para tudo “nos promete perfeição e racionalidade”, mas nega a existência da imensa complexidade das relações humanas, tornando a atividade política algo individualista ao invés de comunitária.

Na parte final do livro, Morozov aponta a necessidade da reflexão sobre o papel da tecnologia como algo emancipatório, indicando que cientistas (como sociólogos e historiadores), jornalistas e artistas podem contribuir para romper o discurso hegemônico do Vale do Silício, de modo a revelar as lutas de poder nele presentes e questionando a neutralidade dos dados apresentados pelos algoritmos. Assim, é preciso uma reflexão “fora da ‘internet” (MOROZOV, 2018, p. 22), no sentido de ir além da propaganda realizada pelo Vale do Silício, e dar maior atenção ao funcionamento das empresas de alta tecnologia e à conjuntura econômica e geopolítica na qual estão inseridas. Dos vários elementos discutidos ao longo do livro, aquele que se torna mais evidente e que permeia os capítulos é que, para reconquistar a “soberania popular sobre a tecnologia” (MOROZOV, 2018, p. 25), é necessário que a sociedade tenha primeiramente consciência e posicionamento crítico sobre a política e a economia num mundo cada vez mais capitalista.


Resenhista

Lucas Kammer Orsi – Mestre em História do Tempo Presente pela Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

MOROZOV, Evgeny. Big tech: a ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu Editora, 2018. Resenha de: ORSI, Lucas Kammer. PerCursos. Florianópolis, v. 21, n. 45, p. 104 – 109, jan./abr. 2020. Acessar publicação original [DR]

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