Black Freethinkers: a History of African American Secularism | Christopher Cameron

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Christopher Cameron | Foto: UNC Charlott

Uma das características da comunidade negra dos EUA é religiosidade. Pesquisa divulgada pela Pew Research Center no início de 2021 revelou que 78% dos afro-americanos possuem uma crença religiosa, enquanto 18% se definem como sem religião, 2% como agnósticos e 1% como ateísta (MEHTA, 2021). Tal resultado é reforçado quando se pensa em figuras importantes da história dessa comunidade, como o pastor Martin Luther King Jr. (1929-1968) e o muçulmano Malcolm-X (1925-1965), líderes de movimentos socais pelos direitos civis nos anos 1950 e 1960.

Black Freethinkers: a History of African American Secularism, publicado em 2019 pelo historiador Christopher Cameron, busca ser, a partir de pesquisa histórica, um contraponto à visão de uma comunidade afro-americana essencialmente religiosa: “Os livrespensadores negros desafiam essa tendência argumentando que o ateísmo, o agnosticismo e o humanismo secular têm sido componentes centrais da vida intelectual e política negra desde o século XIX”. (CAMERON, 2019: IX) [tradução do autor]. [1]

Cameron é professor de história na Universidade da Carolina do Norte, EUA. Os temas de sua área de pesquisa são história religiosa e intelectual afro-americana, escravidão e abolição, liberalismo religioso e secularismo nos Estados Unidos. É fundador da African American Intellectual History Society e co-editor da New Perspectives on the Black Intellectual Tradition.

A publicação mais recente de Cameron é Black Freethinkers: a History of African American Secularism, infelizmente ainda sem edição brasileira. Na introdução da obra, o autor já ressalta a contribuição de sua pesquisa ao argumentar que a escassa atenção dos estudiosos à história do livre-pensamento afro-americano decorre da “suposição de que os negros são naturalmente religiosos e que a igreja negra sempre esteve no centro da comunidade negra” (CAMERON, 2019: X) [tradução do autor].[2] As raízes desse ponto de vista poderiam ser encontradas nos debates ocorridos no movimento abolicionista dos EUA do século XIX, vide argumentos expostos no livro Slavery, publicado em 1835 pelo líder religioso William Ellery Channing, os quais persistiram ao longo dos séculos XX e XXI.

Contudo, pesquisas de anos mais recentes têm questionado a tese sobre a comunidade negra ser naturalmente religiosa, especialmente no que diz respeito à adesão da população cativa ao cristianismo protestante na era da escravidão nos EUA. Christopher Cameron informa que o pesquisador Anthony Pinn aborda desde 1998 a presença de ideias humanistas na população escrava, como em Varieties of African American Religious Experience e em The End of God-Talk. Daniel Fountain, em Slavery, Civil War, and Salvation, obra de 2010, realça a presença da religiosidade africana e do ceticismo religioso na população escrava dos Estados Unidos.

É possível dizer que o trabalho de Cameron aparece nesse processo de revisão historiográfica. Nesse sentido, abordaria o livrepensamento afro-americano em um recorte cronológico que abarca a época da escravidão nos Estados Unidos nas primeiras décadas do século XIX até os anos iniciais do século XXI.

O primeiro capítulo de “Black Freethinkers” é intitulado Slavery and Reconstruction. Cameron inicia essa parte do livro afirmando que o livre-pensamento é forma de expressar uma visão racional do mundo, em que a existência de Deus não é necessariamente recusada, mas sua concepção bíblica é substituída por outra, que a entende como “aquele que criou o mundo por meio de leis racionais e imutáveis”. Uma das consequências dessa visão é o questionamento da autoridade religiosa sobre temas do espaço público. Porém, enquanto o livre-pensamento entre a população branca nos EUA floresceu nas últimas décadas do século XVIII a partir do deísmo e de um cristianismo liberal de fundo iluminista, “o livre-pensamento negro cresceu a partir da instituição da escravidão e das condições que os negros suportavam dentro dela” (CAMERON, 2019: 10) [tradução do autor].[3]

Esse capítulo investiga o livre-pensamento na população negra dos EUA no século XIX no antes e no pós-abolição, ocorrida em 1865. As narrativas produzidas por ex-escravizados (Austin Steward, Henry Bibb, Harriet Jacobs) é uma das fontes privilegiadas por Cameron para mostrar o mosaico de crenças nas comunidades escravas dos estados sulistas (de protestantes, passando por católicos, adeptos do vodu e céticos). Um ponto destacado nessas narrativas é a denúncia sobre a hipocrisia dos proprietários de escravos que falavam em religião bondosa e davam tratamento desumano aos trabalhadores cativos. O segundo ponto que esse capítulo aborda é a trajetória e as ideias de negros libertos que se tornaram livres-pensadores durante esse século, com destaque para Frederick Douglas, crítico humanista das igrejas que apoiavam a escravidão e que, em 1889, se sagrou vice-presidente da Free Religious Association, organização defensora da separação Igreja e Estado.[4]

The New Negro Renaissance é o segundo capítulo do livro de Cameron. Aqui, tendo como pano de fundo a intensa migração de populações negras do sul para as grandes cidades do norte dos EUA em busca de melhores condições de vida e trabalho nas últimas décadas do século XIX, aborda-se um novo capítulo do livrepensamento negro: “Muitos livres-pensadores afro-americanos da Nova Renascença do Negro combinaram o ceticismo religioso predominante entre os escravos com o humanismo predominante entre os livres-pensadores brancos” (CAMERON, 2019: 42) [tradução do autor].[5] Dito de outro modo, houve, nesse momento, uma rejeição por parte das posições deístas e agnósticas avançadas mescladas ao comprometimento na luta por melhoria da vida dos negros.

A Nova Renascença do Negro ocorreu entre o fim da década de 1910 e o início dos anos 1930 por meio de uma explosão criativa que se evidenciou de modo particular na literatura e projetou nomes como Alain Locke, Claude McKay e Langston Hughes. Uma contribuição relevante foi dada por escritoras que exploraram temas sobre feminismo na perspectiva do livre-pensamento. Por exemplo: Nella Larsen, com a novela Quicksand, denunciou a opressão da vida doméstica enfrentada por mulheres casadas da classe média negra; em Their Eyes Were Watching God, Zora Neal e Hurston criticou, de forma similar, noções de casamento e conforto material que implicavam na subserviência das mulheres.[6]

Em Socialism and Communism, terceiro capítulo do livro de Cameron, é examinado o envolvimento de livres-pensadores negros com os partidos socialistas e comunistas no período dos anos 1910 aos 1940. Hubert Harrison, A. Philip Randolph, W. E. B. Du Boisn [7], Richard Wright e Louise T. Patterson foram intelectuais que estabeleceram conexão entre o internacionalismo e o anticolonialismo do pensamento marxista com o humanismo secular [8]. Ao verem a Igreja como ferramenta de opressão capitalista dos brancos, “os livres-pensadores negros do período entre guerras abraçaram partidos políticos abertamente seculares que se tornaram cada vez mais hostis às ideias e instituições religiosas tradicionais” (CAMERON, 2019: 82) [tradução do autor].[9]

A participação de livres-pensadores negros nos partidos socialistas e comunistas deixou publicações de revistas como legado, tais como Crusader e Messenger; criação de associações, como a Irmandade de Sangue Africano; e produção intelectual que transcendeu o campo literário [vide textos políticos e sociológicos]. O feminismo igualmente marcou presença nesse cenário por meio de nomes como Audley Moore, Grace P. Campbell e Louise T. Patterson. Cameron chama atenção para o fato de muitos desses livrespensadores terem expressado posições ateístas e agnósticas e desenvolvido consciência da comunidade negra internacional com uma história em comum.

O último capítulo do livro de Cameron é Civil Rights and Black Power. Aqui, o autor destaca que o livre-pensamento negro se fortaleceu nos anos 1960/70, quando o tabu em torno de discussão sobre ceticismo religioso perdeu força. Para tal, colaboraram maior acesso à educação e criação de grupos políticos e movimentos culturais na comunidade negra, como o Comitê de Coordenação Não-Violenta de Estudantes, o movimento de artes negras e o Partido dos Panteras Negras de Autodefesa. Como livres-pensadores da época, Stokely Carmichael, James Forman, James Baldwin, Huey Newton e Lorraine Hansberry “frequentemente denunciavam o cristianismo em termos mais duros do que os seus predecessores e continuaram a romper os laços entre religião, racismo e patriarcado nos Estados Unidos” (CAMERON, 2019: 120) [tradução do autor].[10]

James Forman foi decisivo na criação do “Black Power” como movimento e ideologia nos Estados Unidos, o qual teve entre seus princípios defesa da autonomia econômica, orgulho da cultura e ação política independente para a comunidade negra. Essa posição foi reforçada com o surgimento do Partido dos Panteras Negras em 1966, que teve entre seus fundadores Huey Newton. Esse partido frisou a necessidade de autodefesa da comunidade afro-americana e teve forte influência das ideias marxistas, que contribuíram para articular crítica ao papel histórico da religião nos EUA com uma mudança revolucionária do país.

Enquanto isso, o movimento de arte negra retomou temas da Renascença do Novo Negro, como o prestígio do nacionalismo cultural, da música e literatura negras, mas “incluindo prevalência da linguagem antibranca e maior valorização do vernáculo negro” (CAMERON, 2019: 150) [tradução do autor].[11]

No posfácio de “Black Freethinkers”, Cameron explana brevemente sobre a trajetória do livre-pensamento negro nos anos que se seguiram à luta do movimento pelos direitos civis das décadas de 1950/60. De acordo com ele, o livre-pensamento permaneceu proeminente na literatura afro-americana, especialmente entre escritoras negras, com destaque para Octavia Butler e Alice Walker, que trataram em seus livros de temas como feminismo, religião e racismo.[12] Um segundo aspecto desse período mais recente diz respeito à institucionalização de um movimento de livre-pensamento afro-americano a partir de associações como African Americans for Humanism (1989), Black Skeptics of Los Angeles (2010), Black Atheists of America (2011) e Black Nonbelievers(2011).

Para Cameron, a criação dessas associações reflete a expansão do secularismo negro nos EUA, especialmente o crescimento da categoria “sem-religião” na população afro-americana a partir de meados dos anos 1990. E, via projeção de mulheres como líderes, essas associações dão ênfase ao fato de que as igrejas negras têm falhado em combater o sexismo, o patriarcalismo e a homofobia nas comunidades afro-americanas: “Os novos ateus negros acham que não basta negar a existência de Deus, ensinar evolução nas escolas ou lutar pela separação entre Igreja e Estado. Eles querem trazer soluções mundanas para problemas práticos” (CAMERON, 2019: 173) [tradução do autor].[13]

“Black Freethinkers” é ótima oportunidade para conhecer as novas abordagens acadêmicas nos EUA sobre a história da relação da comunidade afro-americana com a religião, além de abordagens sobre o livre-pensamento e sobre as diferentes formas de descrença religiosa, como ateísmo e agnosticismo. Trata-se de trabalho de história intelectual que não esquece os aspectos sociais, políticos e culturais que envolvem o objeto de pesquisa. Como nota final, o mercado editorial nacional torce para que, em um futuro próximo, uma edição da obra em língua portuguesa seja publicada no Brasil.

Notas

1. No original: “Black Freethinkers challenges this trend by arguing that atheism, agnosticism, and secular humanism have beem central components of black intellectual and political life since the nineteenth century”.

2. No original: “assumption that black people are naturally religious and that the black church has always been at the center of the black community”.

3. No original: “black freethought grew out of the institution of slavery and the conditions blacks endured within it”.

4. É oportuno mencionar que no livro O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência, Paul Gilroy ressalta como intelectuais como Frederick Douglas ajudaram a questionar os paradigmas da modernidade presentes no Ocidente e, de modo particular, nos Estados Unidos (GILROY, 2001).

5. No original: “Many african american free-thinkers of the New Negro Renaissance would combine the religious skepticism prevalent among slaves with the humanism prevalent among white freethinkers”.

6. ZoraNealeHurston também teve um papel importante na fase inicial de desenvolvimento da antropologia norte-americana. Ainda pouco conhecida do público brasileiro, recentemente a revista Ayé dedicou um número especial ao trabalho de ZoraNealeHurston. Para mais detalhes ver: (AYÉ, 2021).

7. Vale destacar que Du Bois participou da fundação da Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (NAACP), fundada em 1905 e importante na luta pelos direitos civis da comunidade negra nos EUA.

8. Esses intelectuais também atuaram em prol do pan-africanismo, o qual tinha entre seus objetivos a luta pela libertação dos povos africanos do colonialismo dos brancos. Para mais detalhes ver: (KODJO, CHANAIWA, 2010).

9. No original: “black freethinkers of the interwar period embraced overtly secular political parties that became increasingly hostile to traditional religious ideas and institutions”.

10. No original: “often denounced christianity in harsher terms than their predecessors had done and continued to chip away at the ties between religion, racism, and patriarchy in the United states”.

11. No original: “including the prevalence of antiwhite language and a greater appreciation for the black vernacular”.

12. Entre as obras vale registrar Kindred: laços de sangue (1979) de Octavia Butler e A Cor Púrpura (1982) de Alice Walker.

13. No original: “New black atheists think that is not enough to deny the existence of God, teach evolution in schools, or fight for the separation of church and state. They want to bring worldly solutions to practical problemns.

Referências

CAMERON, Christopher. Black Freethinkers: a History of African American Secularism. Illinois: Northwestern University Press, 2019.

FIRE!!! Textos Escolhidos de Zora Neal eHurston (Edição Especial). In: Ayé, Revista de Antropologia, março 2021. Acesso em: 31/05/2021.

GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed. 34; Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.

KODJO, Edem e CHANAIWA, David. Pan-africanismo e libertação. In: MAZRUI, Ali A. e WONDJI, Christophe (edit.). História geral da África, VIII: África desde 1935. Brasília: UNESCO, 2010, p. 897-924.

MEHTA, Hemant. Survey: 21% of Black Americans Are Religious “Nones” but Very Few Are Atheists. Friendly Atheist, 16 de fevereiro, 2021. Acesso em: 13/03/2021.


Resenhista

Ricardo Oliveira da Silva – Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Professor Adjunto de História da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), Campus de Nova Andradina-MS; Líder do Grupo de Pesquisa cadastrado no CNPq Ateísmo, descrenças religiosas e secularismo: história, tendências e comportamentos. E-mail: [email protected]


Referências desta resenha

CAMERON, Christopher. Black Freethinkers: a History of African American Secularism. Illinois: Northwestern University Press, 2019. Resenha de: SILVA, Ricardo Oliveira da. Historiae. Rio Grande, v.12, n.1, p. 284-291, 2021. Acessar publicação original [DR].

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