Caminhos do sertão: ocupação territorial, sistema viário e intercâmbios coloniais dos sertões da Bahia | Erivaldo Fagundes Neves e Antonieta Miguel

Na primeira metade do século XX, os caminhos antigos foram profusamente pesquisados por autores como Capistrano de Abreu, Alfredo Ellis Júnior, Felisbello Freire, Basílio de Magalhães, Afonso Taunay e Mafalda Zemella. O enfoque era o da formação territorial brasileira, então compreendida como uma relação entre a exploração sertanista, o povoamento brasílico e os caminhos de circulação – é esse, de fato, o título de uma das obras de Capistrano de Abreu, que produziu páginas que estão entre as mais belas sobre o avanço da fronteira de colonização brasílica dos sertões.1

Somando-se a esses historiadores, de renome nacional, pesquisadores regionais e locais detalhavam o conhecimento do tema, esmiuçando os roteiros e a ação de sertanistas paulistas, baianos e reinóis. É esse o caso de autores como Salomão de Vasconcelos, Urbino Vianna, Pedro Calmon, Borges de Barros, Moacir Silva, Enéas Martins Filho e Dermeval José Pimenta.

Na segunda metade do século o advento de uma historiografia de base materialista, voltada para os grandes processos econômicos e as explicações gerais da sociedade brasileira, de certa forma esvaziou temas específicos como o sertanismo, a expansão territorial e os caminhos. Não parecia, entre as décadas de 1950 e 1970, fazer sentido a pesquisa de assuntos como os roteiros de antigas expedições, os marcos geográficos da expansão territorial, a atividade de bandeirantes. Temas como esses foram, assim, relegados para o âmbito dos institutos históricos e geográficos, passando a fazer parte, aos olhos da academia engajada, de uma espécie de repertório pitoresco e limitado da história brasileira.

Nos últimos dez anos, já num ambiente de renovação historiográfica, de revalorização da especificidade e do cotidiano, o tema ressurge, ainda que timidamente. Em Minas Gerais, o repentino interesse público pelas estradas reais, desencadeado a partir da década de 1990, tem fomentado pesquisas acadêmicas e extra-acadêmicas sobre os caminhos antigos.1 Em outros estados, a pesquisa histórica do tema ainda é incipiente, em que pesem as ações de valorização cultural dessas rotas, empreendidas por instituições não acadêmicas, tais como órgãos de preservação do patrimônio cultural, agências governamentais de turismo e entidades privadas.

A recente publicação da obra resenhada constitui, portanto, uma novidade no campo da pesquisa histórica. Debruçam-se os autores sobre roteiros elaborados por exploradores que percorreram, em distintos contextos e em diferentes momentos, entre o século XVIII e a primeira década do XIX, as vastas regiões do sertão baiano. O mestre-de-campo de engenheiros Miguel Pereira da Costa apresenta, em 1721, o relatório da viagem que realizou entre Cachoeira e as nascentes do Rio das Contas, onde se descobrira ouro. Nos primeiros anos da quarta década do Setecentos, o sertanista Joaquim Quaresma Delgado percorre extensos territórios pecuários e mineradores do interior da Bahia, tendo relatado as suas expedições em roteiros elaborados a partir de 1734. Em 1799, o pesquisador mineiro José de Sá Bittencourt Accioli, membro da Academia Real das Ciências de Lisboa, dirige ao secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos, Rodrigo de Souza Coutinho, um ofício no qual relata a sua viagem à serra dos Montes Altos. Balthazar da Silva Lisboa, que exerceu na Comarca de Ilhéus os cargos de juiz, desembargador e ouvidor, produz, em 1808, uma memória sobre a abertura de uma estrada, pela costa baiana, entre Valença e a foz do rio Doce, apresentando o texto na forma de um relatório dirigido ao príncipe regente D. João VI. 2

Os dez roteiros elaborados por esses quatro exploradores – pois Quaresma Delgado produziu seis relatos diferentes – são esmiuçados pelos autores de Caminhos do sertão, que oferecem ao leitor densas notas de apresentação a cada um dos textos publicados, nas quais são analisados o contexto histórico de produção da peça, elementos biográficos do seu autor, a viagem que deu origem ao relato e as circunstâncias em que foi elaborado. No penúltimo capítulo, o pesquisador Marcos Paraguassu faz o enquadramento cartográfico do tema, plotando em mapas atuais da Bahia os itinerários dos exploradores. A introdução da obra, que ficou a cargo de Erivaldo Fagundes Neves, fornece chaves analíticas importantes para a compreensão da ocupação brasílica dos sertões da América portuguesa.

Uma distinção inicial, apontada e rapidamente discutida por Neves, se dá entre o sertão associado ao “deserto” formado pelo semi-árido e o sertão associado à economia pecuária. Essa distinção poderia ter sido mais explorada, pois tem dado margem a freqüentes confusões no tratamento do tema, sendo quase sempre necessário distinguir os sertões pecuários coloniais, ocupados por extensas fazendas de gado instaladas ao longo dos vales dos rios, da imagem corrente que associa o sertão à escassez de água e à pobreza material, construída a partir da obra magna de Euclides da Cunha.

Esse problema foi também tratado por Ângelo Carrara, autor que não consta das fontes bibliográficas utilizadas na obra resenhada. Para esse pesquisador teria sido a descoberta do ouro em Minas Gerais, no final do século XVII, o fator responsável pela mudança de sentido apontada, tendo o conceito, a partir de então, voltado à sua etimologia provável e original, de “desertão”.3 Ou seja, extrapolando a partir das conclusões de Carrara, estaríamos diante de uma transformação de sentido na qual a opulência da região mineradora teria ofuscado a importância econômica do sertão, forjando para o termo o sentido de região despovoada e miserável – os adjetivos são do autor – com o qual é a partir de então utilizado.

Uma outra distinção fundamental ressaltada por Neves, no capítulo introdutório a Caminhos do sertão, é a que se pode fazer entre “região colonial” e “sertão”. O paralelo entre as duas categorias geo-históricas tem sido traçado por vários autores, que enfatizam a primeira como área econômica vinculada ao circuito das economias exportadoras e à esfera de efetivação da soberania portuguesa, enquanto que o sertão se ligaria ao mercado interno e à ausência ou debilidade do controle lusitano. É possível, todavia, discutir a associação geral que se faz entre a região colonial e a cidade como o seu “universo-síntese”, estabelecida por alguns autores e repercutida por Neves (p. 13). Essa associação é possível para as regiões coloniais mineradoras, ainda que se possa perguntar até que ponto o termo “cidade” define as pequenas e médias nucleações urbanas originadas da aglomeração de mineradores. Para a região colonial canavieira a associação é altamente improvável. Em que medida a cidade seria o centro de um espaço econômico que tem na agricultura monocultora, baseada no latifúndio, a sua base? A esse respeito, bastaria relembrar as passagens de Raízes do Brasil, nas quais Sérgio Buarque de Holanda enfatiza o ruralismo da paisagem rural brasileira dos primeiros séculos, ou de Instituições políticas brasileiras, nas quais Oliveira Viana analisa o antiurbanismo colonial, que marcaria, para o autor, também a atividade principal da economia do açúcar.4

Mas deixemos essas questões gerais e aprofundemo-nos na análise da matéria específica de Caminhos do sertão. Os roteiros de Quaresma Delgado, dos quais se ocupa a maior parte da obra, foram originalmente incluídos numa coleção de documentos relativos ao governo do Conde de Sabugosa (1720-1735), hoje arquivada no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.5 A primeira publicação dos roteiros foi realizada parcialmente em 1906 por Felisbello Freire. O autor utilizou cinco dos itinerários como fontes para o seu estudo do povoamento dos estados da Bahia, Sergipe e Espírito Santo.6 Em 1929 o periódico Documentos Interessantes para a história e costumes de São Paulo publicou três dos roteiros.7 Urbino Vianna, em obra que permanece sendo uma das referências sobre a conquista e o povoamento brasílico do sertão baiano e mineiro, publicou e estudou dois dos roteiros, construindo, num mapa esquemático, uma valiosa reconstituição do itinerário seguido por Quaresma Delgado nas viagens que originaram os dois textos.8

Ainda que não tenham tido acesso aos originais dos roteiros de Quaresma Delgado, circunstância que explicam em nota (p. 75), seria interessante que os autores tivessem realizado a análise crítica das edições anteriores dos relatos, mostrando o contexto em que foram publicadas e as suas peculiaridades. Há significativas divergências entre as três edições, que mereciam um tratamento mais atento num estudo voltado especificamente para o tema.

Um breve recuo aos primeiros tempos da conquista brasílica dos territórios do interior da Bahia nos permitirá situar melhor o contexto em que são produzidos os roteiros estudados na obra. A documentação histórica mostra que, entre a segunda metade do século XVII e a primeira do seguinte, exploradores paulistas circularam intensamente pelo sertão baiano e mineiro. A caça ao índio, para a escravização nas lavouras da capitania de São Vicente, a busca de minerais preciosos e o contato com as capitanias do norte foram os objetivos centrais dessas incursões. Na realidade, esse movimento pode remontar ao século XVI, quando Brás Cubas, fundador da povoação de Santos, liderou uma expedição que teria chegado ao rio São Francisco na altura do seu afluente Paramirim, no coração do que seria bem mais tarde o sertão baiano.9 De toda forma, é a partir da segunda metade do Seiscentos que antigos bandeirantes paulistas, inclusive parte daqueles que foram contratados pelas autoridades coloniais para a repressão aos índios tapuia do Rio Grande e do Ceará, confrontos que ficaram conhecidos como “Guerra dos Bárbaros”, passam a se estabelecer ao longo dos rios sertanejos, neles fundando numerosas fazendas de gado.10 A transformação de caçadores de índios, combatentes mercenários e pesquisadores de riquezas minerais em colonos criadores de gado é um dos processos mais interessantes do período e garante, de uma forma enviesada e descontínua, a ocupação brasílica de amplas áreas do sertão baiano e mineiro. Sertanistas baianos e reinóis também participam da conquista e ocupação dessas paragens, mas a documentação mostra que, por razões diversas, que nada têm a ver com um esforço heróico de expansão territorial de São Paulo, tão decantado por uma certa historiografia, foram paulistas os principais responsáveis pela territorialização brasílica desses antigos espaços tapuia. Entre essas razões estão as restrições econômicas e demográficas que pesavam sobre os paulistas, mantendo-se a Capitania de São Vicente como uma espécie de capitania de segunda ordem no contexto colonial, desconectada dos circuitos econômicos estabelecidos a partir das regiões coloniais centrais – o Recôncavo Baiano e a costa pernambucana.

Os exploradores que elaboram os roteiros estudados na obra resenhada viajam por regiões do sertão baiano que já estão ocupadas, há algumas décadas, por colonos paulistas, baianos e reinóis. Não são, portanto, parte do sertanismo pioneiro que conquistou esses espaços aos tapuia e promoveu a sua valorização econômica. São exploradores designados pelas autoridades coloniais para, a partir de demandas explícitas do governo metropolitano, registrar e documentar os elementos geofísicos e humanos de territórios que, ainda que já ocupados por brasílicos, são pouco conhecidos da Coroa e dos seus representantes na colônia. Trata-se de um esforço de reconhecimento territorial, uma espécie de “reconquista” de um território sobre o qual o controle metropolitano era débil e incerto.

Nesse sentido, parecem discutíveis algumas conclusões dos autores de Caminhos do sertão. Em primeiro lugar, por tenderem, de maneira não explícita, a reeditarem alguns mitos da historiografia. Entre essas imagens estão a de bandeirantes paulistas que, ainda que percorressem os sertões da Bahia e neles se fixassem temporariamente, não teriam deixado caminhos (p. 19).11 A polêmica é antiga e não merece ser reeditada, inclusive porque pertence a um jogo regionalista no qual se envolveu a historiografia da primeira metade do século XX, ecoando uma disputa muito mais antiga. Segundo me sugeriu a historiadora Adriana Romeiro, o “mito do paulista andejo” remontaria à Guerra dos Emboabas (1707-1709) e teria sido produzido por emboabas para desqualificar os seus inimigos aos olhos da Coroa: paulistas não eram povoadores, não se fixavam nos espaços que conquistavam e, portanto, não mereciam a posse dos valiosos territórios mineradores do que mais tarde seria a capitania das Minas Gerais. A chamada Guerra dos Emboabas, por sinal, não foi uma disputa por terras “do noroeste do atual Estado de Minas Gerais”, como afirma José Ricardo Moreno Pinho na obra resenhada (p. 106). Os conflitos ocorreram principalmente nos primeiros núcleos mineradores – Caeté, Sabará, Vila Rica e São João del-Rei –, todos eles localizados no centro-sul do atual território mineiro. O noroeste de Minas Gerais, por seu turno, pertencia então exatamente a esse sertão descontínuo do qual estamos tratando. Foi para lá que fugiram alguns dos homens que se envolveram nos conflitos, entre eles o português Manuel Nunes Viana, uma das figuras emblemáticas do período estudado.

A linha de análise aqui sugerida permite reposicionar algumas das conclusões de Neves, em especial a suposição de uma linha progressiva do sertanismo baiano, que ligaria Gabriel Soares de Sousa, no século XVI, a Joaquim Quaresma Delgado, no XVIII (19-20). A hipótese de um sertanismo baiano contínuo e integrador pode ter levado mesmo a uma informação equivocada, que se insinua no texto de Neves: a de que Gabriel Soares de Sousa era baiano (p. 20). O cronista era português, tendo chegado à América portuguesa em 1569, já com quase 30 anos de idade. Nos anos seguintes se tornaria importante senhor de terras da Bahia, tendo montado um engenho em Jequiriçá e uma fazenda criatória nas cercanias de Jaguaripe. Em 1586, dezessete anos passados na América, regressa à Europa, disposto a convencer a Corte a apoiá-lo numa expedição de busca de minerais preciosos no interior do continente. A anuência real só vem em 1590, sendo esses quatro anos de permanência em Lisboa e Madri – então sede da União Ibérica – o período em que Soares de Sousa escreve o Tratado descritivo do Brasil em 1587. Parte de Lisboa em 1591, numa urca flamenga e com um contingente de 360 homens. A embarcação naufraga na costa de Sergipe e muitos tripulantes morrem ou adocem. Os sobreviventes continuam a expedição e, depois de se reabastecerem nas terras do próprio Soares de Sousa, adentram o rio Paraguaçu, que é percorrido em quase toda a sua extensão. Soares de Sousa teria morrido nas proximidades das nascentes do rio. Os roteiros da expedição malograda foram entregues ao governador-geral Dom Francisco de Sousa.

Soares de Sousa é, assim, um daqueles indivíduos híbridos que marcam o primeiro século da colonização da América portuguesa. Estabelece-se como senhor de engenho, mas não perde a expectativa do enriquecimento rápido com a descoberta de minerais preciosos. Quando a oportunidade se apresenta, muda-se para a Europa e passa a pedir o apoio da Corte, que demora a se resolver. A sua embarcação parte não da Baía de Todos os Santos, mas de Lisboa, e vem equipada com tripulação portuguesa. Tendo em vista esses elementos, tenho dificuldade em perceber Gabriel Soares de Sousa como uma espécie de precursor do “sertanismo baiano”.

A expedição terrestre de Quaresma Delgado ocorre 150 anos depois, num contexto completamente distinto. A origem das viagens do explorador pode ser rastreada na correspondência trocada entre a Corte e o vice-rei do Brasil sobre o assunto. Um primeiro documento, que não é citado pelos autores da obra resenhada, especifica o móvel das expedições: a demanda real de reconhecimento do novo território minerador das Minas Novas e das suas conexões com o litoral. Por esse documento, de 21 de maio de 1729, o rei emite provisão ordenando o conde de Sabugosa a mandar “por engenheiros observar com distinção os sertões das Minas novas e todo aquele Continente para saber a distância em que ficava dos portos da marinha, a sua capacidade, e Povoações, que compreende, e que de tudo fizessem mapas”.12

Esse parece ter sido o primeiro passo para as viagens exploratórias de Joaquim Quaresma Delgado. Com efeito, premido pelo que chama “a falta de engenheiros”, o vice-rei resolve passar a tarefa a esse sertanista, que considera “piloto aprovado, como pelas informações, e conferência que com ele tive em que lhe descobri prática, curiosidade e inteligência, para fazer com mais individuação o referido exame”. Decide ainda o vice-rei aumentar as atribuições do explorador, determinando-lhe que incursione não só pela região das Minas Novas, mas também “por outras muitas partes”.13

Assim, em 12 de janeiro de 1731, Quaresma Delgado é designado, pelo vice-rei, para, a partir da cidade da Bahia, seguir em direção à recém descoberta região aurífera de Minas Novas, devendo, durante o percurso,

observar pela estrada por onde se faz caminho para aquelas minas as povoações, rios, serras e mais coisas dignas de atenção, averiguando os nomes e as distâncias em que ficam umas das outras e também as partes em que se acostumam a arranchar os comboieiros com conveniência de águas e mantimentos, o que se fará principiando logo da Vila da Cachoeira, resumindo tudo a uma relação com boa ordem, distinção e clareza.

Além da região de Minas Novas, deveria o sertanista pesquisar também as regiões auríferas do Rio de Contas e Tacambira (Itacambira), bem como o que o autor das instruções denomina “o sítio do Paramirim, donde se tem descoberto prata”, identificando as distâncias entre cada um desses locais e a cidade da Bahia e informando sobre as condições dos caminhos.14

Esses documentos confirmam a hipótese de que se trata de um empreendimento de reconhecimento territorial e de mapeamento de uma extensa zona já parcialmente ocupada por colonos brasílicos. O objetivo principal da empreitada não era, como afirmam os autores de Caminhos do sertão em várias passagens (p. 23; 59; 65; 67), a pesquisa de minerais preciosos. Tratava-se de elaborar uma descrição geo-econômica de amplas regiões do interior da Bahia, possibilitando à Coroa conhecer a capacidade produtiva de jazidas auríferas recém descobertas, as condições de transporte do ouro até a costa e as povoações dos novos territórios mineradores.

Nesse sentido, as viagens exploratárias de Quaresma Delgado não foram “aparentemente malsucedidas” (p. 23). Resultaram em roteiros – ou “derrotas”, para utilizar o termo coevo – minuciosos, nos quais é claro o esforço de registrar com precisão, objetividade e método as observações realizadas pelo seu autor. Podemos mesmo estar diante de um dos primeiros esforços oficiais de se fazer o levantamento topográfico de amplas regiões interiores da América portuguesa, nos quais já estariam em aplicação métodos técnicos característicos do conhecimento ilustrado. Estariam em linha com a contratação dos jesuítas Diogo Soares, português, e Domingos Capassi, italiano, que chegaram ao Brasil em 1730, com a missão oficial de “traçar, de forma sistemática, a cartografia do território brasileiro, não apenas da região costeira mas também do interior da colônia”.15

Os autores dos roteiros estudados não percorrem, todavia, um continente já plenamente ocupado. A ocupação brasílica é parcial, como ressalta Marcos Paraguassu na obra resenhada; talvez seja ainda mais parcial e descontínua do que leva a crer a interpretação do autor (p. 207). Com efeito, os exploradores deslocaram-se quase sempre acompanhando as margens dos rios, o que não é casual. Ali encontravam faixas contínuas de ocupação, dotadas de recursos indispensáveis à sua jornada e protegidas da ameaça tapuia que continuava a marcar as extensas áreas “exteriores”. As cartas geográficas sertanistas, algumas delas elaboradas na primeira metade do Setecentos, são eloqüentes em registrar, para além das faixas de ocupação brasílica, o “sertão despovoado” ou os territórios que se mantinham sob o controle indígena.

As questões rapidamente discutidas mostram a importância de Caminhos do sertão como obra densa e original na abordagem do tema das vias terrestres que percorriam o sertão baiano no período colonial. Na feliz síntese de Francisco Antônio Zorzo (p. 252), “surge nos relatórios um território fraturado, com rachaduras e muitos percalços, um território exterior à nação portuguesa e anterior à nação que se formaria”. Essa matriz da descontinuidade, que tem se revelado a mais fértil para a compreensão da dinâmica histórica de ocupação brasílica dos sertões, só tem a ganhar com a publicação da obra resenhada. Os seus autores cumpriram cabalmente o objetivo a que se propuseram, de “reunir material e disponibilizá-lo para pesquisadores e estudiosos da ocupação do interior do Brasil em geral e aos estudantes de História da Bahia e do Brasil colônia em particular” (p. 23). Reeditar roteiros antigos, publicados em obras raras ou de difícil acesso, situar contextos de viagens de exploração e encontrar conexões entre a percepção passada do território e a forma como o vemos hoje são ações que pertencem ao campo mais íntimo do ofício do historiador: o de encontrar documentos antigos e fazer a sua interpretação com um olhar no passado e outro no presente. O público leitor, especialista e não-especialista, só tem a ganhar com a chegada de Caminhos do sertão.

Notas

1 ABREU, J. Capistrano de. Caminhos antigos e povoamento do Brasil. Rio de Janeiro, 1930. E também ABREU, Capistrano de. Capítulos de História Colonial: 1500-1800. Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal, 1998 [1907]. SANTOS, Márcio. Estradas reais: introdução ao estudo dos caminhos do ouro e do diamante no Brasil. Belo Horizonte: Estrada Real, 2001. SANTOS, Márcio. Bandeirantes paulistas no sertão do São Francisco: povoamento e expansão pecuária de 1688 a 1734. São Paulo: Edusp, no prelo.

2 Este relatório, sobre uma estrada costeira, parece deslocado numa obra voltada para os caminhos sertanejos.

3 CARRARA, Ângelo Alves. O “sertão” no espaço econômico da mineração. LPH: Revista de História, n. 6, p. 40-48, 1996.

4 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995; VIANA, Oliveira. Instituições políticas brasileiras. Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal, 1999.

5 “Índex de várias notícias pertencentes ao estado do Brasil, e do que nele obrou o Conde de Sabugoza ao tempo do seu governo”, Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

6 FREIRE, Felisbello. História territorial do Brasil. Edição fac-similar. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo, Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, 1998.

7 Arquivo do Estado de São Paulo. Documentos relativos à história da capitania de S. Vicente e do bandeirismo (1548-1734), existentes no arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, coligidos, copiados e anotados, de ordem do Governo do Estado. Publicação Oficial de Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo, São Paulo, v. XLVIII, 1929.

8 VIANNA, Urbino. Bandeiras e Sertanistas Bahianos. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935.

9 A expedição de Brás Cubas ocorreu entre 1560 e 1561. O itinerário do explorador, estudado por Leite Pereira, Pandiá Calógeras e Sérgio Buarque de Holanda, é controverso. PEREIRA, Francisco Lobo Leite. Descobrimento e Devassamento do Território de Minas Gerais. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, v. VII, p. 549-581, 1902. CALÓGERAS, João Pandiá. As Minas do Brasil e sua Legislação. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1904. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso. Rio de Janeiro: José Olympio, 1959. (Coleção Documentos Brasileiros)

10 Utilizo aqui o termo genérico “tapuia”, de origem tupi, empregado de forma preconceituosa no período colonial para designar os “bárbaros” que habitavam o interior da América portuguesa.

11 A documentação, como procurei demonstrar para o caso dos vales do médio São Francisco e do Verde Grande, mostra o contrário. Santos, Bandeirantes paulistas… (cf. nota 2) Além dessa região, então pertencente à Bahia, paulistas se fixaram e abriram caminhos em várias outras áreas do sertão nordestino, como os vales dos rios Paraguaçu, das Rãs e Pardo, o trecho baiano do São Francisco e o interior do Piauí. As referências documentais e bibliográficas a respeito são numerosas e estão dispersas pelos arquivos e bibliotecas brasileiras. Apenas dois exemplos, que tratam diretamente do sertão baiano: “Das Vilas de São Paulo para o Rio de São Fran.co descobriram os paulistas antigamente um caminho a que chamavam Caminho Geral do Sertão, pelo qual entravam e cortando os vastos desertos que medeiam entre as ditas Vilas, e o dito Rio nele fizeram várias conquistas de Tapuias, e passaram a outras pra os sertões, de diversas Jurisdições, como foram Maranhão, Pernambuco, e Bahia sendo para todas geral o dito caminho até aquele termo fixo que faziam nesta, ou naquela parte do Rio de São Fran.co, em o qual mudavam de rumo conforme a Jurisdição, ou Capitania a que se encaminhavam, ou conveniência que se lhe oferecia; e com tão continuada freqüência facilitaram o trânsito daquele caminho que muitos deles transportando por ele suas mulheres e famílias mudaram totalmente os seus domicílios de São Paulo para as beiras do dito rio de São Fran.co, nos quais hoje se acham mais de cem casais todos Paulistas, e alguns deles com cabedais muito grossos”. Informação sobre as Minas do Brasil [1705?]. Anais da Biblioteca Nacional, v. LVII, p. 172, 1935. “Ainda outros paulistas se fixaram no Médio São Francisco e, na verdade, as migrações de São Paulo para a área entre Carinhanha e Juazeiro finalmente chegaram a tal ponto que este trecho veio a ser, nas palavras de João Mendes de Almeida (Notas Genealógicas, 1886), uma ‘verdadeira colônia de São Paulo’. Em princípios do século XVIII refere-se que havia arraiais fortificados em Manga, Santa Rita (hoje Carinhanha) e Barra, onde as famílias paulistas amplamente dispersas se reuniam, de vez em quando, vindo de suas fazendas de criação”. PIERSON, Donald. O homem no Vale do São Francisco. Rio de Janeiro: Ministério do Interior. Superintendência do Vale do São Francisco, 1972. t. I, p. 280.

12 A provisão real, que não encontrei, é resumida na resposta dirigida pelo conde de Sabugosa ao rei, em 1731. “Carta sobre o que resultou da diligência que mandou fazer por um Piloto desta Cidade até as Minas Novas”. 3/10/1731. Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Colonial e Provincial − Colônia.

13 “Carta sobre o que resultou da diligência…” (cf. nota anterior).

14 [Portaria com instruções para a viagem de Joaquim Quaresma Delgado], 12/1/1731. Publicado parcialmente em Anais do Arquivo Público do Museu do Estado da Bahia, Bahia: Imprensa Oficial do Estado, v. IV e V, p. 237, 1919. Segundo Borges de Barros, em observação introdutória à publicação do texto da portaria, Quaresma Delgado recebera 150 mil réis para o empreendimento. Ainda segundo afirma o mesmo pesquisador, em outro volume dos Anais, os vencimentos do explorador eram de três mil cruzados por ano. Anais do Arquivo Público do Museu do Estado da Bahia, Bahia: Imprensa Oficial do Estado, v. VI e VII, p. 274, 1920.

15 Guerreiro, Inácio. Fronteiras do Brasil colonial: a cartografia dos limites na segunda metade do século XVIII. Oceanos, Lisboa, n. 40, p. 24-44, outubro/dezembro de 1999, p. 25.


Resenhista

Márcio Santos – Mestre em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

NEVES, Erivaldo Fagundes; MIGUEL, Antonieta. Caminhos do sertão: ocupação territorial, sistema viário e intercâmbios coloniais dos sertões da Bahia. Salvador: Arcádia, 2007. Resenha de: SANTOS, Márcio. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v. 7, n. 1, p. 263-272, 2007. Acessar publicação original [DR]

 

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