Clero colonial | Revista Ultramares | 2013

Durante muitas décadas o estudo sobre as instituições eclesiásticas e os homens da Igreja foram temas que mereceram pouca ou nenhuma importância por parte da historiografia. Na Europa ou no Brasil, o tema sofria com uma enorme carência de estudos. Os historiadores que se aventuravam por essas temáticas eram vistos com certo ceticismo, já que imperava uma excessiva preocupação com a política e com a economia. Agravando ainda mais o cenário, os estudos produzidos por indivíduos ligados à própria Igreja, como bispos, padres e religiosos das mais variadas ordens, embora de fundamental importância, muitas vezes resultaram em visões demasiado preconceituosas e etnocêntricas que foram sendo reproduzidas acriticamente pela historiografia subsequente.

Tais estudos agregavam características semelhantes. Quando tratavam da Igreja/instituição traziam visões genéricas, privilegiando algumas áreas em detrimento de outras, sem contar com o apoio de pesquisas regionais que dessem o tom das especificidades. As obras que tratavam da Igreja no Brasil também traziam iguais barreiras. As áreas mais “periféricas”, como a dos bispados do Norte da Colônia, ganhavam pouca notoriedade. Os bispos, seus feitos, suas administrações, as longas vacâncias que marcaram os bispados durante o período colonial, foram, via de regra, o foco central dessas análises. Essa primeira geração de trabalhos é marcada por uma história institucional dos diferentes bispados, de suas altas hierarquias do eclesiástico e sobre as ordens religiosas que foram paulatinamente adentrando pelos sertões no Brasil. Quase nada aparece sobre o clero secular. Seu cotidiano, quem eram esses homens, como vivenciavam suas relações com os fregueses, seus desvios de comportamento, nada mereceu destaque nesses primeiros relatos sobre a Igreja no Brasil.

A História Religiosa e, especialmente a história social do clero tem passado por grande renovação nas três últimas décadas. A razão para esse sucesso talvez seja dupla. A primeira, é o avanço metodológico e conceitual das pesquisas. As preocupações com critérios mais profissionais e menos engajados religiosamente e com o uso de recursos variados como a informática, a elaboração de bancos de dados, a preocupação interdisciplinar, dentre outras, elevaram consideravelmente a qualidade e a atratividade das pesquisas. Somado a isso, está uma outra característica que é indissociável da primeira: a pluralidade documental. A descoberta de novos acervos e a investigação mais criteriosa dos já conhecidos demonstra a grande potencialidade das pesquisas atuais.

No Brasil colonial, o clero, principalmente o secular, só esporadicamente tinha sido tomado como objeto de estudo. Maria Beatriz Nizza da Silva1 já chamava atenção para a carência de trabalhos que abordem essa temática. As pesquisas que os contemplam, diz ela, só “privilegiam inventários e testamentos que permitem a avaliação das fortunas de seus membros” ou utilizam, como aponta Guilherme Pereira das Neves, “processos de genere que informam sobre sua formação e antecedentes familiares, mas sem qualquer preocupação com os problemas do cotidiano nem com as relações entre os curas e os paroquianos”2. O cenário vem se modificando paulatinamente.

Um conjunto ainda modesto de monografias, dissertações e teses vêm abordando a temática do clero na Colônia nas mais diferentes regiões do Brasil. Este dossiê é bem o retrato dessa modificação progressiva. Abrindo este número, o texto de Paulo César Possamai traz grande contribuição ao apresentar aspectos do engajamento do clero regular das ordens franciscana e jesuíta na Colônia de Sacramento. “O clero numa região de fronteira: Colônia do Sacramento (1680-1777)” oferece-nos ainda a interessante atuação dos oficiais da Inquisição na região de fronteira do Brasil colonial. Estudos mais consistentes sobre o clero regular estão entre as grandes renovações da historiografia do clero nas últimas décadas e o texto de Possamai apresenta duas ordens regulares fundamentais no processo de ocupação, fixação e exercício dos sacramentos numa região disputada por espanhóis e portugueses durante quase uma centúria. A contribuição desse estudo é inegável, visto que aborda através de fontes conclusivas um espaço tão pouco visitado por pesquisadores preocupados com a história social do clero na Colônia.

Gustavo Augusto Mendonça dos Santos, por sua vez, nos apresenta aspectos da reforma moral do clero inspirada no Concilio de Trento para o caso do bispado de Pernambuco, dando destaque à atuação prelatícia de dom Francisco Xavier Aranha. O foco dessa análise intitulada “Um bispo e seus agentes: a atuação de Dom Francisco Xavier Aranha e do Tribunal Eclesiástico de Pernambuco no século XVIII” é o clero transgressor que foi processado e preso por crimes durante aquele século. O autor consegue chegar a conclusões consistentes malgrado a documentação escassa.

Jaime Ricardo Gouveia em outro estudo muito relevante apresenta-nos resultados comparativos entre bispados da Colônia e o de Coimbra, na Metrópole, no seu texto “Os ladrões das honras e a repressão das desonras. A ação do Juízo Eclesiástico no Atlântico português (1640-1750)”. Sua análise adentra pelas estruturas episcopais de controle, como o Auditório Eclesiástico, para alcançar os mecanismos de disciplinamento e vigilância do clero no espaço luso-americano entre os séculos XVII e XVIII. Sua análise microscópica permite alcançar ainda as continuidades e rupturas quanto à atuação repressiva sobre o clero nas regiões em análise. Sua proposta em história comparativa é inédita quando se trata de um estudo sobre o clero colonial.

Encerrando o dossiê, Pollyanna Gouveia Mendonça Muniz analisa os trâmites para ordenação sacerdotal no bispado do Maranhão no texto “Ordenações sacerdotais e concursos para colações: clero pós-tridentino no bispado do Maranhão colonial”, destacando os processos de Habilitação de genere e Vita et Moribus que permitem conhecer perfis sobre o clero da América portuguesa. A análise contempla ainda os concursos para colações sacerdotais que nos permite averiguar as estratégias e táticas utilizadas por esses padres para alcançar boas colocações na hierarquia eclesiástica nos seus bispados. Pouco ou nada se sabe sobre os concursos de colação no caso do Brasil colonial e a autora consegue cruzar a documentação do bispado do Maranhão com a da Mesa da Consciência e Ordens, da Metrópole.

Compondo este número, temos ainda mais quatro estudos. Carlos Engemann apresenta-nos o texto “Dos servos de Santo Inácio e São Bento: divergências e convergências entre jesuítas e beneditinos na soteriologia dos escravos na América Colonial (século XVII e XVIII)” em que discute os diferentes caminhos tomados por jesuítas e beneditinos no que concerne ao tratamento e convívio com os escravos em face à religião. Ele destaca a importância dos sacramentos como casamento e batismo realizado por esses religiosos como aporte importante na política da Igreja em elevar os escravos de simples criaturas à categoria de filhos de Deus. O autor aponta práticas muito similares no trato dos escravos, mesmo essas ordens tendo percorrido caminhos teológicos opostos.

Jorge Henrique Cardoso Leão, por sua vez, traz do distante Japão seu objeto de análise. “A companhia de Jesus e a evangelização do Japão no século XVI: as principais estratégias empreendidas pelos jesuítas e a questão dos auxiliares autóctones” nos mostra o importante papel dos inacianos na conquista do Oriente. O autor destaca a inserção dos jesuítas nas províncias japonesas e sua preocupação em aprender o idioma para facilitar no processo de evangelização. Isso, segundo o autor, gerou a formação de um corpo de auxiliares cristãos denominados de dojukus que se tornaram mediadores culturais e passaram a exercer importante papel no diálogo entre a comunidade nativa e os portugueses. Mesmo com o processo de unificação do Japão, o autor destaca que o cristianismo não recuou. Seu texto nos dá um interessante panorama do assunto desde a chegada da Companhia de Jesus nesse território, em 1549, até o século XVII.

Maria Elizabeth Melo da Fonseca apresenta o estudo “O clero colonial: namoricos e as regras comportamentais” em que analisa os conflitos entre os padres Antonio Soares Barbosa, Antonio Bandeira de Melo e a jovem Quitéria Bandeira de Melo contra o governador da Capitania da Paraíba, Jeronimo José de Melo e Castro. Tal análise destaca o suposto envolvimento amoroso entre o padre Antonio e Quitéria, irmã de outro padre, que aparece em denúncias na documentação do Arquivo Histórico Ultramarino. O objetivo da autora é analisar a conduta moral do clérigo baseada na legislação vigente, as Constituições da Bahia de 1707.

Os artigos são encerrados com texto “Reformas Rigoristas: práticas jurídico-religiosas na diocese de Olinda (1725-1754)” de Bruno Kawai Souto Maior de Melo que traz rica contribuição ao estudar o movimento reformista no governo episcopal de Pernambuco durante as prelazias de D. José Fialho e D. Fr. Luiz de Santa Tereza. Os bispados da colônia – tanto quanto os da Metrópole – sentiram os reflexos das práticas rigoristas de observância dos preceitos do catolicismo, como foi o do movimento da Jacobeia. Tais alterações, entretanto, são ainda pouco investigadas para o caso do Brasil e estudos como esse ajudam as esclarecer toda uma lógica de atuação pastoral. Importante ainda é sua contribuição no que se refere a elencar aspectos da reforma de costumes do clero e os conflitos entre os foros eclesiástico e secular ao citar fontes detalhadas como as cartas pastorais.

Por fim, a Resenha proposta por Dimas Bezerra Marques intitulada “Uma Nova Análise Sobre as Expedições Contra Palmares” faz uma apreciação de uma obra de Laura Mendes que discute as expedições realizadas aos mocambos de Palmares entre os anos de 1654 e 1695. Publicada em 2011, a obra altera alguns olhares sobre um episódio importante dentro da história da Capitania de Pernambuco e futura Comarca das Alagoas.

Notas

1. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Vida privada e quotidiano no Brasil: na época de D. Maria I e D. João VI. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, p. 63-189.

2. NEVES, Guilherme Pereira das. E receberá mercê: a Mesa de Consciência e Ordens e o clero secular no Brasil (1808-1828). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997, p. 19.


Organizador

Pollyanna Gouveia Mendonça Muniz – Professora Adjunto II na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), campus de Pinheiro. Mestre e Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected]

MUNIZ Pollyanna Gouveia Mendonça (Org d)


Referências desta apresentação

MUNIZ, Pollyanna Gouveia Mendonça. Apresentação. Revista Ultramares. Maceió, n.4, v.1, ago./dez. 2013. Acessar publicação original [DR]

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