Cómo escribir la historia del Nuevo Mundo: Historiografías/epistemologías e identidades en el mundo del Atlántico del siglo XVIII | Jrge Cañizares Esguerra

Em um dossiê cuja proposta focalize a circulação de ideias e as redes de conhecimento ligadas ao continente americano, a obra de Jorge Cañizares Esguerra torna-se uma importante referência, não apenas pelo olhar singular do autor em relação a fontes anteriormente analisadas por diversos historiadores e por refletir sobre as condições de possibilidades dos testemunhos no processo de construção da história do Novo Mundo ao longo do período moderno, em especial, durante o emblemático século XVIII, mas justamente em razão à reconstrução feita por esse autor dos múltiplos diálogos formados nos dois lados do Atlântico em um período de intenso debate intelectual sobre o continente americano.

Jorge Cañizares Esguerra é atualmente professor da Universidade do Texas (Austin) e tem se dedicado à temática da História da Ciência, especialmente no que concerne ao conhecimento ibérico e em suas possessões. É autor de diversos artigos e obras, entre as quais se destacam Puritan Conquistadors (CAÑIZARES ESGUERRA, 2001) e Nature, Empire and Nation (CAÑIZARES ESGUERRA, 2006). Publicado originalmente em 2001 em inglês com o título How to write the history of the New World. Histories, Epistemologies and Identities in the Eighteenth-Century Atlantic World, o trabalho do historiador equatoriano foi vencedor de diversos prêmios nos Estados Unidos, entre eles a premiação concedida pela American Historical Association ao melhor livro sobre a história da Espanha, de Portugal e da América. A tradução em espanhol, Cómo escribir la historia del Nuevo Mundo, somente foi impressa em 2007 2. No entanto, sua obra ainda permanece desconhecida entre os historiadores brasileiros.

Tendo como objetivo evidenciar a associação entre disputas epistemológicas obscuras dos setecentos e o surgimento da sensibilidade historiográfica moderna, Cañizares Esguerra inova exatamente por deslocar o foco de atenção para regiões tidas como periféricas, consideradas tradicionalmente como receptoras de conhecimentos produzidos em outras partes do mundo, percebendo nelas o nascimento de uma transformação da concepção de história e de documento que caracterizou o estudo sobre o passado dos séculos XIX e XX. Seu projeto pode ser conectado à proposta feita por J. H. Elliott ainda na década de 1970. Elliott defendia uma perspectiva diversa no estudo do impacto da colonização, centrada não mais nos colonizados, mas nas transformações ocorridas entre os colonizadores devido aos encontros concretizados com chegada dos europeus à América. Para esse historiador britânico as conexões entre as metrópoles e as colônias eram estreitas e não se resumiam à economia e à política (ELLIOTT, 1991). Nesse sentido, a obra de Cañizares Esguerra insere-se dentro de uma série de diálogos historiográficos das últimas décadas. Contudo, há que se ressaltar que as reflexões formuladas pelo historiador equatoriano são extremamente profundas, ultrapassando algumas associações simplistas e mecânicas ligadas a possíveis influências e a predomínios de ideias. Em Cómo Escribir, o autor investiga de que forma pensadores que habitavam regiões marginais no cenário intelectual do período foram decisivos na construção de determinados conhecimentos.

Logo na introdução da obra, Jorge Cañizares Esguerra enfatiza que o emergir de novas técnicas para criação e validação do saber permitiu o questionamento das fontes utilizadas até o século XVIII para fazer referência ao Novo Mundo e aos primeiros contatos dos europeus com o continente e seus habitantes; por consequência os relatos de cronistas e historiadores perderam sua credibilidade. Assim, segundo Cañizares Esguerra, a preocupação com a crítica das fontes, atitude típica da historiografia do século XIX, teria sido anterior nos escritos sobre o continente americano.

Em outra direção, Cómo escribir la historia del Nuevo Mundo destaca-se ao fazer uma crítica às análises de Antonello Gerbi, referência nos estudos sobre a chamada Polêmica do Novo Mundo – disputa empreendida, principalmente nos séculos XVIII e XIX, por autores como Conde de Buffon, Cornelius de Pauw, Francisco Xavier Clavijero, Thomas Jefferson entre outros, na qual a suposta inferioridade da América e de seus habitantes foi debatida. Segundo Jorge Cañizares Esguerra, as questões epistemológicas que alicerçavam tal disputa foram obliteradas pelo autor italiano. Muitas vezes, atendo-se aos aspectos descritivos da disputa e apresentando os antagonismos entre os autores, não havia uma preocupação por parte de Gerbi em analisar os pressupostos que alicerçavam os saberes e argumentos investigados e as conexões entre as transformações epistemológicas do conhecimento ocidental e as alterações dos discursos envolvidos na polêmica no transcorrer do tempo. Tal preocupação esteve presente nos capítulos de Cómo escribir la historia del Nuevo Mundo. Ademais, Cañizares Esguerra coloca-se dentro de uma perspectiva teórica e metodológica ainda marginal nos trabalhos sobre a temática, a linha de estudos póscoloniais, e em sua abordagem também pode ser destacada a tentativa de reconstruir os diálogos intelectuais estabelecidos no mundo Atlântico.

Os cinco capítulos do livro possuem um eixo comum ligado à epistemologia e à história, embora abordem escritores muito diversos. No primeiro capítulo, o historiador equatoriano revela como uma nova forma de leitura das fontes, nascida na segunda metade dos setecentos, colocou em questão a credibilidade dos testemunhos de cronistas e conquistadores. Analisando os debates epistemológicos acerca dos paradigmas necessários para produção de um conhecimento obtido da experiência de viagem a territórios estrangeiros, Jorge Cañizares Esguerra afirma que muitos pensadores do período propunham que pessoas esclarecidas (viajantes filosóficos) explorassem regiões como a América, descrevendo de forma verossímil e evidenciando as limitações dos testemunhos tradicionais. Além disso, ao investigar as obras de Cornelius de Pauw e William Robertson, o autor tenta mostrar como esses escritores estavam conectados a novos pressupostos de verdade, os quais excluíam todos os saberes e relatos que estivessem em contradição com a lógica europeia ou que possuíssem inconsistências internas, elementos que antes não eram tidos como importantes na validação das fontes. A esse quadro de transformações também estava associada a emergência de novas fontes oriundas da história natural ou dos estudos linguísticos, consideradas críveis e necessárias para ratificar determinado argumento sobre o passado das terras americanas. Todos esses fatores contribuíram para que os tradicionais escritos sobre a história do Novo Mundo fossem postos em xeque. Ao finalizar o primeiro capítulo, o autor ainda posiciona Alexander von Humboldt como ponto de virada dessa perspectiva em relação às fontes espanholas, restabelecendo seu valor enquanto testemunhos sobre o passado.

No segundo capítulo, antes de dedicar-se ao estudo mais aprofundado da obra de Humboldt e de seus contemporâneos, Jorge Cañizares Esguerra descreve as interpretações feitas por cronistas e historiadores sobre as fontes ameríndias desde o século XVI até o século XVIII. O historiador equatoriano recusa a ideia de Walter Mignolo sobre o desprezo da escrita indígena por não ser ela composta por um alfabeto fonético. Para o autor de Cómo escribir la historia del Nuevo Mundo a fiabilidade de um documento ao longo dos séculos XVI e XVII não estaria relacionada ao tipo de escritura, mas à pessoa que escrevia (cuja autoridade e qualitativos eram preponderantes na definição da credibilidade de suas palavras). Embora as visões dos espanhóis sobre os escritos ameríndios fossem por vezes contraditórias e sempre relacionadas a objetivos políticos e a modelos historiográficos europeus, segundo Cañizares Esguerra, eles utilizavam tais fontes na reconstrução do passado dos povos do Novo Mundo. A desvalorização dos documentos escritos pelos indígenas ocorreu simultaneamente ao questionamento das crônicas como testemunhos fidedignos, uma vez que a falta de escrita fonética, além de estar associada a uma etapa primitiva do desenvolvimento humano, também limitava, segundo os pensadores dos setecentos, a capacidade de transmissão de informações confiáveis.

No capítulo intitulado “Historiografía y patriotismo en España”, o autor discorre sobre as transformações historiográficas na Espanha, as quais estavam vinculadas à tentativa de retificar a imagem dessa nação em oposição à chamada “Leyenda Negra”. Não apenas as defesas por uma história do mundo hispânico pautadas em outras fontes, mas também as ações (oficiais ou não) empreendidas no sentido de recuperar a cultura e o conhecimento espanhol foram analisadas por Cañizares Esguerra. Autores como Pedro de la Estala, Lorenzo Boturini e instituições como a Real Academia de Historia e o Archivo de Indias, ganham destaque em suas argumentações. Com especial atenção, Jorge Cañizares Esguerra analisa a obra de Juan Bautista de Muñoz e sua prática documental, que valorizava os arquivos em razão das fontes primárias de seus acervos estarem despidas de intenções diretas, como ocorria com obras publicadas. Embora recuse a ideia de precursor, o historiador equatoriano vê no posicionamento de Muñoz em relação às fontes uma antecipação de elementos que serão encontrados algumas décadas mais tarde entre o historicismo do século XIX.

Na quarta parte de Cómo escribir la historia del Nuevo Mundo, observa-se a tentativa de analisar o que foi denominado pelo autor como epistemologia patriótica, ou seja, o discurso produzido nas colônias que ao mesmo tempo reproduziu e reforçou as ordens sócio-raciais e corporativas existentes, como elaborou críticas às histórias escritas nos setecentos – que inferiorizavam o continente americano, seus habitantes e criações – e evidenciou as limitações epistemológicas dos viajantes estrangeiros. Seguindo os passos de David Brading e dos estudos pós-coloniais, o historiador busca investigar os escritos dos jesuítas criollos exilados, como Francisco Xavier Clavijero, Juan de Velasco, Juan Ignacio de Molina entre outros. A variedade de autores tem seu liame em pressupostos epistemológicos e políticos que alicerçam os escritos de todos aqueles que são analisados.

No capítulo final, a epistemologia patriótica hispano-americana continua a ser o foco de atenção, especialmente os debates dos antiquários, num período com importantes descobertas arqueológicas na América. Contudo, a ideia central deste capítulo é a de que a chamada Ilustração não pode ser encarada como um movimento homogêneo que teria seu pólo irradiador na Europa. Para Cañizares Esguerra a Ilustração na América Espanhola não foi um reflexo daquilo que foi produzido no Velho Mundo. Autores americanos foram capazes de elaborar críticas originais e eruditas às percepções eurocêntricas difundidas no universo intelectual do período.

Jorge Cañizares Esguerra conclui seu livro com uma crítica severa ao trabalho de Antonello Gerbi. Além da já mencionada ausência de uma reflexão epistemológica sobre a “Polêmica do Novo Mundo”, para o historiador equatoriano, embora não tenha sido a intenção original de Gerbi, sua obra acaba por reproduzir as visões negativas de suas fontes sobre o continente americano devido às ênfases e aos recortes feitos. De maneira comprometida, Cañizares Esguerra defende uma historiografia que ofereça alternativas às imagens de violência, exploração e instabilidade que reiteradamente estão presentes nos trabalhos e imaginários sobre a América.

Com seu tom combativo, embora por vezes margeando um patriotismo semelhante ao de suas fontes, o estudo de Cañizares Esguerra traz importantes questões ao trabalho do pesquisador da área de história como um todo, e não apenas àquele que se dedica ao estudo da história da América. A primeira, a relevância dos postulados que definem a fiabilidade das fontes no processo de construção da história. Um segundo ponto, omitido em diversos trabalhos, é a importância da epistemologia para compreensão da história intelectual e da circulação de ideias. Sem a análise dos pressupostos epistemológicos de determinados períodos, as noções, as teses e as concepções defendidas por autores de obras científicas e pensadores afiguram-se de forma desconexas e independentes. O que percebemos em Cómo escribir la historia del Nuevo Mundo é justamente o contrário: como pensamentos que, aparentemente são completamente díspares, possuem vínculos profundos que quando explicitados permitem uma melhor compreensão do tema e do período. A obra torna-se, portanto, uma referência para todo pesquisador que pretende analisar a história intelectual, particularmente, com relação ao Novo Mundo.

Nota

2 Para esta resenha será utilizada a tradução da obra em espanhol, uma vez que o próprio autor foi responsável pela revisão.

Referências

CAÑIZARES ESGUERRA, Jorge. Cómo escribir la historia del Nuevo Mundo: Historiografías, epistemologías e identidades en el mundo del Atlántico del siglo XVIII. México: Fondo de Cultura Económica, 2007.

______________ . Nature, Empire, and Nation Explorations of the History of Science in the Iberian World. Standford, California: Standford University Press, 2006.

______________ . Puritan Conquistadors. Iberianizing the Atlantic, 1550-1700. Standford, California: Standford University Press, 2001.

ELLIOTT, J. H. España y su mundo 1500-1700. Madrid: Alianza Editorial, 1991.


Resenhista

Flávia Preto de Godoy Oliveira – Mestre em História pela Universidade Estadual de Campinas. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

CAÑIZARES ESGUERRA, Jorge. Cómo escribir la historia del Nuevo Mundo: Historiografías, epistemologías e identidades en el mundo del Atlántico del siglo XVIII. México: Fondo de Cultura Económica, 2007. Resenha de: OLIVEIRA, Flávia Preto de Godoy. Fontes, Historiografia e Epistemologia. Revista Eletrônica da ANPHLAC, n. 9, 2010. Acessar publicação original [DR]

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