Cristianismos. Questões e debates metodológicos | André Leonardo Chevitarese

André Leonardo Chevitarese é pesquisador do campo das experiências religiosas no mundo antigo e sua recepção ao longo da história. Em particular, na área de judaísmo e cristianismo. Tendo publicações importantes como Judaísmo, cristianismo e helenismo (2007) e Jesus de Nazaré: outra história (2006).

A presente obra está fragmentada em três grandes capítulos ou eixos temáticos:

(a) Memória: a discussão a cerca deste ponto se subdivide em dois pontos. O primeiro deles é uma ampla apresentação sobre o tema memória, história e narrativa. O que se percebe é que a partir de uma literatura sobre o testemunho, o relato da testemunha ocular desempenha um papel chave na formação de reconstruções coletivas sobre eventos/acontecimentos; mesmo que este testemunho seja ilusório.

Para exemplificar esta questão Chevitarese se volta para a narrativa evangélica, mais especificamente o episódio da crucificação de Jesus (Lc 23 e 24). Experiência esta, compartilhada que a partir de conversas que gravitavam em torno do evento acabaram por influenciar as memórias dos agentes sociais envolvidos. Estas memórias podem ser percebidas pelo próprio texto ao se obervar as diferentes camadas e/ou informações apresentadas em Lc 23 e 24.

O tema memória é exemplificado ainda no relato da ressurreição de Jesus em Paulo. O que se percebe é que existiam diversas visões e opiniões sobre o evento, nas primeiras décadas decorrentes a crucificação de Jesus. Preocupados que questões das mais variadas: entre elas morte e ressurreição. Estas questões eram fruto de demandas de parcela destes grupos cristãos que tinham acesso aos textos judaicos e das influencias helênicas, a fim de encontrar respostas para como o sofrimento e a morte.

(b) Recepção: neste ponto Chevitarese visa abordar o papel da religiosidade popular na formação das narrativas judaico-cristãs, para isso é apresentado três casos. O primeiro é a historicização do sacrifício de Isaac. Sacrifício esse compreendido como resultante da inter-relação entre estudiosos e pessoas comuns. Tanto do meio helênico quanto do meio judaico. A documentação imagética revela que as narrativas do sacrifício de Isaac estão em diálogo não com a historieta encontrada em Gênesis, mas com as tradições judaicas tardias.

Outro exemplo é o modelo iconográfico da mãe com o filho. Modelo este que se mostra como um elemento comum por parte dos primeiros seguidores de Jesus. O uso iconográfico da mãe com o filho demonstra como o elemento comum às narrativas de diversas mulheres judias da bíblia hebraica (o chamado Antigo Testamento) estava associado à prostituição.

Uma acusação provinda de meio externo ao movimento de Jesus, mas que era bem conhecida pelos seguidores de Jesus. O combate a estas acusações vinha por meio da retomada de figuras como Rute, Tamar e Betsabéia que eram inseridas na genealogia de Jesus. O importante de se perceber desta forma de representar Maria/Menino Jesus é que ela é fruto de respostas às acusações formuladas pelos membros que estavam fora das comunidades cristãs.

O último ponto apresentado desta sessão é a glossolalia (o dom das línguas). O autor busca confrontar os relatos expressos em 1Cor 14 e At 2 com textos judaicos (provindos bíblia hebraica) e documentação do meio helênico. O que se percebeu é que o fenômeno que é diferente de qualquer expressão natural e fruto de transe ou êxtase é próprio da religiosidade helênica. A glossolalia realça a importância dos pesquisadores estarem sensibilizados ao método empregado em análise das fontes e ainda às interações perceptíveis das mesmas.

(c) História e literatura comparada: neste último eixo, Chevitarese indica que as historietas aos serem lidas e/ou ouvidas por seus destinatários produziam insights (ou “gatilhos”) que acabavam por determinar certo sentido ao leitor ou ouvinte. Neste sentido, estas historietas dialogavam com uma memória coletiva própria da Bacia Mediterrânica. Para isto, o autor nos apresenta a parábola do corpo presente em 1 Cor 12:12-27. Parábola esta feita por Paulo para comparar o corpo humano com as casas-igrejas. Esta metáfora é presente também em Dionísio de Halicarnaso (AR 6.86: 1-2. 4-5), Tito Lívio (2,32:8-12), Esopo, Xenofonte (Anábase 5.6:32).

Outro exemplo é a metáfora do pobre que não tem onde dormir. Em Lc 9:58 e Mt 8:20, observa-se esta na fala de Jesus. Bem como em Plutarco, na vida de Tibério Graco (9.5:2-6). Essas e outras narrativas (apresentadas nos últimos capítulos deste eixo temático) indicam que estes esquemas argumentativos ativam ecos profundos e milenares. As bases helenísticas do capítulo 12 do Apocalipse correlacionam a serpente com percepções apotropaicas helênicas e judaicas. A epístola a Filemon permite esboçar uma intersecção entre Cícero e Paulo, a respeito da posse de escravos. E mais ainda de que forma a estrutura patronal era presente na sociedade mediterrânica a tal ponto que estas relações ecoavam no interior das casas-igrejas.

Assim, estes eixos têm como ponto norteador reflexões teórico-metodológicas. Para isto, o autor se vale de estudos de caso que permitem vislumbrar estas considerações epistemológicas (como foi brevemente ilustrado). Além disso, estas considerações contribuem para a percepção que o autor logo na sua introdução chama a atenção: a pluralidade das experiências religiosas que assim fazem com que este lance o conceito cristianismos. Conceito este que exprime o processo histórico de propagação e disseminação do movimento iniciado do Jesus. Sendo talvez esta a maior contribuição da obra para o estudo das expressões religiosas antigas. Uma vez que Chevitarese se vale de diferentes instrumentos: arqueologia, história, antropologia, sociologia e psicologia. Tudo isto a um só tempo para assim demonstrar que estas experiências devem ser encaradas pelos pesquisadores como um movimento plural, dado que desde o início do movimento de Jesus ela é interpretada e recepcionada por diferentes prismas. Assim sendo é uma obra que nos permite ampliar a visão sobre o tema e sobre os métodos para se pensá-la.

Juliana B. Cavalcanti – Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada (UFRJ). Graduada em história pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Entre publicações relevantes há o artigo “Há, portanto, muitos membros, mas um só corpo”: uma breve análise sobre o programa paulino de Reino de Deus, aceito para publicação na próxima edição (Ano VI, Volume 11) da Revista Jesus Histórico. http://lattes.cnpq.br/6770181406770057


CHEVITARESE, André Leonardo. Cristianismos. Questões e debates metodológicos. Rio de Janeiro: Kliné, 2011. Resenha de: CAVALCANTI, Juliana B. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.3, n.6, p. 199-201, jan./jun. 2014. Acessar publicação original [DR]

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.