Cultura Histórica & Cultura Historiográfica | ArtCultura | 2012

Nos domínios da cultura histórica Neste número ArtCultura apresenta um dossiê que procura perscrutar as relações entre cultura histórica e cultura historiográfica. Em cinco textos pontuais os leitores serão convidados a refletir sobre o problema da consciência histórica e da historicidade, elementos constituintes da cultura histórica, que se traduzem em esforços de construção de identidades no tempo articuladoras da relação passado-presente-futuro, materializadas em múltiplos suportes de formas e sentidos diversos nos quais se destacam aqui as narrativas históricas.

Artefatos literários devotados ao estudo do passado que perfazem em diferentes épocas e espaços culturais aquilo que se denomina historiografia, os textos históricos revelam práticas, transformações e convenções sobre o modo de se pensar, pesquisar e escrever a história. Nas palavras de Michel de Certeau, em seu História e psicanálise: entre ciência e ficção, ela “não é, de modo algum, o que vem do passado até nós, mas o que parte de nós e tende a fornecer certo tipo de inteligibilidade do que recebemos ou estabelecemos como passado”.1

Abrindo o dossiê, há uma discussão que aponta para a figura do historiador. Trata-se da aula magna proferida por Jurandir Malerba (PUC-RS) na inauguração da Cátedra Sérgio Buarque de Holanda de Estudos Brasileiros do Lateinamerika Institut da Universidade de Berlim, avaliando a formação e repercussão daquele que foi um dos maiores historiadores brasileiros em determinados espaços e debates historiográficos, revelando como ele pensava e escrevia a história e enfatizando o caráter multidisciplinar de sua obra que dialogava fecundamente com a filosofia, a antropologia, a sociologia, a geografia, a economia, a literatura e a psicologia. Neste artigo, Malerba sublinha a importância do ensaio como um tipo privilegiado de escrita utilizado por aquele autor ao lado de outros importantes intelectuais latinoamericanos do mesmo período.

Em seguida Verónica Tozzi (Untref/ UBA) discute a recepção crítica da obra de Hayden White pela historiografia contemporânea, passandose, portanto, da figura do historiador para a problematização do resultado de seu trabalho: a narrativa. Nele destaca-se o peso da comunidade de historiadores como um crivo disciplinar existente na efetivação do campo historiográfico e a análise de uma questão central: o problema do realismo histórico. A autora discute como as figurações do passado são construídas por intérpretes sociais em contextos específicos em um diálogo permanente com figurações alternativas e opostas, constituindo disputas pelo passado e em torno da representação do real. Hayden White, representante maior do impacto da linguistic turn colocou no centro do debate historiográfico contemporâneo o problema da narrativa como uma dimensão fundamental do trabalho dos historiadores ao discutir como interpretações do passado trazem em seu bojo preocupações ideológicas e subjetivas que para além das técnicas e metodologias de inquirição das fontes, apontam os limites da representação do passado.

No artigo seguinte, Lúcia Maria Paschoal Guimarães (UERJ), examina um dispositivo fundamental para afirmação da disciplina histórica no Brasil e de difusão de práticas científicas no campo entre nós: a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro de 1839, que visava dotar o Império de uma história articulando seu presente ao passado, coligindo e publicando documentos decisivos da história pátria, coadjuvando na difusão deste conhecimento no ensino público e por meio de intercâmbios internacionais, cujo modelo foi o Instituto Histórico de Paris. A autora revela como tanto o Instituto quanto a Revista reproduzem uma ambiência cultural euro-americana típica das primeiras décadas do século XIX, compostas por intelectuais que se reuniam para discutir aspectos da literatura, das artes e das ciências: as sociedades savantes ou corps savantes.

O artigo de Marcos Antônio Lopes e Julio Bentivoglio passa em revista sobre os fundamentos clássicos das narrativas históricas modernas para revelar o impacto da história exemplar, um dos mais longevos regimes de historicidade até o surgimento de um novo tipo de historiografia (científica) em meados do século XIX. Antes da consolidação de uma ciência histórica orientada por um conceito moderno de história, os estudos sobre o passado eram inscritos sob a égide da retórica e da prescrição de determinados valores morais e políticos, em que os historiadores buscavam emular a obra de nomes como os de Tucídides, Tito Lívio, Tácito ou Cícero, rebuscando seus textos para atrair e prender o interesse dos leitores, enfatizando o caráter retórico das narrativas históricas e político das temáticas escolhidas.

Last but not least, o artigo de Estevão Martins (UnB) encerra o dossiê, coroando o eixo estipulado pelo seu organizador. Nele um conjunto de reflexões de ordem teórica ilumina o espaço contextual, ou seja, perpassa pelo universo cultural, onde se desenrola a operação historiográfica. O autor analisa o modo como se articulam cultura histórica e cultura historiográfica, por meio das práticas culturais, responsáveis pela construção de índices culturais e históricos, no qual a historicidade e a razão histórica produzem significados e buscam orientação no tempo, dotando de sentido as experiências humanas, tal como sublinha Jörn Rüsen. Estevão revela a importância dos estudos culturais e de uma abordagem antropológica da cultura para a compreensão da temporalidade e da própria cultura histórica. E indica como o espaço social de comunicação opera contatos e contágios configurando relações de força na sociedade que determinam suas relações com o passado e com a História.

Nota

1CERTEAU, Michel de. História e psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte: Autêntica, 2011, p. 177 e 178.


Organizador

Julio Bentivoglio – Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História Social das Relações Políticas na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Autor, entre outros livros, de Territórios, poderes, identidades: a ocupação do espaço entre a política e a cultura (em coautoria com Adriana Campos, Antonio Gil, Gilvan da Silva e Maria Beatriz Nader). Vitória: GM Editora, 2012. E-mail: [email protected]


Referências desta apresentação

BENTIVOGLIO, Julio. Nos domínios da cultura histórica. ArtCultura. Uberlândia, v. 14, n. 25, p.7-8,  jul./dez. 2012.  Acessar publicação original [DR]

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