Deslocamentos interamericanos: literaturas caribenhas produzidas nos EUA e no Canadá / Revista Brasileira do Caribe / 2015

Quando Antonio Benítez Rojo propõe sua metáfora conceitual do Caribe como meta-arquipélago, como uma ilha que se repete ao longo da bacia marítima, funda uma imagem do universo caribenho que tem muito menos a ver com uma região delimitada geografi camente do que com uma dinâmica de comportamentos que se estende e se multiplica, eu diria, para além das próprias ilhas. Pensar o Caribe como universo cultural que se infi ltra no continente, visualizando sua literatura nos vínculos de pertencimento a uma comunidade literária interamericana, é o centro articulador dos trabalhos que integram o dossiê “Deslocamentos interamericanos: literaturas do Caribe nos Estados Unidos e no Canadá”, especialmente preparado para este número da Revista Brasileira do Caribe.

A problemática do deslocamento cultural é central nas refl exões dos ensaios do dossiê, assim como nos artigos que incluímos na seção “Outros deslocamentos caribenhos”. O movimento diaspórico que caracteriza a história do Caribe, o permanente trânsito cultural, os processos de negociação linguística que se operam nesses trânsitos, a imaginação diaspórica, as múltiplas formas do biculturalismo e da extraterritorialidade, os deslocamentos de um suposto cânone, são temas discutidos no número, que integrou o trabalho de professores e pesquisadores de diferentes universidades do Brasil e dos Estados Unidos, além da obra criativa de escritores caribenhos, especifi camente cubanos, radicados na América do Norte.

Abre o dossiê um ensaio de Roland Walter, “Entre mares e lares: a poética da (des) locação na literatura do arquipélago caribenho”, que aposta em uma hermenêutica do espaço para estudar textos de escritores caribenhos estabelecidos na América do Norte, como Marlene Nourbese Philip, natural de Trinidad & Tobago e radicada no Canadá; Émile Ollivier e Dany Laferrière, haitiano-canadenses, e Jamaica Kincaid, que nasceu em Antígua e vive nos Estados Unidos desde os dezessete anos. O ensaísta estuda a relação que as subjetividades migrantes estabelecem com a noção de lugar. Para isso examina a elaboração de uma espacialidade textual nas obras objeto de estudo e como esta traduz a contínua renegociação identitária entre culturas e lugares.

A fi cção especulativa pós-colonial de Nalo Hopkinson, escritora canadense nascida na Jamaica, cuja fi cção científi ca funde elementos canônicos do gênero com marcadores que remetem claramente a uma modernidade contracultural, é estudada por Sonia Torres em “Modernidade contracultural e pós-‘clonial’ em Midnight Robber, de Nalo Hopkinson”, texto que propõe uma leitura do premiado romance de Hopkinson argumentando como a obra aponta, metaforicamente, para as tensões entre o arquivo ofi cial da modernidade e os pontos cegos dessa mesma narrativa.

Na órbita dos estudos sobre a memória, Denise Almeida estuda em “Abeng: identidades, memórias e histórias em disputa” as formas em que se opera a revisão da memória e das identidades nacional e pessoal no romance Abeng, da escritora jamaicano-americana Michelle Cliff. Ressalta-se neste ensaio o papel organizador e criativo da memória, especialmente a forma como as triagens, acréscimos e eliminações feitas sobre as lembranças impactam na construção da identidade individual e social. A ensaísta frisa o papel decisivo no romance das memórias subterrâneas e minoritárias, que desafi am a memória ofi cial e trazem à tona histórias silenciadas, colocando em confl ito uma memória nacional e pessoal.

O texto “Discursos da memória na literatura da diáspora cubana nos Estados Unidos”, de Elena Palmero González, apresenta uma leitura em diacronia do conceito de diáspora, sua ressemantização na crítica cultural contemporânea, assim como seus vínculos com a atividade memorial. A partir desses pressupostos, discute como as comunidades diaspóricas elaboram formas criativas de memória individual e coletiva, tema que estuda de maneira pontual em um conjunto de textos pertencentes ao universo da literatura cubano-americana, cuja temática central e formas discursivas dominantes estão vinculadas à estetização de uma memória diaspórica.

Na sequência, Jesús Barquet, no ensaio “A literatura hispana dos Estados Unidos: refl exões começando o século XXI”, conduz sua discussão para o tema mais abrangente da literatura latina nos Estados Unidos, incluindo em suas considerações problemas fundamentais da literatura caribenha no espaço geocultural estadunidense. Buscando desativar binarismos derivados de práticas discursivas dos séculos XIX e XX (maioria/minoria; anglo/hispano; centro/periferia), o ensaísta discute como a presença hispana, cada vez maior nos Estados Unidos, nos convoca a repensar e redefi nir o cânone da literatura estadunidense e, por extensão, também o cânone das literaturas latino-americanas e caribenhas no século XXI.

Encerra o dossiê uma breve seleção poética de cinco escritores da diáspora cubana nos Estados Unidos: Magali Alabau, Jesús Barquet, Alina Galliano, Maya Islas e Juana Rosa Pita. Trata-se de uma amostra expressiva do vigoroso movimento da poesia cubana produzida no espaço geocultural estadunidense.

Nesse conjunto notamos a singularidade estética de cada um deles, ao mesmo tempo em que reconhecemos linhas temáticas e estilísticas que caracterizam, de modo mais amplo, a poesia cubana contemporânea.

Completam o numero três ensaios e uma entrevista, que circulam por outros temas caribenhos, também articulados ao problema do deslocamento, entendido neste caso em sentido amplo, não somente como mobilidade física, mas também espiritual, linguística, ideológica, discursiva ou genérica.

O ensaio de Maria Bernadette Velloso Porto, intitulado “Representações da escuta e da palavra da noite em autores francófonos de origem antilhana”, propõe um estudo da oralidade na obra de autores francófonos oriundos das Antilhas. Sua análise aponta a ilegibilidade, a opacidade e a performatividade como formas deslocadas da identidade desses textos, aprofundandose na recuperação da fi gura do contador de histórias e nas relações entre o gesto de escutar e a prática de contar histórias, vistas como lugares de resistência cultural na obra de escritores sensíveis ao processo de crioulização. Para melhor desenvolver suas ideias, a ensaísta estuda o romance Tambour-Babel (1996), do escritor guadalupense Ernest Pépin, um texto que explora a complementaridade entre o domínio da palavra, a performance dos virtuoses do tambor e a arte da dança, enfatizando no corporal e na capacidade de improvisação ligados ao jogo performativo da escrita.

A obra de quatro escritores caribenhos – Aimé Césaire, Édouard Glissant, Patrick Chamoiseau (nascidos em Martinica) e Maryse Condé (de Guadalupe) – é explorada no ensaio de Euridice Figueiredo, intitulado “Caribe francófono e África: interseções”, a fi m de detectar o tipo de relação que esses escritores estabeleceram com a África ao longo de sua vida e de sua obra. A partir da análise dessa relação, a ensaísta desenvolve um estudo diacrônico do pensamento que articula os movimentos negros em torno a duas posições fundamentais relativas à Africa: o mito do retorno à mãe Africa (presente em Cesaire e Condé) e o desejo de enraizamento no solo americano, com o reconhecimento da crioulização como processo que jamais devolverá a Africa, só como alegoria literária (presente em Glissant e Chamoiseau).

“Pater familias por una literatura menor: la poética conceptual del Grupo Diáspora(s)”, de Idalia Morejón Arnaiz, propõe estudar a produção do grupo cubano Diáspora(s) como um dos locus teoricus privilegiados do pós-estruturalismo em Cuba.

Lembrando que o pensamento de Foucault, Derrida, Deleuze e Guattari serviu de ferramenta de interpretação da política e da arte para diversas manifestações coletivas dos anos 1980 na ilha, a ensaísta analisa como as ações concretas do grupo Diáspora(s), assim como sua fi losofi a, se articularam a esse pensamento para expressar o deslocamento substancial que o grupo marcou em relação ao cânone da poesia nacional. Além disso, a autora mostra como a experimentação estética funcionou também como dispositivo da práxis politica.

Encerra o número uma instigante entrevista realizada por Luana Antunes Costa ao escritor martiniquense Patrick Chamoiseau em junho de 2013, durante visita da pesquisadora a Fort-de-France. A conversa versa sobre o contexto sociopolítico e cultural de Martinica, as relações identitárias da ilha com as Américas e com a França; sobre a dinâmica da escrita com Eduard Glissant e sobre conceitos como beleza e política. Como era de se esperar, a conversa fl ui de maneira diáfana e sempre inteligente, tocando pontos centrais da concepção poética e política do escritor.

Vistos em conjunto, todos os textos que integram o número oferecem variações muito originais de um mesmo tema: as múltiplas formas em que o deslocamento e/ou o pensar deslocado impacta a cultura contemporânea no Caribe.

Elena Palmero González


GONZÁLEZ, Elena Palmero. Deslocamentos interamericanos: literaturas caribenhas produzidas nos EUA e no Canadá. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.15, n.20, jan./jun., 2015. Acessar publicação original. [IF].

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