Diálogos desviantes no arquivo: das experimentações artísticas à educação das sensibilidades/Acervo/2019

Nesta edição propomos uma cartografia de sensibilidades emergentes que apontem para novos usos e abordagens dos arquivos, construída em diálogo com os campos da arte e da educação. Desde o seu início, nosso exercício movimentou-se por aproximações e desvios de representações ainda hegemônicas sobre os arquivos, movimento necessário para pensarmos em outras potencialidades dos acervos documentais para as reflexões e experiências dos campos da arte e da educação.

Quando se mergulha em arquivos históricos, o que se vê é uma continuidade reveladora de processos de exclusão social e política, porém, percebe-se também a complexidade das questões. A psicanálise e os estudos da memória nos mostraram que se não reconhecemos as injustiças nas sociedades, se não nomeamos os genocídios cometidos pelo Estado, se não sepultamos nossos mortos, não há reconciliação possível com o nosso passado; estamos destinados ao medo e à repetição das nossas histórias de horror. No entanto, no Brasil, deparamo-nos sistematicamente com a invisibilidade, o abandono e o risco de apagamento dos acervos documentais e artísticos – não podemos nos esquecer das imagens recentes do Museu Nacional em chamas. O trabalho de luto e da memória, que permite a perlaboração e a superação das feridas traumáticas vividas coletivamente, é, dessa forma, negado. É como um pesadelo, revivido de novo e de novo, como uma fantasmagoria em que tudo é sempre novo e, ao mesmo tempo, sempre igual.

Se a operação artística nos arquivos pode tornar visível o pensamento de uma época, como propõe a conceituação dos arquivos como modelos nas artes, amplamente discutida pela história da arte a partir do início do século XX, suas pesquisas e experiências nos permitem imaginar reescritas possíveis de histórias apagadas e incompletas. Olhar os arquivos por uma perspectiva artística significa perceber o documento como ação e identificar seu potencial de transmissibilidade, seu recurso gerador de outras histórias possíveis. Esse olhar é, ainda, o que desde os anos 1980 pesquisadores(as) de ensino de história vêm ampliando, em busca de outras possibilidades de produção de conhecimentos históricos educacionais.

Ana Pato vem de uma trajetória de reflexão e criação que entretece a arte e os arquivos, tensionando-os ética e esteticamente. Em suas pesquisas, dedica-se às relações entre arte contemporânea, arquivo e memória para tratar de temas como as diferentes formas de confrontação artística com os arquivos, a prefiguração pela arte da violência contida nesses espaços, as formas através das quais os arquivos estruturam nossa realidade e a mudança da função dos arquivos, a partir do século XX, como modelo de institucionalização da memória no campo da arte. Em seu trabalho, a pergunta proferida em 1994 pelo filósofo Jacques Derrida, “Por que reelaborar hoje um conceito de arquivo?” (Derrida, 2001), na conferência intitulada “O conceito de arquivo: uma impressão freudiana”, realizada na abertura do colóquio internacional Memória – A Questão dos Arquivos, em Londres, ressoa e produz novos sentidos. O desejo de repensar as instituições de memória e suas práticas mobiliza seus processos de pesquisa em arte para a criação de espaços de escuta e reflexão sobre a experiência histórica traumática (Caruth, 1995; Felman, 2014; Nestrovski; Seligmann-Silva, 2000).

Adriana Carvalho Koyama vem produzindo experiências e reflexões que entrelaçam a educação e os arquivos, buscando aproximações entre esses campos de pesquisa. As pesquisas em educação, em especial em seus diálogos com a concepção de história e de memória de Walter Benjamin, vêm produzindo outras possibilidades de pensar o tempo, a história e a memória nos espaços de formação educacional, buscando desviar-se da concepção de tempo linear e vazio da modernidade, das abordagens historicistas e da racionalidade instrumental, ainda prevalecentes no tecido social, inclusive na educação e nos arquivos, propondo outras palavras e práticas nesse campo, plurais, polifônicas, guiadas por uma racionalidade estética (Galzerani, 2013, 2008, 2005; Matos, 1990).

Tais abordagens, ao desafiar as concepções tecnicistas de educação, concebem a escola, bem como os espaços não formais de educação, como instâncias socioculturais de produção e circulação de conhecimentos, e seus sujeitos, professores e estudantes, como produtores de saberes históricos educacionais, tecidos em diálogo com as memórias sociais. Como espaços de encontros intergeracionais e, na bela expressão de Jan Masschelein (2014), lugares onde a sociedade permite a si mesma o tempo livre para se reinventar, a escola e os espaços sociais voltados à educação são, como a arte, e com a arte, campos privilegiados para o trabalho de luto, de memória e de perlaboração dos traumas sociais, na construção de outras histórias possíveis. Talvez, até, de outras concepções de história e de seu ensino, como nos apontam experiências vividas, nas últimas décadas, na arte e na educação. Como escreve Seligmann-Silva no denso ensaio sobre arte, memória e produção de conhecimento aqui apresentado, essas abordagens, longe de se confundirem com uma virada meramente subjetiva, são, antes, uma virada ética.

Consideramos, nesse sentido, as potencialidades de reflexão e elaboração da violência social, em diálogo com acervos documentais, abordadas como meio e material de produção e circulação de outras narrativas relativas ao passado e às suas (re)apresentações no presente. Tais produções, percebidas tanto como possibilidades educacionais em seu sentido amplo de práticas culturais, isto é, como formas de educação das sensibilidades, quanto como na significação de acervos documentais em processos educacionais de formação docente e discente, prefiguram outras maneiras de nos aproximarmos dos arquivos.

Estes, ao abrirem-se para a presença de outros sujeitos em seus espaços, encontram artistas, professores(as), cineastas, ativistas de movimentos sociais, entre tantos outros, que vêm ampliando e tensionando suas práticas e, sobretudo, a concepção historicista relativa aos arquivos. A presença de artistas no arquivo amplia as vozes dos sujeitos cujos rastros adormecidos povoam os acervos, acordando seus fantasmas e tecendo com eles outros presentes. Esse movimento é também afirmado, e ampliado, por estudantes e professores(as) em experiências desviantes nos arquivos. Dessa forma, os arquivos são interpelados a partir de outras escolhas teórico-metodológicas, deparando-se com outras epistemologias que deslocam práticas e imagens arraigadas do que sejam eles próprios, bem como do conhecimento produzido nos campos da arte e da educação. Os autores deste dossiê nos trazem inspirações para essas outras práticas que vêm sendo criadas nos arquivos, ampliando sua visibilidade e convidando à recriação das abordagens que os aproximam dos campos da educação e das artes.

Na entrevista, Giselle Beiguelman, artista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, traz um relato sobre sua experiência em arquivos e seus projetos artísticos recentes nos quais investiga as estéticas da memória e a arquitetura da exclusão. Ela nos lembra que “todo lugar de memória, todo arquivo onde lidamos com essa brutalidade de sequestro da história do outro é um lugar de encontro com a dor e de enfrentamento das políticas do esquecimento”.

No artigo Do museu-arquivo às inscrições de si, Márcio Seligmann-Silva, professor de teoria literária da Unicamp, apresenta a crítica de Paul Valéry aos museus e discute o conceito de “documento” de Marcel Mauss e de Georges Bataille. O autor analisa a obra da artista Leila Danziger para pensar o anarquivamento ou a anarquização de arquivos na arte. Ao fazê-lo, Seligmann-Silva contempla nesse ensaio, de forma singular, algumas das principais questões contemporâneas sobre a memória, o documento, a arte, seus lugares sociais e suas relações com a produção de conhecimento na modernidade.

O artigo seguinte, The artistic usage of archives through the Benjaminian lens, é de autoria de Anne Klein, professora do departamento de História da Universidade de Laval, e Yvon Lemay, professor da Escola de Biblioteconomia e Ciência da Informação da Universidade de Montreal. A partir da concepção de história de Walter Benjamin, os autores refletem sobre o “uso” dos arquivos por três artistas contemporâneos. A leitura dessas obras permite flagrar os arquivos não como uma totalidade fechada, cercada por uma aura de objetividade plena, como quer crer, ainda hoje, uma certa historiografia. Convoca, ainda, a nos afastarmos de uma concepção situada em seu polo oposto e complementar, ou seja, a da subjetividade radical, que supõe serem os arquivos objetos abertos, suportes para a imaginação narcísica. Ainda em diálogo com Walter Benjamin, os autores propõem o arquivo como uma imagem dialética, um agregado dinâmico que se reconfigura a cada encontro com os sujeitos que dele se aproximam, em experiências singulares nas quais se revelam, no presente, possibilidades de acesso à realidade e a uma temporalidade outra, que confronta o historicismo e o tempo linear e vazio da modernidade, contemplando a produção do conhecimento histórico como encontro entre passado e presente, potencializado pelos arquivos.

Em From collecting an archive to artistic practice in the Intimal project, os autores propõem um encontro multidisciplinar, envolvendo, na pesquisa artística do projeto INTIMAL, as áreas da música, tecnologia, medicina e psicologia social. Nele, os professores e pesquisadores Ximena Alarcón, Lucia Bojorquez, Olivier Lartillot, ligados à Universidade de Oslo, e Helga Flamtermesky, coordenadora da Comissão da Verdade, Memória e Reconciliação das Mulheres Colombianas em Diáspora, analisam a experiência de construção e significação de arquivos sonoros na escuta criativa de testemunhos de memórias traumáticas decorrentes da imigração, produzindo novas possibilidades de abordagem desses acervos, em suas relações com a produção artística contemporânea. É um estudo de caso potente sobre práticas multidisciplinares e sobre os sons em suas relações com as memórias traumáticas.

Andréa França, professora do Departamento de Comunicação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, e Nicholas Andueza, doutorando em Comunicação e Cultura na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), trazem em O cinema de arquivo e a (des)pedagogia das sensibilidades: uma imersão em outros espaços e tempos uma reflexão sobre novas formas de sensibilidade e fazer histórico possibilitadas pelo cinema de arquivo. Defende a função (des)pedagógica do cinema de arquivo, possibilitada pelos modos com que a montagem “injeta uma temporalidade longa às imagens retomadas, deslocando seu sentido original pelo estiramento do tempo e reconfigurando os modos de ver, conhecer e apreender”. Os autores se interrogam sobre as formas de produção de conhecimento em que o cinema de arquivo pode favorecer indagações sobre o presente, em diálogo com os documentos fílmicos, a partir de escolhas epistemológicas que favoreçam a experiência, em contraponto ao experimento, a concepção benjaminiana de história, em contraposição ao historicismo, a “despedagogização” do olhar no enfrentamento da visão como gesto de posse sobre as coisas do mundo, de domínio sobre a alteridade.

Em Potentials of architecture archives for art education: exploring concepts of modern architects from Brazil and Germany through digital and physical approaches on archival material, Johanna Tewes, professora de artes no Walddörfer Gymnasium, Hamburgo, apresenta uma nova abordagem para, no ensino de artes, aproximar estudantes de ensino médio dos trabalhos da arquitetura e dos arquivos. Tal possibilidade se realiza pela análise e comparação de materiais de arquivo, físicos e digitais, que se encontram no Arquivo de Oscar Niemeyer, no Brasil, e no Hamburg Architecture Archive, na Alemanha. Os estudantes trabalham, por meio de suas práticas, em diferentes questões de pesquisa, com foco no desenvolvimento dos conceitos em arquitetura e em sua realização. Ao se aproximarem dos registros documentais das obras dos dois arquitetos, os estudantes podem flagrar relações antes insuspeitas entre seus trabalhos e sua época, em uma perspectiva transnacional, exercício que permite a emergência de outras formas de percepção do tempo e do espaço no ensino de artes historicamente situado.

Helena Marinho, Mónica Chambel e Alfonso Bentti Junior, professores(as) e pesquisadores(as) da Universidade de Aveiro, apresentam em Experimentando com arquivos: a recriação de Double e Don’t, Juan de Constança Capdeville a experiência de recriação das obras, realizada através de uma abordagem musicológica, etnográfica e experimental baseada em trabalho de arquivo e pesquisa coletiva. O artigo levanta questões prementes no que se refere ao registro, preservação e recriação de peças musicais contemporâneas produzidas por meio de tecnologias próprias ao século XX, sujeitas à rápida obsolescência; busca, como resultados, além da recriação dessas performances, a produção e preservação documental de suportes para a organização e sistematização de conteúdos integrados à componente criativa/performativa das obras.

O artigo Cartas de arquivo: um projeto de mediação cultural nos 180 anos do Arquivo Nacional, de Leonardo Augusto Silva Fontes e Tulio Alexandre Saeta, apresenta estudo de caso sobre projeto audiovisual de dramatização de cartas do acervo do Arquivo Nacional. Numa parceria com o teatro, a experiência revela o potencial artístico-literário das cartas de arquivo e uma estratégia de difusão do acervo textual da instituição.

Na seção Resenha, os autores Lurian José Reis da Silva Lima, doutorando em História na Universidade Federal Fluminense, e Adriana Carvalho Koyama, docente e pesquisadora da Faculdade de Educação da Unicamp apresentam duas leituras do livro Da senzala ao palco: canção escrava e racismo nas Américas, 1870-1930, de Martha Abreu, a partir de suas potencialidades para a produção de conhecimentos históricos educacionais e do viés da história social da cultura. Esse livro convoca os estudiosos da música a pensarem nela como um lugar de disputas e de luta contra a violência racial na diáspora africana, e os estudiosos da diáspora a observarem com muita atenção a importância da música nas estratégias emancipatórias dos negros no mundo Atlântico. Convoca, ainda, professores e professoras a ouvir, em suas salas de aula, as outras histórias possíveis, presentes nas experiências e memórias de seus estudantes, bem como nos acervos documentais adormecidos nos arquivos.

Luiz Claudio da Costa, professor do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, apresenta, em A imagem crítica: o documento nas artes e o espaço público do olhar, o projeto integrado “Vidas Precárias: arte, memória, história”, que tem como um dos pilares a pesquisa de artistas nos fundos de documentos do Arquivo Nacional e a realização de uma exposição na instituição em 2020. Com o objetivo de pensar a função da arte no espaço público, Costa analisa o uso do documento na relação com a imagem crítica nas práticas artísticas contemporâneas.


Referências

CARUTH, Cathy (org.). Trauma: explorations in memory. Baltimore: John Hopkins University Press, 1995.

DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Tradução de Claudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001 (1. ed., 1995).

FELMAN, Shoshana. O inconsciente jurídico: julgamentos e traumas no século XX. Tradução de Ariani Bueno Sudatti; prefácio de Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Edipro, 2014 (1. ed., 2002).

GALZERANI, Maria Carolina Bovério. Escola e conhecimento de história e geografia: disciplina acadêmica e educação das sensibilidades. Antíteses, Londrina, PR, v. 6, n. 12, p. 126-147, jul./ dez. 2013.

______. A produção de saberes históricos escolares: o lugar das memórias. In: FERREIRA, Antonio Celso Ferreira; BEZERRA, Holien G.; DE LUCA, Tania Regina (org.). O historiador e seu tempo. 1. ed. São Paulo: Edunesp, 2008.

______. Imagens entrecruzadas de infância e de produção de conhecimento histórico em Walter Benjamin. In: GOULART DE FARIA, Ana Lúcia; FABRI, Zeila de Brito; PRADO, Patrícia Dias (org.). Por uma cultura da infância: metodologias de pesquisa com crianças. Campinas, SP: Autores Associados, 2005.

MASSCHELEIN, Jan; SIMONS, Maarten. Em defesa da escola: uma questão pública. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

MATOS, Olgária. Desejo de evidência, desejo de vidência: Walter Benjamin. In: NOVAES, Adauto (org.). O desejo. Rio de Janeiro: Funarte, 1990.

NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). Catástrofe e representação: ensaios. São Paulo: Escuta, 2000.


Organizadores

Adriana Carvalho Koyama – Doutora em Educação, docente e pesquisadora colaboradora da Faculdade de Educação da Unicamp.

Ana Pato – Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela USP, curadora independente, pesquisadora e professora.


Referências desta apresentação

KOYAMA, Adriana Carvalho; PATO, Ana. Apresentação. Acervo. Rio de Janeiro, v. 32, n. 3, p. 7-12, set./dez. 2019. Acessar publicação original [DR/JF]

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