Diplomática e História | Revista de Fontes | 2020

Em uma obra clássica sobre História Econômica, Carlo Cippola, ao afirmar que a seriedade do historiador está relacionada ao rigor que emprega no tratamento das fontes documentais, ressalta a importância da crítica a essas fontes, entendida como

principalmente a interpretação literal dos textos (decifração), interpretação substancial ou de conteúdo dos mesmos, a determinação da sua autenticidade e a especificação do seu grau de fidedignidade. Os quatro processos são inextricavelmente interdependentes1.

A interpretação diz respeito à capacidade do historiador interrogar os documentos, já os demais processos citados envolvem outros conhecimentos, pois, como salientou Marc Bloch, o ofício do historiador pressupõe uma ampla erudição que lhe permita desenvolver diversas competências, relacionadas às chamadas “ciências auxiliares”2. Dentre essas, destacam-se a Diplomática e a Arquivologia. Mesmo que o adjetivo “auxiliar” pareça indicar uma relativa subalternidade destas ciências à História, ele mimetiza uma relação que, apesar de muito próxima no passado, acabou por desenhar trajetórias independentes, sem que, no entanto, isso implicasse em ruptura.

Ainda que a Revolução Documental tenha ampliado o escopo dos vestígios que servem de fontes para a pesquisa histórica, os documentos escritos continuam a ocupar uma posição de destaque, conferindo grande importância ao necessário diálogo com a Diplomática e a Arquivologia, cujas abordagens teóricas e metodologias permitem ao historiador proceder a crítica documental.

Das guerras diplomáticas do século XVII e, em especial a partir de Mabillon, os primeiros diplomatistas eram historiadores do seu tempo que buscavam preservar, divulgar e defender a história de suas ordens religiosas e dos acervos de suas catedrais e mosteiros3. Assim, a Diplomática constituiu-se em uma disciplina que, através da crítica científica dos documentos, era capaz de dirimir disputas suscitadas pelos questionamentos sobre o valor probatório de antigos diplomas custodiados por bibliotecas e arquivos medievais4.

Com a consolidação dos arquivos enquanto depositários fiéis dos documentos produzidos e acumulados pelos estados europeus e o estabelecimento de uma cadeia de custódia clara e segura, a necessidade da verificação da autenticidade dos documentos de arquivo através da análise diplomática deixou de ser essencial para dirimir disputas judiciais. Mas, se a Diplomática progressivamente foi perdendo seu protagonismo nos embates jurídicos, consolidou sua importância como ciência auxiliar da História. Tratava-se agora, da busca da autenticidade dos documentos enquanto vestígios fidedignos, validando seu caráter comprobatório sobre o passado5.

Assim, ao longo do século XIX, três movimentos impulsionam a História, a Diplomática e a Arquivologia em torno dos documentos escritos: a História científica de Von Ranke, alicerçada nos acervos arquivísticos enquanto seu laboratório, no qual a verdade objetiva era garantida por meio da autenticidade dos documentos históricos; a Arquivologia, impulsionada pela enunciação do principiada proveniência (1841) e da publicação do Manual de Arranjo e Descrição de Arquivos de Samuel Muller, J. A. Feith e R. Fruin (1898), salientando a relação orgânica entre os conjuntos documentais e as instituições produtoras6, e a Diplomática, cujo objeto era definido como os documentos diplomáticos medievais analisados a partir do método da partição proposto por Theodor Sicker e Julius Finer7.

Mas, na segunda metade do século XX, a História reviu suas abordagens, fontes e métodos e, nesse processo, aproximou-se de outras áreas de conhecimento, afastando-se das fontes e temas considerados “tradicionais” e, consequentemente da Diplomática e outras ciências auxiliares como a Paleografia. Já a Arquivologia foi desafiada/renovada por dois processos. O primeiro, foi a explosão documental, que a obrigou a voltar-se para a questão da avaliação e da gestão documental. O segundo foram as transformações trazidas pela revolução tecnológica e seus impactos sobre os documentos, levando ao questionamento de antigos paradigmas da Arquivologia8.

Nesse novo contexto, a Diplomática é renovada. Ainda que já houvesse um movimento de redefinição do seu objeto dos diplomas medievais para os documentos de arquivo, foi a crise dos paradigmas da Arquivologia a partir dos anos de 1980 que viabilizou a reaproximação dessas duas ciências e a renovação e revalorização da Diplomática.

Essa renovação teve como um dos seus marcos principais a publicação por Luciana Duranti, em 1989, de uma série de seis artigos no periódico Archivaria, da Associação dos Arquivistas Canadenses, intitulados “Diplomatics: New Uses for an Old Science”. Esses artigos, originários da sua experiência docente na Universidade de Colúmbia Britânica marcaram o advento de uma nova forma de pensar a Diplomática dando origem à Diplomática Arquivística na crítica aos documentos contemporâneos, inclusive aqueles nato-digitais.

É justamente, o primeiro artigo dessa série, Diplomática: novos usos para uma antiga ciência, de Luciana Duranti que abre esse dossiê da Revista de fontes9. Esse texto, traduzido pela primeira vez para o português, é precedido por uma apresentação na qual a autora contextualiza a publicação original e reafirma a sua perspectiva de análise. Neste texto, a autora, retomando o surgimento da Diplomática, define seu objeto enquanto o documento arquivístico e discute os conceitos de autenticidade e originalidade. Duranti reforça as distintas perspectivas com que historiadores e arquivistas analisam os documentos arquivísticos, por isso propõe uma nova abordagem à Diplomática original, adaptada ao trabalho arquivístico de avaliação, arranjo e descrição de documentos.

O segundo texto do Dossiê é de Heloisa Liberalli Bellotto, A Diplomática na formação do historiador, é um diálogo com o estudante de História. A autora chama a atenção para a importância da análise diplomática para o historiador, mas também da análise tipológica que, orientando os trabalhos de arranjo e descrição de arquivos permanentes, pode contribuir para que o historiador compreenda o contexto de produção dos documentos que consulta.

No terceiro artigo desse dossiê, Diplomática como base para a construção do método de identificação do documento de arquivo, Ana Célia Rodrigues aborda a relevância da Diplomática para os estudos da gênese documental através da análise tipológica, originalmente desenvolvida pelo Grupo de Arquivistas Municipais de Madri para identificação dos tipos documentais. Essa abordagem, tributária da Diplomática, exerce grande influência sobre a Arquivologia latino-americana e estabelece a crítica tipológica como ponto de partida para a identificação, classificação e descrição de documentos arquivísticos.

O artigo “Eu El Rey Vos Envio Muito Saudar”: Carta régia setecentista, documento diplomático, de Maria de Fátima Nunes Madeira e Marcelo Módolo, apresenta um estudo filológico de um diploma, uma cópia de uma carta régia emitida pelo rei de Portugal em 16 de dezembro de 1755 e destinada à Câmara Municipal de Sabará. Esse estudo e sua transcrição semidiplomática demonstram como a utilização dos métodos da Paleografia e da Diplomática são utilizados para evidenciar não apenas as informações estruturais deste documento, mas também aquelas relativas ao seu contexto de produção e transmissão.

As diferentes abordagens da Diplomática que formam esse dossiê evidenciam algo que é essencial a todo historiador: a consciência de que os documentos com os quais trabalha não nasceram para ser históricos, mas sim foram produzidos como atos administrativos ou integrantes de arquivos pessoais. Consequentemente, esses documentos guardam em sua estrutura, forma, suporte etc. informações relevantes que ajudam a compreendê-lo no seu contexto de produção assim como a desvendar os vínculos entre os agentes envolvidos. Desta forma, a partir do diálogo com a Diplomática e com a Arquivística, é possível ao historiador tratar essas fontes documentais com o rigor proposto por Cipolla.

Notas

1 Carlo M. Cipolla. Introdução ao Estudo da História Econômica. Lisboa: Edições 70, 1995, p. 51.

2 Marc Bloch. Apologia da História ou O Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002, p. 81.

3 Natália Bolfarini Tognoli. A construção teórica da Diplomática: em busca de uma sistematização de seus marcos teóricos como subsídio aos estudos arquivísticos. Tese de Doutoramento em Ciência da Informação: Universidade Estadual Paulista, 2013, fl. 40.

4 Anna Carla Almeida Mariz; Thayron Rodrigues Rangel. Arquivologia: temas centrais em uma abordagem introdutória. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2020, p. 70.

5 Natália Bolfarini Tognoli. A construção teórica, op. cit., fl. 40.

6 Francis X. Blouin Jr; William G. Rosemberg. Processing the past: contesting authority in History and the Archives. Oxford: Oxford University Press, 2013.

7 Natália Bolfarini Tognoli. A construção teórica, op. cit., fl. 40.

8 Terry Cook. “O passado é prólogo: uma história das ideias arquivísticas desde 1898 e a futura mudança de paradigma”. In: Luciana Heymann; Letícia Nedel (org.). Pensar os arquivos: uma antologia. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018, pp. 17-81.

9 O quinto artigo dessa série foi publicado pela Revista Acervo do Arquivo Nacional. Ver Luciana Duranti. “Diplomática: novos usos para uma antiga ciência (parte v)”. Acervo – Revista do Arquivo Nacional, 28-1 (2015), pp. 196-215.

Referências

BLOCH, Marc. Apologia da História ou O Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.

BLOUIN JR., Francis X.; ROSEMBERG, William G. Processing the past: contesting authority in History and the Archives. Oxford: Oxford University Press, 2013.

CIPOLLA, Carlo M.. Introdução ao Estudo da História Econômica. Lisboa: Edições 70, 1995.

COOK, Terry. “O passado é prólogo: uma história das ideias arquivísticas desde 1898 e a futura mudança de paradigma”. In: Luciana Heymann; Letícia Nedel (org.). Pensar os arquivos: uma antologia. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018, pp. 17-81.

DURANTI, Luciana. “Diplomática: novos usos para uma antiga ciência (parte v)”. Acervo – Revista do Arquivo Nacional, 28-1 (2015), pp. 196-215. Disponível em: https://www.brapci.inf.br/index.php/res/v/43320 .

MARIZ, Anna Carla Almeida; RANGEL, Thayron Rodrigues. Arquivologia: temas centrais em uma abordagem introdutória. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2020.

TOGNOLI, Natália Bolfarini. A construção teórica da Diplomática: em busca de uma sistematização de seus marcos teóricos como subsídio aos estudos arquivísticos. Tese de Doutoramento em Ciência da Informação: Universidade Estadual Paulista, 2013.


Organizadora

Marcia Eckert Miranda – Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Departamento de História, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Guarulhos, SP, Brasil. E-mail: [email protected]  https://orcid.org/0000-0002- 8020-0744


Referências desta apresentação

MIRANDA, Marcia Eckert. Diplomática e História. Revista de Fontes. Guarulhos, v.7, n.13, p.1-5, 2020. Acessar publicação original [DR]

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