Diritto pubblico e diritto privato: una genealogia storica | Bernardo Sordi

Bernardo Sordi, professor de história do direito medieval e moderno na Universidade de Firenze (Itália), grande especialista na área da história da administração e do direito administrativo, integrante da renomada Escola Florentina de História do Direito e membro do conselho editorial da importante revista jurídica “Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno”, na obra “Diritto pubblico e diritto privato: una genealogia storica”, publicado pela editora Il Mulino, realiza uma reflexão muito interessante e erudita do longo e complexo itinerário europeu da dicotomia público e privado.

Como não poderia deixar de ser, o autor procura incansavelmente historicizar e problematizar a distinção, demonstrando que, para além das palavras (ius publicum e ius privatum), os significados e os imaginários envolvendo a dicotomia são profundamente dependentes dos seus contextos culturais, são sempre contingentes (Hespanha, 2012, p. 13)2 Bernardo Sordi evidencia e explica a profunda relatividade histórica dos termos. Diferentes temporalidades e localidades, riqueza e diversidade deste jogo de palavras.

Ao longo desse grande percurso, o autor constata que a dicotomia público e privado, apesar de remeter a uma distinção muito antiga, na conhecida definição de Ulpiano, assentada no Corpus Iuris Civilis, tem a sua força e consagração na modernidade jurídica. Público e privado são termos muito antigos, mas também novíssimos. A descontinuidade essencial entre o direito romano (antigo) e a dimensão jurídica moderna é muito bem observada pelo autor.

O historiador do direito explica que é apenas no final do antigo regime, com o surgimento e desenvolvimento dos Estados Modernos, com as revoluções, revoltas e reformas do final do século XVIII, que a antiga distinção começa a assumir a estrutura de uma grande dicotomia conformadora de todo o direito, a

(…) summa divisio dell’intero ordine giuridico, incarnando compiutamente il modello ottocentesco, i suoi esiti statualistici e codicistici, il suo tipico equilibrio tra empire e propriété, tra la sovranità dello Stato e i diritti del soggetto individuale (Sordi, 2020, p. 07).

No medievo europeu ocidental, como ensina Paolo Grossi (2014), não há propriamente a figura do Estado, calcado na ideia de soberania (Grossi, 2014). A dimensão jurídica no medievo, considerando o tempo histórico na sua longa duração, não é colonizada por um poder político único e monopolizador, guarda um alto grau de autonomia em relação a contingências políticas de uma dada coletividade. O Estado soberano é uma invenção moderna, a ordem jurídica medieval se caracteriza, notadamente, por um “vazio político relativo”, “um direito sem Estado” (Grossi, 1996, pp. 267-284) 3. As condições ainda não são favoráveis ao aparecimento de uma forma muito específica de compreender o direito como a observada na França pós-revolucionária.

Nesse mundo medieval, nessa sociedade de poderes fragmentados, do pluralismo jurídico e da Iurisdictio (Costa, 2002) como atesta Sordi (2020), não há esta bipartição dicotômica público e privado como um elemento estruturante de toda a dimensão jurídica. Ainda que a distinção não tenha passado desapercebida por parte dos juristas medievais, atentos às fontes romanas, não existe propriamente um direito público, em termos contemporâneos, autônomo e destacado no ordenamento em oposição ao direito privado. Outras distinções são mais comuns, ius divinum / ius humanum; ius civile / ius canonicum; ius commune / iura própria.

Bernardo Sordi reconstrói boa parte do percurso histórico europeu da grande dicotomia público e privado analisando especialmente o pensamento jurídico, político e filosófico dos últimos séculos. Algo muito interessante, e que novamente demonstra a complexidade histórica do tema, é observar o cuidado do autor com as tipicidades da gênese desta grande dicotomia (em seus “itinerários” alemão, francês, inglês e italiano) com seus diferentes processos e fundamentos.

A parábola ascendente da grande dicotomia é observada especialmente no século XIX. Século de consagração, no âmbito europeu ocidental, de todo o ideário de matriz liberal-burguesa. Tempo de desenvolvimento e consolidação dos Estados soberanos e de colocação do direito em um rígido paradigma estatal (Fioravanti, 2005). A lei agora adquire um papel central como a fonte principal ou praticamente exclusiva do direito (Stolleis, 2014, p. 75).4 Inauguração de uma novíssima noção de representação política, que passa a assumir a função de representação geral (comum e igual) dos cidadãos. Invenção e desenvolvimento de todo o ideário de “interesse público” e de uma estrutura administrativa. Forte separação entre administração e justiça. Criação de um direito público (novo) responsável por estabelecer os pilares e as balizas da (igualmente nova) administração moderna.

A grande dicotomia direito público e direito privado ganha dignidade teórica e filosófica fornecida especialmente por Kant, em 1797, em “Princípios metafísicos da doutrina do direito”. Além disso, encontra elementos importantes, embora não exclusivos, de sua base jurídica no pensamento de Savigny, em 1840, com “Sistema de direito romano atual”, que retoma a antiga distinção de Ulpiano entre ius publicum e ius privatum, mas atribui conteúdos modernos novíssimos. A dicotomia se torna estrutural, a grande chave de compreensão de todo o ordenamento jurídico, e permite “distinguere Stato e società, a contrapporre individuo e potere, a circoscrivere un ambito di ‘sociabilità` che ruota intorno agli interessi individuali e si distende quindi nelle conseguenti relazioni intersoggettive.”(Sordi, p. 98).

Na esfera privada, tem-se a tutela da propriedade (consagrada como direito praticamente absoluto), a tematização e promessa da liberdade e da igualdade formal, assim como o progressivo reconhecimento da autonomia e independência do sujeito individual. Observa-se a pretensão da sociedade civil de distinguir-se do Estado. De um lado a sociedade, do outro o Estado. Os interesses tutelados são os privados, individuais. Os grandes códigos privados do século XIX, individualistas e proprietários, são compreendidos como uma espécie de “Constituição da vida dos privados”. Seus pilares fundamentais são a propriedade, a família e o contrato. O Código Civil francês de 1804 é o grande exemplo disso. O “código símbolo” ou a “forma código (Cappellini, 2000), constituindo pretensamente “a concretização da volonté générale” (Hespanha, 2002, p. 402), torna-se o modelo ideal de direito, ou melhor, não há direito e direitos que estejam para além dos monumentos legislativos codificados (Cazzetta, 2012, p. ix).5

Na esfera pública, em linhas muito gerais, o objeto da regulamentação é o Estado, agora uma pessoa jurídica, e a sua estrutura administrativa. Comando, autoridade e império são as preocupações principais. Assiste-se à formação do direito público. O interesse tutelado é o público ou, em certa medida, o interesse supostamente de toda a sociedade e não o individual dos particulares. No século XIX, de um lado o Estado, do outro o indivíduo sujeito de direito.

No âmbito desta grande dicotomia, Bernardo Sordi proporciona ainda uma análise muito densa e interessante sobre a regulamentação da administração pública e o papel da doutrina, da ciência jurídica, na construção do direito administrativo nas últimas décadas do século XIX.

Conforme o autor, se o século XIX consagra a dicotomia público e privado e a coloca como elemento estruturador de toda a ordem jurídica, o Século XX traz o seu descenso. “´L`homme isolé n`existe pas` proclama, nel 1896, Léon Bourgeois (Sordi, 2020, p. 139). A “questão social” cada vez mais urgente, a explosão de inúmeros conflitos sociais, o surgimento de novas preocupações e novos deveres de solidariedade, trazem novas demandas e tarefas ao Estado a à administração pública. As esferas pública e privada são embaralhadas, confundem-se. Novos papéis e equilíbrios para institutos como a propriedade, o contrato, a sucessão, a assistência social e a organização dos serviços públicos.

Ainda no início do século XX o modelo da grande dicotomia permanece na mentalidade de muitos juristas, “Ma non corrispondono più, ormai, allo spirito del tempo: tempo inquieto, tempo di crisi, tempo di trasformazioni generali” (Sordi, 2020, p. 147). As fronteiras entre o público e o privado são perturbadas. Entre Estado e economia, social e individual, interesses gerais e particulares, os limites da grande dicotomia público e privado começam a esvanecer.

Neste tempo e espaço, como observa o autor, a propriedade como direito sagrado e praticamente absoluto, nos termos das declarações revolucionárias burguesas, começa a ser condicionada e funcionalizada. As definições de sujeito de direito, direito subjetivo e o papel central da vontade no âmbito jurídico começam a ser colocados em discussão. A liberdade passa a conviver com novas exigências coletivas, com novos deveres e obrigações. Assim, é necessário um outro e renovado direito público, é preciso repensar o conceito, o papel e as funções do Estado na sociedade e o que se entende por serviço público. Tem-se aqui igualmente o início da crítica à grande dicotomia entre o direito público e o direito privado.

Como explica Bernardo Sordi, de forma muito mais profunda e complexa, o “ponto de não retorno” desta aproximação e mistura entre as esferas é o início da primeira guerra mundial. O “direito de guerra” introduz pesados condicionamentos publicísticos no âmbito do direito privado. O direito privado dos indivíduos e o direito de empresa passam a sofrer novas limitações e conformações, outros conteúdos e inquietações. O profundo individualismo típico dos códigos civis oitocentistas deve ser revisto. A igualdade formal já não é mais suficiente, é preciso caminhar em direção à igualdade substancial. “La grande dicotomia à già scesa dal piedistallo” (Sordi, 2020, p. 157).

Paralelo a tudo isso, aumentam as tarefas do Estado, cresce de forma significativa o seu aparato administrativo e o desenvolvimento de uma burocracia profissional. “L’amministrazione burocratica diventa il nucleo costitutivo e la componente fondamentale ed indefettibile” (Sordi, 2020, p. 160) do Estado ocidental moderno. Há uma expansão das atividades estatais e, consequentemente, dos entes públicos. Nesse mesmo período, tem-se ainda o surgimento de uma espécie de terceira dimensão jurídica, autônoma, distinta das esferas até então tradicionais (nem pública e nem privada). Tem-se o nascimento do direito social (em que o direito do trabalho seria o seu exemplo mais significativo), uma expressão muito ampla, bastante difundida nesta primeira metade do século XX e que permitiu inúmeros desdobramentos.

Ainda no século XX, ocorrem eventos extraordinários que remodelam, misturam e tornam ainda mais complicada a relação entre o público e privado. Entre as duas guerras, permanece a “espansione della ´mano pubblica`” (Sordi, 2020, p. 189). Todo o legado da Constituição de Weimar de 1919 e do “sistema weimariano”, apesar da sua curta República. Verifica-se igualmente o nascimento de um direito coletivo e coorporativo no âmbito do Estado Fascista. Um Estado autoritário, totalitário e corporativo.

Mesmo após o fim da segunda guerra mundial, nota-se a permanência da expansão da estatalidade no âmbito privado e o desenvolvimento do direito social. Ao lado da publicização do direito privado, a privatização do direito público. O desenvolvimento do direito econômico e das “Constituições Econômicas”. Há uma clara preocupação com a regulamentação jurídica e com a intervenção estatal no mercado. Estado e economia, império e propriedade, descobrem uma rica e profunda interconexão. O “Estado Constitucional”, após a segunda grande guerra, busca por uma nova unidade do ordenamento jurídico, procurando superar a dicotomia público e privado.

Nesta parábola, a partir do último quarto do século XX, esta história começa a mudar. A queda do regime soviético, o desenvolvimento da comunidade econômica europeia, a revolução tecnológica, o desenvolvimento de uma economia digital internacional, a globalização econômica e a porosidade das fronteiras são alguns fatores, pontuados por Bernardo Sordi, que favorecem e principiam o “nuovo spirito del tempo” (Sordi, 2020, p. 211). Na esteira de Hayek e do novo ideário neoliberal, assiste-se a uma renovada primazia da economia sobre o direito e sobre a política.

Nestes últimos decênios, a globalização econômica, as políticas neoliberais e o empobrecimento dos programas constitucionais fazem pensar em uma nova preeminência do direito privado. O intervencionismo deixa o seu lugar para a concorrência. Defende-se uma economia de mercado “aberta e livre”. Observa-se uma onda de privatizações e a decomposição ou o refluxo dos direitos sociais e trabalhistas.

No entanto, na nova ordem global e neoliberal, não é em direção a uma separação radical entre o público e o privado que caminha a dicotomia. O papel do Estado sofre mutações significativas, mas a sua presença permanece e continua sendo fundamental. A “mão visível do direito” perdura ainda que com funções, tarefas e pesos diversos. O mercado não é regulado por uma ordem espontânea, ele precisa do direito e do Estado. Assim, “lo Stato gestore cede il passo allo Stato regolatore” (Sordi, 2020, pp. 213-214). Regular e “salvar” os mercados dos seus problemas e crises, especialmente após a grande crise financeira de 2008, é tarefa do Estado.

Por fim, público e privado resistem e permanecem como coordenadas fundamentais do direito contemporâneo. Entretanto, há inúmeras combinações e miscigenações entre as esferas. As dimensões jurídicas tornam-se cada vez mais complexas. Na sempre renovada e remodelada relação entre público e privado, Bernardo Sordi propõe um equilíbrio razoável entre necessidades pessoais e coletivas, interesses públicos e privados, direitos e deveres, garantias e poderes. Trata-se de um livro importantíssimo, fundamental e que permite ao leitor deste país, com as devidas mediações, refletir sobre o quanto esta parábola influenciou o Estado e o direito brasileiros, mas também foi diferente e bastante incompleta.

Notas

4 Nas palavras de Michael Stolleis, “graças à possível recondução hipotética à vontade do povo, ela adquire três novas qualidades. A lei é o novo sobrerano, que substitui o monarca. É o pastor vigilante, contrário ao poder monárquico remanescente. Finalmente, é a palavra completa da codificação nacional.” (…) “a ‘lei’ se torna um novo Deus, já que, doravante, é a única expressão visível da nova ordem político-hierárquica a conformar a vida.” (Stolleis, M. (2014) O olho da lei: história de uma metáfora. Doyen, 2014, p. 75.

5 Conforme explica Giovanni Cazzetta, no “inizio dell’Ottocento il Codice civile di Napoleone si propose come nuova forma di ordine del giuridico e come progetto di programmazione statale di una società presentata come lo specchio delle certezze e delle speranze della borghesia at potere.” (Cazzetta. Giovanni. Codice civile e identità giuridica nazionale: percorsi e appunti per una storia dele codificazioni moderne. Torino: G. Giappichelli Editore, 2012, p. ix).

Referências

CAPPELLINI, P. (2000). Il codice eterno: la forma-codice i suoi destinatari: morfologie e metamorfosi di un paradigma della modernità. In Cappellini, P.; Sordi, B. Codici: Una riflessione di fine millennio. Giuffrè.

CAZZETTA, G. (2012). Codice civile e identità giuridica nazionale: Percorsi e appunti per una storia dele codificazioni moderne. Giappichelli Editore.

COSTA, P. (2002). Iurisdictio: Semântica del potere politico nella repubblica medievale (1100-1433). Giuffrè.

COSTA, P., & Zolo, D. (Orgs.). (2006). O estado de direito: História, teoria, crítica. Martins Fontes.

FIORAVANTI, M. (Ed.).(2005). Lo stato moderno in Europa: Istituzioni e diritto. (5a ed). Laterza.

FONSECA, R. M. (2009). Introdução teórica à história do direito. Juruá.

GROSSI, P. (1996). Un diritto senza stato (La nozione di autonomia come fondamento della costituzione giuridico medievale). Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno, n. XXV.

GIUFFRÈ. Grossi, P. (2014). A ordem jurídica medieval. Martins Fontes.

HESPANHA, A. M. (2012). Cultura jurídica europeia: Síntese de um milénio. Almedina.

STOLLEIS, M. (2014). O olho da lei: História de uma metáfora. Doyen.

SORDI, B. (2020). Diritto pubblico e diritto privato: Una genealogia storica. Bologil Mulino.


Resenhista

Sérgio Said Staut Júnior – Universidade Federal do Paraná (UFPR).


Referências desta Resenha

SORDI, Bernardo. Diritto pubblico e diritto privato: una genealogia storica. Bologna: Il Mulino, 2020. Resenha de: STAUT JÚNIOR, Sérgio Said. Historicizando a “grande dicotomia”. História do Direito. Curitiba, v.1, n.1, p. 418-423, jul./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.