Economía Y Política em la Argentina Kirchnerista | Adrián Piva

Adrián Piva é sociólogo, docente na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires (UBA), e docente e pesquisador nos Departamentos de Economia, Administração e Ciências Sociais da Universidade Nacional de Quilmes. O livro tem como questionamento central o chamado período da pós-convertibilidade na Argentina (pós-2001), sob a óptica de como se procedeu à reestruturação da acumulação de capital dentro das novas configurações de blocos de poder, tendo o papel do Estado como agente reagrupador de forças, pelas mãos do kirchnerismo.

O livro é divido em três eixos centrais: I – Modo de Acumulación de Capital y Dominación Política, II – Estado y Conflito Social e III – El Modo de Dominación Política. A análise da transição do período da convertibilidade (1 peso = 1 dólar, 1991-2001) para a dita “pós-convertibilidade” se dá pela ênfase na pressão social que impediu que tivesse sido implementada a saída pela redução drástica dos salários como meio de ajuste da relação lucros/salários, dentro do esquema construído pelas regras da convertibilidade. Impediu-se a solução pela via deflacionária, a qual seria proveniente da plena liberação para baixo dos salários, tendo sido uma espécie de “laboratório” para a flutuação dos salários nos mesmos moldes das flutuações internacionais do mercado de câmbio. É dizer claro, que a estrutura monetária e cambial da convertibilidade era argumentada sob um viés de que na pior das hipóteses acerca de elevações desproporcionais de custos de produção, com baixos níveis de produtividade da indústria, o remédio construído dentro da própria redoma do tamanho pré-determinado para a base monetária e para os meios de pagamentos (concernentes de forma exclusiva às disponibilidades atreladas ao balanço de pagamentos) estaria na adequação dos preços relativos através da flexibilização total dos salários. Um dos principais estopins da convulsão social dos anos de 2001 e 2002, em que a opção pela desvalorização cambial, com todas as posteriores repercussões inflacionárias, impediu a deflagração da via deflacionária pelos salários como instrumento de reestruturação do capital.

A mudança do eixo de acumulação de capital, a partir de 2002, se deu pela perda do protagonismo do setor financeiro em favor do capital produtivo, com ênfase na indústria direcionada para o setor exportador. O câmbio desvalorizado se encarregou de fazer os ajustes nos custos salariais da indústria. Na outra ponta, o setor exportador mais beneficiado foi o setor agro-exportador, com os preços das commodities no período 2003-2005. Razão essa, a qual o autor menciona como sendo um dos fatores primordiais para a mudança interna do bloco de poder das classes hegemônicas. O favorecimento do setor industrial, mais a perda de poder relativo do setor financeiro, cujo maior alicerce se dava com a então convertibilidade, se deram conforme um quadro não de um surgimento de uma indústria dinâmica, incorporadora de grandes nichos de tecnologia, mas de uma produção de baixo valor agregado, também presente na reconfiguração da pauta de exportações. Setores como metal-mecânico e têxtil foram os que mais se destacaram em função do aproveitamento da redução salarial (não em termos nominais) propiciada pela desvalorização cambial.

O ressurgimento da autonomia do Estado é de sobremaneira o principal ator a ser mencionado como elemento de reorganização das bases de acumulação de capital da pós-convertibilidade. O período 2003-2005 não foi apenas o período de melhora das condições de termos de troca internacionais por força das commodities, mas o período de maior enfrentamento da questão da dívida externa deixada como resultado do período da convertibilidade. Disto, a reestruturação forçada dos pagamentos de juros e demais serviços da dívida externa, com a decisão de redução unilateral do reconhecimento do saldo devido da dívida externa, pelo Estado argentino, possibilitou a dupla existência de superávits em conta corrente do balanço de pagamentos e superávits fiscais primários, pois a carga de juros e serviços externos (agora eliminada) mais o crescimento das exportações geraram uma situação inédita desde 1976, em que o Estado acumulava recursos em moeda estrangeira e nacional, recuperando a capacidade de investimento e de sobreposição sobre as demais forças do capital, que até então impunham o modo de acumulação capitalista. Se a convertibilidade foi a saída para a hiperinflação em 1989, com o reagrupamento de forças em torno da aceitação das condições de recebimento de capitais financeiros de curto prazo, desde 1991, o câmbio desvalorizado reconstruiu as bases do capital industrial no pós-2001, ao mesmo tempo que a reestruturação forçada da dívida externa reconstruiu a capacidade de pagamentos do Estado argentino, tendo permitido o aproveitamento do período de maiores preços das commodities para a formação de um saldo de reservas internacionais (por mais que tenha ocorrido a posterior deterioração do mesmo devido à reversão dos saldos comerciais após 2007), além de ter possibilitado o manejo das políticas fiscal e monetária para despesas de capital do Estado, agora desatreladas das abruptas necessidades de transferências de recursos fiscais em pagamentos de juros internacionais, então deixadas pela herança do período 1991 – 2001.

O kirchnerismo foi caracterizado como um rearranjo de forças políticas, numa espécie de revitalização do antigo populismo peronista, pela incorporação de massas antes marginalizadas da vida política e econômica, pela via da tutela do Estado sobre a atividade sindical. Adrián Piva utiliza o termo “keynesianismo trunco”, no que poderia ser traduzido como keynesianismo vulgar, para tipificar o instrumental de política econômica (política fiscal e monetária) plenamente acomodatícia incorrer no atendimento das demandas sindicais crescentes sem que as mesmas viessem a ser originadas de sacrifícios impostos ao capital, mas pela perda do valor da moeda, dada à injeção de recursos monetários acima dos níveis de oferta global da economia, isto é, acima dos níveis de produtividade, sancionando, em última instância, a espiral inflacionária. O bojo das negociações salariais, determinado pela estrutura das chamadas “paritarias”, em que as centrais sindicais e as entidades patronais negociam anualmente os reajustes de preços e salários, em um regime de câmaras setoriais (em formato semelhante às câmaras setoriais empregadas no Brasil, durante o governo Itamar Franco, no período pré-Plano Real), além da política de amplos subsídios às tarifas públicas, possui no recurso da emissão monetária o instrumento último de geração de recursos públicos para a acomodação de preços subsidiados, de diversas esferas produtivas, em compensação aos dissídios salariais.

Nos últimos anos a emissão monetária vem sendo o instrumento de capacitação da política fiscal pela política monetária para o enfrentamento da subida de custos de produção. Se por um lado a política de subsídios se cristalizou pela tentativa de frear a subida de preços finais da economia, por outro lado, o peso dos oligopólios e a grande massa de recursos monetários em circulação inflaram a demanda agregada em níveis superiores aos patamares não inflacionários sustentados pelas condições da oferta. De fato, a inflação do período pós-convertibilidade é caracterizada pelo avanço do capital sobre o trabalho, em que a via dos oligopólios industriais e do campo vem sobrepondo às margens de lucro na determinação dos preços relativos, em um cenário marcado pela perda do poder da moeda por razão da emissão monetária excessiva ser o instrumento sancionador dos preços finais, originados na barganha lucros/salários.

A crítica ao keynesianismo, ou ao assim chamado pós-keynesianismo, por empregar a ampliação da quantidade de moeda em circulação para fins de sustentação da política fiscal e de amplos subsídios, vem a cabo de um diagnóstico marxista do autor, a respeito da criação de moeda em níveis superiores à quantidade requerida pela estrutura produtiva do capital, sob a forma dinheiro, no circuito D-M-D’. No entanto, a mesma crítica poderia ser empregada por diversas vertentes do pensamento econômico no que tange à lógica inflada de meios circulantes para o atendimento das demandas do Estado, tendo colocado a demanda agregada em níveis superiores às condições de produtividade da economia em termos agregados. O mesmo diagnóstico, sendo feito de forma curiosa por um “monetarista”, ou por um “marxista”, chegaria à constatação do uso político da justificativa da condução da demanda agregada a qualquer preço, com a renúncia da defesa do valor da moeda em última instância. O autor qualifica a questão da política de concessão de crédito como também um dos pilares da aceleração inflacionária dos últimos anos na Argentina, tendo também agravado a crise cambial, com a atuação do consumo como meio indutor da deterioração dos saldos comerciais.

De modo comparativo, a análise a respeito da indução da demanda agregada na Argentina pelos recursos da ampliação do crédito encontra semelhança à lógica da política econômica brasileira no 1º Governo Dilma Rousseff, com a diferença notória da opção de amplos espectros de subsídios diretos aos preços finais de tarifas públicas na Argentina, como é o caso dos transportes, em relação à opção brasileira por ter dado preferência a uma rede de desonerações tributárias para que o setor privado tivesse assumido a dianteira da expansão do investimento agregado, no que não se materializou. A condução da demanda agregada pelo Estado argentino, com inúmeras reestatizações de empresas privatizadas durante o período menemista (década de 90), é uma característica do formato de keynesianismo empregado na Argentina, bastante diferente da lógica brasileira para o mesmo período, em que mesmo que a política econômica tivesse se autointitulada como “desenvolvimentista”, a base ideológica continuava sendo de deixar a cargo do setor privado a decisão última de efetivação dos investimentos em infraestrutura, no que se mostrou de ordem pífia.

Os limites do kirchnerismo, assim denominados por Adrián Piva, se encontravam na barreira imposta pela crescente inflação e pelo agravamento da crise cambial, pois se deflagra uma incapacidade de continuar utilizando a emissão monetária de forma perpétua para as necessidades de financiamento do Estado, ao mesmo tempo em que o balanço de pagamentos agoniza pela queda das exportações (decorrente da sobrevalorização cambial e de diversas sanções internacionais aos produtos argentinos, após a crise dos fundos abutres), e a pressão política emergia pelos setores da classe média como forma de rechaço ao que fora convencionado como “neopopulismo”. O custo da incorporação de massas da sociedade, anteriormente alijadas do processo político-econômico, se traduziu numa posterior volta da inflação pela perda do poder da moeda nacional, sendo sancionadora da ofensiva do capital sobre o trabalho, pela via da reestruturação de preços relativos pelos setores oligopolizados, avançando sobre os dissídios salariais alcançados nas “negociações paritárias”.

De fato, Adrián Piva qualifica o emprego do dito “keynesianismo” em modo conjunto à revitalização do “peronismo”, ou mesmo “neopopulismo”, como uma estratégia de canalização/transformação do antagonismo capital/trabalho, expresso pela luta de classes com fins a aumentos salariais, na diluição de todas estas forças no “princípio da demanda efetiva”. A mágica do processo está na geração de mais-valia relativa como um canal para a concessão de aumentos salariais concomitantes à expansão das margens de lucros. O problema todo se faz quando a produtividade deixa de ser o motor do processo e a inflação passa a ser visível como consequência posterior das negociações entre patrões e sindicatos, mesmo com a presença da mão atenuante do Estado.

Como é descrito por Adrián Piva, o modo de dominação política que pode se pode descrever o marco de distinção entre o peronismo e o kirchnerismo se faz entre o fato de que enquanto para o peronismo ocorrera uma incorporação política de uma classe trabalhadora, e, por conseguinte a sua unificação como classe, num sentido policlassista ou mesmo de aliança de classes, o kirchnerismo reconstituiu a estrutura do Estado no pós-2001, mas com a incorporação de demandas populares e práticas de mobilização inspiradas no imaginário peronista. Contudo, a desmobilização dos setores populares é reflexo direto do neoliberalismo da década de 90, sem levar em conta todo o período pós – 1976, entre os militares e a redemocratização a partir de 1983.

Um fato notório para a caracterização do kirchnerismo se deu pela exacerbação do conflito, inclusive, na disputa do Estado quanto à formação do excedente, como se deu após o período inicial de fartura com os superávits gêmeos (fiscal e em conta corrente do balanço de pagamentos). Neste sentido, como é explicitado, enquanto existiam os déficits gêmeos o Estado também incorreu numa articulação de um processo de substituição de importações e de reorientação de exportações. Todavia, após 2007 o estancamento do financiamento do Estado faz suscitar a necessidade de ampliação da captação do excedente do produto nacional pelo Estado, seja pelo aumento da carga tributária, seja por outras vias de expansão das receitas públicas, de todo modo também vinculadas à capacidade de criação de moeda, pelo Banco Central, com liberdade garantida para que hajam transferências de aportes para o Tesouro Nacional.

O autor, no terceiro eixo – El Modo de Dominación Política menciona os seguintes conflitos: enfrentamento com a burguesia agrária, estatização de fundos de aposentadoria privadas, disputas com grandes empresas em função de repartição de dividendos, estatização parcial da petrolífera YPF, fora inúmeras brigas judiciais após os conflitos do campo de 2008, aglutinaram espaços de dualidades que marcam a característica dos regimes populistas como uma política que desvia o foco das atenções da contradição capital/trabalho para uma oposição povo/oligarquia, povo/capital financeiro, povo/ grupos econômicos, povo/grupos estrangeiros, dentre outras dicotomias. No entanto, o rechaço da classe média e das frações da classe dominante quanto ao kirchnerismo está vinculado à não aceitação dos limites impostos pelo Estado, e pela reconstrução de seu tecido social, sobretudo, no que tange à recomposição de forças que emergira após a rebelião popular de 2001. A incapacidade de legitimação de qualquer forma de reconstrução do Estado e de qualquer meio de universalização de direitos e de incorporação de massas no sentido da redução da distribuição funcional da renda (capital versus trabalho) é a característica fundamental do raciocínio das elites latinoamericanas e da consequente cooptação ideológica das classes médias urbanas. Isto, independente da vinculação do grau de personalismo, identidade presente no peronismo, que se prolongou também nos governos de Nestor e de Cristina Fernández de Kirchner, mas que ensejaram um ressurgimento da capacidade reivindicatória sindical, por mais que uma parcela expressiva dos mesmos viesse a ser regida em padrões de plena conformidade à tutela do Estado.

O livro deixa a lição de que a ruptura dos blocos de poder do capital no pós-2001 e a reagrupação da figura do Estado com a ampliação de diversas políticas publicas de inclusão social veio a ser um resultado positivo, a despeito das deficiências clássicas do financiamento do Estado quanto ao manejo das políticas monetária e fiscal, que sempre acabam por eclodir na materialização da inflação como termômetro final do conflito distributivo de renda, enquanto não existirem instrumentos de finanças públicas capazes de impedir que a criação de demanda agregada pelo Estado venha a se propagar como transbordamentos de emissão monetária desregrados, constituindo canais de inflação desvinculados dos propósitos iniciais de fomento de renda donde foram inicialmente injetados, cuja multiplicação desproporcional servira de base para o rearranjo das margens de lucros dos setores oligopolizados da economia.


Resenhista

Carlos Alberto Lanzarini Casa – Doutor em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


Referências desta Resenha

PIVA, Adrián. Economía Y Política em la Argentina Kirchnerista. Buenos Aires: Batalla de Ideas, 2015. Resenha de: CASA, Carlos Alberto Lanzarini. Revista de Economia política e História Econômica. São Paulo, ano 10, n. 35, p. 246-251, janeiro, 2016. Acessar publicação original [DR]

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