Erotismo no cinema brasileiro: a pornochanchada em perspectiva histórica | Jairo Carvalho Nascimento

Vera Fischer2 Pornochanchada Cinema brasileiro
Acima, Vera Fischer em “Super fêmea boca do lixo (1972). Abaixo, Jairo Carvalho do Nascimento | Fotos: Veja – Reprodução / Uneb

Erotismo no cinema Cinema brasileiro Resultado parcial da tese de doutorado defendida no Programa de História Social da UFBA, em 2015, o livro Erotismo no cinema brasileiro: a pornochanchada em perspectiva histórica investiga as “origens”, a “consolidação” e “decadência” do gênero pornochanchada no contexto da história do cinema brasileiro. No decorrer do livro, Jairo Carvalho Nascimento indaga uma ampla variedade de evidências históricas, tais como revistas, matérias de jornais, entrevistas, pareceres de censura, dados estatísticos, filmes, vídeos, documentários, programas de televisão, releases e roteiros de filmes. Além disso, ampara-se em extensa bibliografia – sobretudo estrangeira nos dois primeiros capítulos. O resultado é uma sólida contribuição para compreender a trajetória histórica da pornochanchada, um importante, mas pouco valorizado momento da história do cinema brasileiro. Nascimento arquiteta seu livro em torno de quatro capítulos onde aborda: 1) o erotismo no cinema; 2) a formação e expansão da comédia erótica na Itália e sua repercussão em outros países; 3) as origens, características e consolidação da pornochanchada; e, por fim, 4) a decadência da pornochanchada e a transição para os filmes de sexo explícito, entre fins da década de 1970 e início da seguinte.

Jairo Nascimento Cinema brasileiroNo capítulo 1, ao fazer um panorama do erotismo no cinema, o autor observa que o “erotismo acompanhou a trajetória da história do cinema, desde as primeiras décadas” (p. 20). Ao dialogar com Foucault e Giddens, Nascimento observa que a sexualidade se apresenta como “um dos principais aspectos do comportamento humano que mudou no século XX, com novas formas de prazer” (p.13-14). E expõe o “debate teórico” sobre “erotismo versus pornografia” (p.15). Curiosa e provocativa é a definição elaborada em entrevista de 1982 por Ody Fraga, diretor e roteirista da Boca do Lixo: “[…] a pornografia é o sexo sem vergonha de si. Já o erotismo é complexado, exige véus” (p. 14). Nascimento observa que os “limites de definição entre o que é erótico e o que é pornográfico não são tão precisos” (p. 16). Por fim, observa que a noção de moral é construída historicamente: “as concepções morais mudam com o tempo.” (p. 19).

Outro aspecto relevante, apontado por Nascimento, diz respeito à produção dos primeiros filmes pornográficos na Europa (Espanha, França) e EUA, nas primeiras décadas do século XX. Na Europa, ocorrera o predomínio de “locações internas, com cenários de conventos e sacristias: um discurso anticlerical, em países católicos”. Nos Estados Unidos, numa “alegoria ao estado natural do homem” os filmes “eram realizados em locais abertos, como praias e bosques” até o momento em que “as autoridades policiais começavam a aumentar a perseguição”. Além disso, o autor chama atenção para o caráter clandestino dessa produção. Nos Estados Unidos, por exemplo, a produção dessas obras “contava com a colaboração da máfia no financiamento” (p. 21). Por fim, observa que as mudanças comportamentais do final dos anos 1960, aliadas à “influência crescente da cultura do liberalismo em relação ao direito de liberdade de expressão e à privacidade” contribuíram para o desenvolvimento da “verdadeira indústria da pornografia hardcore, de forma comercial e livre da censura” (p. 23).

Ao final desse primeiro capítulo, o autor observa que “ao longo desse percurso da história do sexo no cinema, surgiu um tipo de filme erótico que ganharia status de gênero, a comédia erótica” (p. 23). No início do capítulo seguinte, é feita uma breve exposição sobre o conceito de “gênero cinematográfico” (p. 25). A comédia erótica é apresentada como subgênero da comédia. É exposta a trajetória da comédia italiana, tendo como ponto de partida a década de 1950, com o “neorrealismo rosa”. A expressão é uma “referência aos filmes de humor produzidos por cineastas que tiveram alguma aproximação com o movimento [neorrealista] ou com temas abordados por ele”. Nascimento destaca a estratégia de “aproximação com o público, unindo a realidade política da Itália com toques de humor” em uma narrativa popular” (p. 27).

A partir do início da década de 1960, a commedia all’italiana passa a “designar a comédia italiana de modo geral”. Nascimento destaca que apesar dessas comédias terem criado estereótipos, tratavam também de “questões de ordem política, social e econômica da Itália, temas que não eram vistos pelos críticos que estavam com os ‘olhares encobertos’ pelos aspectos populares que esses filmes traziam” (p. 28). Essa falta de visão dos críticos em relação a abordagem de certos temas tratados por essas produções acabaria por relegar esses filmes a um lugar secundário na historiografia do cinema.

Ao aspecto cômico é incrementado o erotismo em algumas dessas produções, o que concorreu para o surgimento de um subgênero: a comédia erótica. Nascimento observa que “os marcos temporais da comédia erótica italiana não são fáceis de indicar” (p. 31). E ressalta que, “além de contar com a influência do contexto cultural da época, como o processo de liberação sexual e a onda de sexo que dominava o mundo ocidental no fim da década de 1960” a comédia erótica italiana “contou com profissionais (diretores, atrizes e atores) e temas da commedia all’italiana para formar-se, construir um outro gênero” (p.32-33).

Nascimento ressalta também a importância dessa cinematografia: “Essa produção em larga escala, de filmes baratos, mas comercialmente rentáveis e divertidos, inspirou produções similares em outros países. Os italianos criavam um modelo cômico de grande aceitação popular” (p. 38).

Digno de nota é o painel apresentado pelo autor acerca da produção de comédias eróticas em outros países (p.38-41). Nascimento observa a influência do cinema italiano na Argentina, México e também sobre as produções brasileiras da época. Uma das evidências disso é a versão brasileira do filme Adulterio all’italiana (1966) chamado Adultério à brasileira e produzido no ano de 1969. A repercussão desse subgênero reforça a consideração de que “No fim da década de 1960, a comédia erótica italiana já era um produto comercial e internacionalmente conhecido.” (p. 43).

O terceiro capítulo propõe apresentar brevemente “a história da pornochanchada”. Nele, o autor caracteriza esse subgênero como um “produto do cinema popular brasileiro […] que dominou o mercado nacional durante a década de 1970 até meados dos anos 1980” (p. 47).

Além da comédia erótica italiana, que aparece como influência da pornochanchada, o autor evidencia a relação desta última com a chanchada, gênero cinematográfico de sucesso no Brasil dos anos 1950. Nascimento considera que a “chanchada havia preparado o terreno, estabelecendo uma relação direta entre público e cinema brasileiro, situação seguida e bem aproveitada pela pornochanchada” (p. 51). Após elencar as características da pornochanchada, o autor observa que em tais filmes as mulheres eram submetidas “a situações degradantes e evidenciavam os dispositivos de dominação masculina na sociedade” (p. 58).

Outra característica destacada e explorada pelo autor diz respeito ao “processo eficiente de realização, do ponto de vista industrial”. A fórmula de sucesso: “filmes rápidos, realizados em poucas semanas e de baixo orçamento” era “seguida pelos produtores de São Paulo [Boca do Lixo] e do Rio de Janeiro [Beco da Fome]” (p.58). Nascimento, amparado em depoimento de Alfredo Sternheim, um dos diretores dessas produções, observa que essa eficiência na realização garantia “autossustentação” e acabava por revelar uma espécie de independência dessa produção. A pornochanchada realizava “um cinema independente, ou seja, financiado e distribuído por produtores independentes, sem o apoio estatal.” (p. 59).

A relação entre “pornochanchada, ditadura e censura” é apresentada em uma das sessões deste capítulo (p. 64-77). Nessa sessão, entretanto, chama atenção o uso alternado de diferentes expressões para designar o governo instaurado a partir do golpe de 1964. O autor utiliza: ditadura/regime “civil-militar” (p. 64, 65, 68, 71, 72, 73); ditadura/ regime “militar” (p. 65, 68, 72, 73, 74). O predomínio do termo civil-militar contrasta com a bibliografia citada, que faz uso da expressão “ditadura militar”. Ademais, o termo “civil” é um tanto impreciso (aqueles que não são militares seriam civis). A designação desse período implica uma consideração a respeito da “natureza” do regime instaurado em 1964, e tem alimentado controvérsias historiográficas recentes. Em artigo de 2012, o historiador Demian Melo – após fazer um balanço dessa historiografia “revisionista” e recuperar a contribuição pioneira de René Dreyfus – sugere o uso de uma expressão “que talvez capture com mais precisão a natureza daquele regime: uma ditadura empresarial-militar” (2012, p. 53).

Essa questão, entretanto, não compromete o conjunto da análise que Nascimento faz. A partir de um exame apurado das fontes, o autor confronta a “tese de que a pornochanchada era filha da ditadura civil-militar brasileira, uma criação da censura” (p.64). E chama atenção para o fato de que “a pornochanchada também foi mutilada e perseguida com o objetivo de preservar a família e a juventude da influência perigosa dos filmes eróticos” (p. 66). Evidencia, a partir da análise de alguns desses filmes, a abordagem de questões políticas e uma crítica velada ao regime militar e até mesmo ao sistema capitalista presente em algumas dessas produções. Outra questão encarada pelo autor é acerca da “origem do termo pornochanchada” (p. 78-87). Além de “levantar a historicidade do termo”, Nascimento percorre os seus usos pela imprensa brasileira da época e conclui que “o termo foi construído pelos críticos de cinema e jornalistas de fora para dentro do ’movimento’” (p. 87) muitas vezes de maneira depreciativa. Nesse sentido, torna-se fundamental a relação, feita pelo autor, dos “realizadores de comédias eróticas”, traçando o seu perfil e elencando suas obras (p. 87-106).

No capítulo final, Nascimento elenca os “fatores que provocaram o fim da pornochanchada” (p. 107-110); discute o processo de “transição dos filmes eróticos para o pornô explícito” (p. 115-122); e, por fim, apresenta os filmes de sexo explícito produzidos na Boca do Lixo (p. 122-138). Entre os fatores que colaboraram para o desgaste da pornochanchada, encontra-se a “redução […] das salas de cinema” (p.107) e a “concorrência da televisão” (p.108-109). A partir da análise de dados estatísticos e problematização da história da televisão no Brasil, Nascimento apresenta uma abordagem inovadora dos fatores que concorreram para a agonia da pornochanchada.

Sobre a adesão dos produtores das pornochanchadas aos filmes de sexo explícito, Nascimento observa que a liberação, em 1980, de O império dos sentidos (1976) de Nagisa Oshima, constitui um marco. Outro aspecto interessante, apontado pelo autor, é o fato de a censura dessa e de outras produções ter sido derrubada por liminares e mandados judiciais.

Por fim, Erotismo no cinema brasileiro: a pornochanchada em perspectiva histórica apresenta o traço marcante do historiador comprometido com uma pesquisa séria e bem embasada. Ao lançar novas luzes sobre um importante momento da cinematografia nacional, Jairo Carvalho do Nascimento nos brinda com uma lição de história, o que torna a leitura recomendada a não só os estudiosos da questão, mais ao público interessado na história brasileira recente.

Referências

MELO, Demian Bezerra de. Ditadura “civil-militar”?: controvérsias historiográficas sobre o processo político brasileiro no pós-1964 e os desafios do tempo presente. Espaço Plural, Ano XIII, n. 27, p. 39-53, 2012.


Resenhista

Joaquim Antônio de Novais Filho – Mestre em Memória: Linguagem e Sociedade (UESB/2012). Especialista em Teoria e História Literária (UESB/2010). Graduado em História (UESB/2004). Professor Auxiliar do Curso de História (UNEB/Campus VI).


Referências desta resenha

NASCIMENTO, Jairo Carvalho. Erotismo no cinema brasileiro: a pornochanchada em perspectiva histórica. Curitiba: CRV, 2018. Resenha de: NOVAIS FILHO, Joaquim Antônio de. Perspectivas e Diálogos – Revista de História Social e Práticas de Ensino. Caetité, v.1, n.1, p.273-278, jan./jun. 2018. Acessar publicação original [DR].

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