Estratégias de uma esquerda armada: militância, assaltos e finanças do PCBR na década de 1980 | Lucas Porto Marchesini Torres

Lançado pela EDUFBA, em 2017, o livro estratégias de uma esquerda armada: militância, assaltos e finanças do PCBR na década de 1980 é resultado de dissertação de mestrado defendida em 2013 no Programa de Pós-Graduação em História, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (UFBA), por Lucas Porto Marchesini Torres. Este é bacharel e licenciado em História por esta mesma instituição e atualmente cursa o doutorado em História Social na Unicamp, se empenhando-se no estudo sobre comunismo e movimentos sociais na Bahia entre os anos de 1945 e 1964.

O livro apresenta uma pesquisa histórica e inédita sobre a tentativa frustrada de assalto ao Banco do Brasil, no Bairro do Canela, na capital baiana, Salvador, por cinco militantes do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), em 1986 (TORRES, 2017. p. 21). Após serem presos os cinco homens, com medo de ser confundidos e tratados como bandidos comuns, assumiram que eram petistas e que desejavam com o assalto levantar fundos em ajuda à Nicarágua Sandista (p. 21).

O autor reconstrói o contexto do momento vivido e os pontos de vistas dos protagonistas desse evento, sendo o episódio do fracassado roubo do Banco do Brasil o objeto central que o autor se dedicou no livro, descortinando uma determinada visão folclorista que se convencionou na historiografia das esquerdas.

A pesquisa contou com o processo-crime em que os militantes responderam nas justiças militar e comum, acumulando os resultados de investigações realizadas na Bahia e em outros estados efetuados pelas polícias civil e federal. O processo acumula mais de três mil páginas com documentos pessoais e partidários, cartas, fotografias, dentre outros papeis encontrados pela polícia e, também, analisa outras fontes como entrevistas realizadas com alguns dos envolvidos no caso, permitindo, portanto, uma leitura mais ampla e menos teleológica da conjuntura (p. 34).

No primeiro capítulo do livro, O Partido Comunista Brasileiro Revolucionário: de “vanguarda” à tendência, versa sobre a trajetória do PCBR como um partido dissidente do PCB cuja distinção se dava na defesa do confronto armado contra a ditadura, com uma atuação política militarizada e urbana.

Segundo Lucas Torres, o partido ingressou na década de 1970 distante do povo e em ritmo apressado para implantação da luta armada. Nesse processo, ocorreram muitas prisões e assassinatos, e as ações que deveriam ser revolucionárias serviram mais para garantir a sobrevivência do partido e de seus militantes. Contudo, a existência do partido político que atuava na clandestinidade foi bastante curta, assim como de outras siglas que defenderam a luta armada entre a década de 1960 e 1970. Muitos dos militantes do PCBR também sofreram muito com a repressão militar e precisou, inclusive, se exilar em outros países. Em 1973, restavam pequenas equipes de militantes e até o fim da década esses militantes estariam fragmentados pela prisão, tortura, morte, exilo e desmoralização (p. 46-48).

O autor evidenciou que, na década de 1980, o PCBR reapareceu como tendência do Partido dos Trabalhadores, mas já apresentava mudanças das agremiações anteriores. Todavia, a concepção como vanguarda para o processo revolucionário brasileiro permanecia a mesma de antes. De volta à cena o PCBR ficou entre o PT e a Central Única dos Trabalhadores (CUT) à espera de seu desenvolvimento e das condições para construção do partido revolucionário. O Partido dos Trabalhadores era visto como um espaço legal para as suas atividades. Nesse processo de autocrítica, o PCBR dos anos de 1980 aproveitou os espaços políticos reabertos e se aproximou do povo. Segundo Torres, trocaram Lênin por Paulo Freire e alguns militantes passaram a atuar no processo de alfabetização e educação popular. Essas atividades legais só eram possíveis mediante a relação com o PT que servia como meio de garantir a inserção deles entre o movimento estudantil, sindicatos dentre outros (49-53).

Um ouro fator que o autor analisou nesse capítulo foi o processo de hierarquia desses militantes que participaram do assalto ao banco, sendo que nem todos os envolvidos possuíam ligação com o partido desde sua primeira formação. Apenas Preste de Paula e Renato Affonso faziam parte desde a primeira formação. Uma parte ingressou a partir de finais da década de 1970 no processo de reorganização do PCBR no momento da construção do PT. Novas e antigas gerações do BR se reorganizaram numa tendência revolucionária no interior do Partido dos Trabalhadores (p. 52).

Assim, o autor fez uma minuciosa análise da vida desses militantes do PCBR presos na Bahia: Marcos Wilson Reale Lemos, Jari José Evangelista, Telson José Crescêncio, Cícero Araujo, José Wellington e os outros militantes que também participaram do processo, mas não foram presos no primeiro momento: Prestes de Paula, Renato Affonso e Benjamim Ferreira. Essa análise foi realizada a partir da consulta dos documentos pessoais apreendidos pela polícia, dos arquivos dos depoimentos no período da prisão e de entrevistas realizadas entre 2012 e 2013, quando foram apresentados traços da militância e da vida privada que, na década de 1980, se dividia entre o PT, a CUT e o PCBR. Ainda de acordo com o autor o acervo de fontes selecionada para a pesquisa indica de forma desigual cada um dos personagens envolvidos na militância do PCBR baiano e nacional, sendo, portanto, apresentados no texto de forma diferenciada (p. 59-90).

O grupo supervalorizava o traço militarista de seus integrantes que defendiam a luta armada como único caminho para a derrubada da ditadura e se colocavam como um partido de vanguarda revolucionária. Nesse processo houve esforço para se organizar no movimento estudantil, em sindicatos e entre os trabalhadores rurais. A intenção do grupo era ser o braço armado do PT e se aproveitar de sua inserção social para difundir os princípios revolucionários.

As diversas fontes acumuladas no processo policial tais como peças de acusação e defesa, relatórios policiais, pareceres de diferentes instâncias envolvidas (Ministério Público estadual e federal, Auditória Militar, etc.) compõem o segundo capítulo do livro, “Investigações Policiais, acusações e estratégias de defesa: os presos julgados na justiça e fora dela”, onde se encontra o trabalho de investigação policial desencadeada pela prisão dos primeiros cinco militantes, os possíveis cúmplices e dos debates jurídicos que seu julgamento promoveu.

O capítulo apresenta diferentes estratégias de defesa dos presos em seu julgamento nas esferas jurídica e social. O processo tramitou nas polícias Civil e Federal e ambas emitiram pareceres divergentes, sendo que o relatório da polícia Civil apontou apenas como crime comum, sem se preocupar com a conotação política do caso. Após concluir o processo os presos foram levados para a carceragem da Polícia Federal enquanto o caso era investigado (p. 91-92). Uma das estratégias dos militantes foi garantir que não havia líder idealizador no grupo, sendo indiciados pelo ministério público como coautores da ação.

Já no relatório da Polícia Federal, o “PCBR foi considerado uma organização de esquerda radical, cuja linha de atuação sempre pautou pela violência para alcançar o poder” e o dinheiro roubado sustentaria a luta armada do partido. Assim, as ações de Salvador e Cachoeira2 foram consideradas “ações de caráter político e clandestinas, pois atentaram contra a Lei de Segurança Nacional” (p. 118-119).

O caso foi julgado por duas instâncias sendo uma contra o patrimônio e, em outra, contra a segurança nacional. O processo foi até as instâncias superiores (p. 120). A classificação do crime ficou difícil devido ao período de transição, pois os critérios de crimes políticos criados pelo regime ditatorial estavam sendo abandonados aos poucos. Para os militares, a ação dos militantes foi de caráter político (p. 125).

O terceiro e último capítulo, Ilegal, Imoral e Ilegítima: efeitos do assalto no PT e estratégias do PCBR, versou sobre os efeitos do assalto que se estenderam ao Partido dos Trabalhadores que foi fundado convergindo entre diversos segmentos sociais e organizações de esquerda. Algumas dessas tendências com atividades independentes de suas diretrizes, atuando como partidos dentro do partido. Nesse sentido, o autor evidência as reações do PT ao assalto, bem como as relações que o PCBR almejava construir o que evidência as disputas pelo protagonismo e pelo poder dentro do partido.

Segundo o autor, esses militantes que participaram do assalto ao banco discordavam das propostas políticas que vinham se consolidando dentro do Partido dos Trabalhadores. Sendo que o objetivo principal do PCBR era a revolução, mas isso não aconteceria da noite para o dia, sendo necessário criar as condições de curto e longo prazo, sobretudo nos movimentos sociais, na CUT e no PT. Nesse sentido, a intenção de roubar o banco serviria para reestruturar o partido, pois o dinheiro era fundamental para acumular forças para sustentar o projeto revolucionário. O dinheiro também serviria para ajudar outros grupos de esquerdas da América do Sul de acordo com alguns dos entrevistados (p. 142-143).

Lucas Torres também evidencia as divergências e convergências dos discursos entre os militantes que foram presos na Bahia, sobre a finalidade do dinheiro e o objetivo do partido. Mostrando as estratégias que os militantes desempenharam para financiar as atividades do partido, cuja estrutura organizativa exigia altos gastos e recorrer aos assaltos era uma estratégia de sobrevivência do grupo (p. 149).

Em algumas revistas era noticiado a associação do PCBR com o PT, mas responsabilizando o primeiro pelo assalto. No entanto, outras revistas continuaram associando o PT ao assalto. A direção nacional foi rigorosa na condenação pública respeitando internamente os trâmites do partido, mas precisou responder às vinculações de violência, sobretudo divulgados pela imprensa, condenando aquele tipo de comportamento entre seus militantes, protegendo-se, inclusive, expulsando-os do partido, pois poderia ter seu registro cassado pela Justiça Eleitoral. Essa foi uma tentativa de proteger o PT da associação com o assalto num contexto político bastante polarizado onde qualquer alusão a luta armada era repercutida socialmente. Contudo, não foi suficiente para apagar os efeitos políticos provocados pelo assalto em Salvador (p. 163).

A tentativa de assalto provocou vários debates dentro e fora do partido por intelectuais, políticos e pela sociedade civil de um modo geral, fazendo com que a direção nacional do partido tomasse medidas urgentes para mudar a regulamentação das tendências internas, eliminando a possibilidade de manutenção dentro do PT de grupos que se organizassem como partidos independentes.

O presente livro tem relevância acadêmica e social, pois evidencia através dos vestígios deixados por homens e mulheres um passado que muito ainda tem a nos falar sobre a história recente da atuação das esquerdas armadas na Bahia, notadamente em Salvador. Contudo, gostaria de apresentar algumas considerações. Lucas Torres nesse livro não faz um diálogo com a bibliografia da história do tempo presente e, também, não se instrumentaliza com a metodologia própria da História Oral que considero muito caro para quem faz uso de depoimentos orais como fonte para a pesquisa. Também não é possível ver em seu trabalho um debate teórico-metodológico sobre as possibilidades e as limitações de trabalhar com as fontes do tempo presente. No entanto, é evidente ao longo do livro que o autor realiza uma análise minuciosa das fontes disponíveis adentrando, inclusive, nas intimidades da vida privada dos personagens envolvidos no assalto o que permita uma leitura mais ampla e menos teleológica sobre o contexto em estudo.

Oportunamente, ressalto a importância dessa pesquisa descortinando uma determinada versão historiográfica que delimita como marco cronológico o período ditatorial de 1964 a 1985. Esse evento perpetrado pelos militantes, em 1986, a relação com o PT e demais partidos, os conflitos entre a Justiça Militar e Comum, entre as polícias civil e federal, usando métodos de investigação marcados por excessos autoritários na tentativa de enquadrar os militantes na Lei de Segurança Nacional em pleno processo de transição, tudo isso evidência os conflitos em torno do conceito de democracia que estava em construção naquele contexto.

Nota

2 Durante o processo de investigação a polícia Federal realizou diversas varreduras na casa dos militantes, sobretudo na casa de Preste de Paula e Jari, com a intenção de encontrar provas que pudesse ligar aos demais assaltos ocorridos na cidade de Salvador e demais cidades pelo Estado como é o caso do assalto ocorrido ao banco do Brasil na cidade de Cachoeira (localizada no Recôncavo da Bahia), em abril de 1985. Ibidem, p. 27-118.


Resenhista

Elias dos Santos Conceição – Mestrando em História Social pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. E-mail: [email protected] Bolsista CAPES.


Referências desta Resenha

TORRES, Lucas Porto Marchesini. Estratégias de uma esquerda armada: militância, assaltos e finanças do PCBR na década de 1980. Salvador: EDUFBA. 2017. Resenha de: CONCEIÇÃO, Elias dos Santos. Estratégia e militância de uma esquerda armada. Veredas da História, v. 13, n. 1, p. 177-182, jul. 2020. Acessar publicação original [DR]

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.