Estudos em fonética e fonologia: quando múltiplos olhares se entrecruzam | LaborHistórico | 2021

Ao longo do tempo, os sons de uma língua podem mudar de diferentes formas. Por ser o tipo de mudança linguística mais facilmente perceptível e fartamente observado, a mudança sonora tem sido objeto de estudo mesmo antes do advento da Linguística moderna e do que, atualmente, se entende por Fonologia.

Desde o século XIX, o debate sobre questões sonoras nas línguas – desde a reconstrução das línguas “originais”, a partir do emprego do método histórico-comparativo, até a querela sobre o locus da mudança sonora (o som ou a palavra) – ganha espaço na literatura. Tanto na abordagem estruturalista quanto nos quadros teóricos pós-saussereanos, a proposta de métodos para a descrição de aspectos sonoros das línguas ganha relevo. Assim, a pluralidade de enfoques é uma marca registrada dos estudos em Fonética e Fonologia.

O nosso objetivo, ao propormos o dossiê intitulado Estudos em Fonética e Fonologia: quando múltiplos olhares se entrecruzam, foi apresentar à comunidade científica um volume que congregasse reflexões sobre aspectos fonético-fonológicos das línguas, com destaque (mas não exclusividade) para o Português. A ideia, sem vinculação a modelos teóricos e metodológicos pré-determinados, era apresentar um conjunto que demonstrasse a vitalidade das investigações sobre aspectos da Fonética e da Fonologia e de seus potenciais diálogos, nas mais diversas perspectivas, interfaces e enfoques. Cremos que os artigos reunidos aqui refletem nossa proposta inicial, uma vez que – respeitada a pluralidade de olhares – o dossiê traz um painel de investigações que, efetivamente, contribuem para o (re)conhecimento da heterogeneidade e da mudança linguísticas.

No artigo que inicia o dossiê, Passado e presente da alternância entre a lateral e o tepe no onset complexo no português: considerações sobre representação, mudança linguística e avaliação social (https://doi.org/10.24206/lh.v7i2.41221), Christina Abreu Gomes enfoca a variação entre consoantes líquidas em onset complexo, fenômeno também reconhecido como rotacismo. A autora compara os resultados obtidos em uma análise de dados orais do Português Brasileiro Contemporâneo com dados extraídos de textos do Português Antigo, com o intuito de refletir sobre questões relacionadas à representação da variação, à mudança linguística e à avaliação social da variante tepe.

Na sequência, em Ditongos nasais átonos finais: ontem e hoje (https://doi.org/10.24206/lh.v7i2.40708), Raquel Gomes se debruça sobre os ditongos nasais átonos finais. Em uma abordagem que congrega as perspectivas sincrônica e diacrônica, a autora identifica uma instabilidade na realização fonética dos ditongos nasais, processo que se prolonga desde o período de formação do Português. A autora constata ainda que a avaliação negativa das formas desnasalizadas também persiste ao longo do tempo.

Em Resolvendo choques acentuais na música das Cantigas de Santa Maria (https://doi.org/10.24206/lh.v7i2.39408), Gladis Massini-Cagliari investiga como se “resolvem” os choques acentuais, em termos de relação entre proeminências, a partir da análise das dez primeiras Cantigas de Santa Maria, atribuídas a Afonso X (1221-1284). Seu objetivo é buscar indícios nas músicas que revelem a marcação da proeminência. A autora demonstra que os aparentes choques acentuais presentes nas letras das cantigas eram resolvidos na performance musical.

No artigo Vocalização da lateral em coda silábica em duas variedades do Português (https://doi.org/10.24206/lh.v7i2.39998), Silvia Figueiredo Brandão focaliza, em um estudo descritivo preliminar, a lateral em coda silábica (interna e externa) no Português de São Tomé e no Português de Moçambique. Com base nos princípios da Teoria da Variação e Mudança, a autora busca determinar os condicionamentos que concorrem para a vocalização do segmento lateral posvocálico. Seus resultados revelam que, nas duas variedades africanas em foco, a regra é ainda pouco produtiva (predominam as variantes velarizada e alveolar) e que variáveis tanto sociais quanto estruturais se mostram salientes para a implementação de [w] a depender da posição da sílaba.

Em Sufixos -ario, -eria, -eiro: um trio de morfemas revisitados (https://doi.org/10.24206/lh.v7i2.40645), Leda Bisol e Valéria Monaretto focalizam as palavras formadas com os morfemas -ario, -eria, -eiro, em uma investigação que congrega a perspectiva diacrônica a uma reflexão sobre o funcionamento dessas estruturas na sincronia. Segundo as autoras, os sufixos -ario, -eiro, -eria, em razão de laços de parentesco quanto à origem, estão registrados no léxico, funcionando os sufixos -ario -eiro como sufixos independentes quanto à produção de palavras, e eria/ario como substitutos. A derivação de nível lexical realiza-se plenamente e pode ocupar qualquer posição na palavra, dentro da área sufixal, figurando entre os sufixos mais produtivos do português. No pós-léxico, os sufixos ajustam-se à derivação com supletivo. Relativamente à significação, as autoras sugerem que o significado se estende a um paradigma inteiro, incluindo casos de analogia, ao passo que o sentido nasceria da relação entre palavra-base e sufixo da qual provém a proficiência dos sufixos -airo e -eiro.

O artigo de Matheus Freitas, Contribuições da ortografia para a análise de fenômenos fonológicos: o caso de sequências #(i)sC no português brasileiro (https://doi.org/10.24206/lh.v7i2.40702), enfoca as sequências formadas por sibilante [s] + consoante – que podem ou não ser precedidas por uma vogal [i] em início de palavra no português brasileiro (sequências #(i)sC, como, por exemplo, em escola: [iskɔla] ~ [skɔla]; spray: [ispɾej] ~ [sprej]). As palavras analisadas compreendem padrões ortográficos distintos: ⟨#esC⟩ e ⟨#sC⟩. O autor parte da hipótese, testada a partir de uma investigação experimental, de que cada padrão ortográfico se relaciona a diferentes taxas de ocorrência da vogal e a diferenças no detalhe fonético em sequências #(i)sC. Seus resultados demonstram que a ocorrência da vogal inicial é favorecida em palavras com o padrão ⟨#esC⟩ em comparação a palavras com o padrão ⟨#sC⟩. Além dessa questão, o estudo se debruça sobre a relação entre duração da vogal e padrão ortográfico, e de que forma os padrões ortográficos se relacionam às possíveis realizações fonéticas.

Em A evolução dos estudos em Fonética e Fonologia e o ensino de pronúncia em língua inglesa (https://doi.org/10.24206/lh.v7i2.39955), Maria Lúcia de Castro Gomes busca apresentar, a partir dos estudos em Fonética e Fonologia ao longo da história, uma discussão sobre a influência desses estudos no ensino de pronúncia da língua inglesa. Com o intuito de verificar em que medida a evolução dos estudos em Fonética e Fonologia do Inglês e seu estatuto como língua franca têm contribuído para mudanças no ensino, a autora analisa manuais didáticos voltados para o ensino de pronúncia para verificar em que medida o diálogo e as divergências se instalam.

Polliana Millan e Denise Klunge, em A compreensibilidade de palavras heterotônicas do espanhol faladas por aprendizes brasileiros (https://doi.org/10.24206/lh.v7i2.40681), investigam a compreensibilidade de palavras heterotônicas do espanhol falada por aprendizes brasileiros, em uma abordagem exploratória. A produção de heterotônicos de dois estudantes da graduação em LetrasEspanhol de uma universidade federal no Paraná foi avaliada em sua compreensibilidade em um teste de discriminação por 82 ouvintes, falantes de espanhol como língua materna. Os resultados mostraram que a compreensibilidade ocorreu em quase todos os casos (92%) quando a palavra foi dita com a tônica adequada em espanhol. As autoras verificam também que os falantes de espanhol com conhecimentos de português preferiram como mais compreensíveis as palavras com a tônica adequada em espanhol, apesar de provavelmente saberem da existência da mudança da sílaba tônica no português. Os resultados indicam que a nacionalidade dos participantes interferiu nos resultados de compreensibilidade.

A breve descrição dos artigos reunidos neste dossiê da revista LaborHistórico mostra que este volume se destaca por não se vincular a um modelo teórico específico, por não se delimitar a metodologias particulares e por não se restringir à análise de um fenômeno em especial. Encaramos essas “negativas” como um aspecto positivo desta publicação, por entendermos que essa pluralidade de vozes reflete a multiplicidade de olhares que permeiam os estudos fonético-fonológicos.

E nesse espírito de exaltação à Fonética, à Fonologia e à heterogeneidade que essas áreas permitem vislumbrar, o dossiê também conta com a contribuição de Thaïs Cristófaro Silva. Na seção Popularização do Conhecimento, a autora faz uma síntese de sua brilhante trajetória nos estudos linguísticos – com ênfase na sua formação em Fonética e Fonologia e em sua contribuição para o desenvolvimento de investigações sobre aspectos dessas áreas em português. O texto A Educação é transformadora! (https://doi.org/10.24206/lh.v7i2.42989) – apesar de focar a trajetória de um dos maiores nomes nos estudos da linguagem no Brasil e no mundo – reflete um pouco a forma como todos nós encaramos o conhecimento e suas potencialidades. Fica o convite para que os leitores se aventurem pelas searas dos estudos fonético-fonológicos e se deixem também transformar.


Organizadores

Danielle Kelly Gomes

Marcelo Alexandre Silva Lopes de Melo


Referências desta apresentação

GOMES, Danielle Kelly; MELO, Marcelo Alexandre Silva Lopes de. Apresentação. LaborHistórico. Rio de Janeiro, v.7, n.2, p. 10-13, maio/ago. 2021. Acessar publicação original [DR]

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