Família/Acervo/2017

O dossiê da revista Acervo ora em tela atualiza a discussão sobre família e apresenta algumas tendências contemporâneas de seu estudo nas ciências humanas, com destaque para os campos da história, da antropologia e dos direitos humanos. Tais reflexões são resultado tanto dos desafios enfrentados pelas famílias e seus atores, no que compete à conquista e manutenção de direitos na atualidade, a exemplo do Estatuto da Família que tramita no Congresso Nacional (PL 6583/2013) e dos altos índices de violência contra a mulher no Brasil, quanto do fruto de uma longa tradição intelectual de reflexão sobre a família brasileira. Nos artigos que se seguem, o leitor terá a oportunidade de compreender as noções e organizações familiares que coexistiram em diferentes tempos e espaços, sua importância nas disputas políticas e sociais, bem como as fontes e metodologias de pesquisa utilizadas para apreender essa miríade de vivências e experiências.

Os estudos sobre a família estiveram na base do pensamento social brasileiro, haja vista os escritos de Oliveira Viana (Populações meridionais do Brasil,1920); Gilberto Freyre (Casagrande e senzala, 1933); Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil, 1936); Caio Prado Jr. (Formação do Brasil contemporâneo, 1942); Alceu Amoroso Lima (Voz de Minas, 1945) e Antonio Candido (The brazilian family, 1951), que apresentaram como questões principais a formação da identidade nacional e a relação família-Estado. Elegendo como fio condutor os debates no campo da história, podemos dizer que a perspectiva dos “fundadores” foi colocada em cheque nos anos de 1970, quando a família passou a delimitar um campo específico da historiografia brasileira. Nesse momento, as principais influências vieram da demografia histórica francesa e inglesa, da análise da economia doméstica e do diálogo com a antropologia, tendo destaque os trabalhos pioneiros de Iraci del Nero da Costa, Mariza Corrêa e Eni de Mesquita Samara e, posteriormente, as teses de Ana Silvia Volpi Scott, Carlos de Almeida Prado Bacellar e Sheila de Castro Faria. Nas duas décadas seguintes, surgem outras abordagens, não necessariamente concorrentes.

As reflexões sobre as relações entre família, política e economia, que apresentaram estudos variados sobre dotação, economia doméstica, parentesco e clientelismo, com renovado manancial de fontes, tais como inventários post-mortem, processos de banho, testamentos, contratos de casamento e dotes, conforme verificado nos trabalhos das historiadoras Alida Metcalf, Elizabeth A. Kuznesof, Linda Lewin, Kátia de Queirós Mattoso e Muriel Nazzari. A segunda linha era caracterizada por pesquisas sobre família escrava, surgidas num contexto historiográfico mais amplo de inserção do escravo como agente histórico. Questionavam-se trabalhos clássicos como o de Caio Prado Jr. e de autores da Escola Sociológica Paulista, que desconsideravam a existência de laços familiares no cativeiro, com destaque para os debates promovidos por Robert Slenes, Hebe Mattos, João Fragoso, Manolo Florentino e José Roberto Góes. Já os estudos sobre famílias e estruturas mentais, inspirados nos escritos de Philippe Ariès e da história das mentalidades, a exemplo das pesquisas de Ronaldo Vainfas, Angela Mendes de Almeida e Luciano Figueiredo, trouxeram à tona temas como sexualidade, casamento, sodomia, virgindade, religiosidade e concubinato.

Como resultado desse imenso debate aqui resumido, as pesquisas publicadas nos anos 2000 contemplaram a diversificação de regiões e grupos sociais, com forte inclusão dos grupamentos subalternos sob a perspectiva da história “vista de baixo”, de E. P. Thompson; o alargamento do conceito de família para além do modelo heterossexual e do parentesco biológico; a ampliação das fontes históricas e das metodologias de análise, com influência de Giovanni Levi e outros micro-historiadores; e a incorporação de conceitos como rede de sociabilidade e estratégia familiar para trazer à luz o comportamento dos atores na família, sem desmerecer a análise do social. Tais esforços podem ser reconhecidos nas teses de Sueann Caulfield, Silvia Brügger, Antônio Otaviano Vieira Junior, Mônica Ribeiro Oliveira, Cacilda Machado, Roberto Guedes, Mariana Muaze, muitos dos quais participantes deste volume da Acervo.

O dossiê é aberto com o artigo Filhos de brancos, bastardos e mamelucos em famílias (São Paulo, XVI-XVII): um ensaio, de Roberto Guedes e Silvana Godoy, que aponta o papel ativo de lideranças indígenas na formação das famílias paulistas, alicerçado por alianças de casamento que envolveram práticas poligâmicas, concubinatos e adultérios, resultando em famílias mestiças na base da colonização. A seguir, Mariana Muaze e Ricardo Salles discutem a Família escrava em impérios agrários: o caso da fazenda Guaribu, trazendo a proposição de estudo da família cativa tanto como resistência escrava, quanto como capital político senhorial, e apresentando os conceitos de “comunidade de plantation” e “vizinhança” para uma reflexão mais aprofundada sobre o tema.

Nilma Teixeira Accioli explora a história dos africanos centrais e seus descendentes no Rio de Janeiro do século XIX, por meio do estudo das trajetórias de famílias negras em sociedades e irmandades religiosas. O resultado é uma pesquisa que valoriza as identidades culturais negras e africanas como forma de resistência e sobrevivência no sistema escravocrata. Famílias negras também é o assunto examinado por Carlos de Oliveira Malaquias no texto Família negra em liberdade: domicílios dos libertos e seus descendentes em Minas Gerais no final do século XVIII. Por intermédio da demografia histórica, o autor estuda a organização domiciliar dos libertos e seus descendentes na freguesia de São José do Rio das Mortes, nos setecentos e conclui que o modelo católico de família e as formas alternativas de convívio eram valorizados entre os escravos alforriados como parte integrante da experiência da liberdade.

O tema migração e família é tratado em dois artigos do dossiê. Em Dona Maria Gil e sua família: possibilidades e imigração entre Açores e o Grão-Pará no século XVIII, Antonio Otaviano Vieira Junior estuda o processo migratório no contexto do império português setentista, através da trajetória de uma personagem e evidencia suas dificuldades de se estabelecer na nova terra. No segundo artigo, intitulado Negócios em família: migração de comerciantes portugueses e suas redes (Porto Alegre/ Rio Grande de São Pedro, XVIII-XIX), Ana Silvia Volpi Scott, Gabriel Santos Berutte e Dario Scott oferecem um contraponto a Vieira Junior, ao analisarem trajetórias bem-sucedidas de comerciantes portugueses. Cruzando assentos paroquiais com outras fontes nominativas, os autores demonstram a importância dos casamentos e das alianças com famílias locais para a conquista e consolidação de redes mercantis.

Maria Fernanda Vieira Martins explora as interseções entre o estudo das elites e a história da família em Certezas possíveis em um horizonte de incertezas: família, estratégias e redes de poder em Minas Gerais (século XVIII-XIX). A autora traz a lume o caso dos Monteiro de Barros para situar o papel das antigas e extensas famílias de elites no desenvolvimento das redes de influência e estruturas de poder tanto no nível local, quanto na sua relação com o império luso-brasileiro. Também sobre a história das elites é o artigo de Ana Paula Souza Machado, que aborda as estratégias de preservação do patrimônio, utilizadas por duas famílias da freguesia rural de Santo Antônio de Jacutinga, no século XVIII.

Ana Maria Mauad e Itan Cruz nos mostram as possibilidades da Fotografia de família e os itinerários da intimidade na história. Analisando duas coleções fotográficas distintas, os autores proporcionam uma reflexão sobre como as fotografias atuaram na construção da autoimagem, identidades e perpetuação da memória pelas famílias.

A família na contemporaneidade marca o debate final deste dossiê. O reconhecimento legal do casamento entre pessoas do mesmo sexo no Brasil é tema do artigo de Sueann Caufield, no qual são analisadas decisões do STF, textos da imprensa, entrevistas com ativistas políticos, novelas, trazendo uma rica pesquisa na fronteira entre história e direitos humanos. As relações entre Estado e família são abordadas nos dois últimos artigos. Enquanto Antônio Carlos de Oliveira discute como as políticas públicas de assistência deveriam tratar as famílias para criar condições para a sua efetiva proteção social, San Romanelli Assumpção aborda gênero e discriminação social, apresentando os altos índices de violência contra a mulher e advogando políticas públicas destinadas à família que garantam a igualdade de gênero e o maior respeito aos direitos humanos.

Para compor este mosaico de experiências familiares, o leitor encontrará ainda uma bela entrevista com o historiador italiano Giovanni Levi, realizada por Mônica Oliveira, e o artigo Processos de tutela e suas possibilidades de estudo sobre a família ex-escrava, escrito por Patrícia Urruzola e Claudia Santos, na seção Documento. Por fim, desejamos a todos uma boa leitura.


Organizadores

Mariana Muaze – Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Pós- doutora pela Universidade de Michigan. É “Jovem Cientista do Nosso Estado”.

Inez Stampa


Referências desta apresentação

MUAZE, Mariana; STAMPA, Inez. Apresentação. Acervo. Rio de Janeiro, v. 30, n. 1, p. 7-9, jan./jun. 2017. Acessar publicação original [DR/JF]

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