Feminismo camponês e popular: reflexões a partir de experiências no Movimento de Mulheres Camponesas | Adriana Mezadri, Justina Cima, Noeli Taborda, Sirlei Gaspareto e Zenaide Collet

Justina Cima
Justina Cima | Foto: Elaine Schmitt

Essa é uma obra coletiva, contendo 13 artigos, escrita por 32 militantes do Movimento de Mulheres Camponesa (MMC). Tem por objetivo trazer elementos e concepções que foram construídos a partir da organização, formação e lutas do Movimento no Brasil. Suas vozes diferem da história oficial. Elas ousaram lutar contra o sistema capitalista, patriarcal e racista. Consideram-se um Movimento autônomo, feminista, camponês e socialista.

O livro conta a história do MMC que tem mais de 37 anos e tira as mulheres camponesas da invisibilidade; contempla as mulheres indígenas; se espelha nas ligas camponesas; confronta o racismo; enaltece as sementes crioulas e a segurança e soberania alimentares; exalta a alimentação saudável; critica a divisão sexual de trabalhos, o patriarcado e a violência contra as mulheres; torna visível a renda produzida pelas mulheres; fala da diversidade sexual; e finaliza com a importância da Mística para o Movimento. Sendo um livro didático, contém repetições.

“Em Movimentos de mulheres camponesas: veredas de muitas histórias”, Carmen Lorenzoni, Iridiani Seibert e Zenaide Collet explicitam como as agricultoras construíram uma identidade camponesa, popular e feminista. Desde o início, 1983, o Movimento fez uma releitura latino-americana da Bíblia à luz da Teologia da Libertação e seguiu o método educacional de Paulo Freire, através de encontros. Em 1995, foi criada a Articulação Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais – ANMTR. Em 2004, une-se à Via Campesina e se torna Movimento de Mulheres Camponesas – MMC. Às primeiras reivindicações trabalhistas vão incorporando questões de gênero até formarem o Feminismo Camponês e Popular.

Ana Munarini, Catiane Cinelli e Rosangela Cordeiro, em “A luta das mulheres camponesas: da invisibilidade para sujeitos de direito”, mostram que foi importante para reconhecer o trabalho feminino considerarem as mulheres como “produtoras rurais” na Constituição de 1988, concedendo-lhes acesso aos direitos previdenciários. Outra conquista foi o Sistema Único de Saúde. A pressão dos movimentos populares expandiu os direitos à educação. Surgiu o Programa Nacional de Educação da Reforma Agrária e o Programa de Apoio às Licenciaturas em Educação do Campo.

Edcleide Silva, Gabriela Santos, Glaciene Pereira e Margarida dos Santos, em “Mulheres indígenas: em defesa do território e da identidade”, dizem que pensar nas indígenas é pensar em resistência de mais de quinhentos anos de um modo de viver coletivo, no qual tem grande importância a natureza e o território, sempre cobiçados pelos capitalistas. Em uma Primeira Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, realizado em 2019, o lema foi “território: nosso corpo, nosso espírito”. O MMC vem fazendo um trabalho de formação junto às indígenas e aprendendo com elas. Dos temas trabalhados em conjunto, o mais gritante é a violência contra as mulheres.

Edcleide Silva e Débora Santos, em “As ligas camponesas e a luta que marca os movimentos organizados no campo”, relembram as Ligas Camponesas, porque são histórias e inspiram lutas atuais. Começaram na década de 1940, mas tiveram seu auge quando, em 1954, os foreiros do engenho Galileia, Pernambuco, se revoltam com o preço do foro. O advogado Francisco Julião de Paula passa a defender os agricultores. Em 1959 o engenho é desapropriado, o que reforça a luta das Ligas. Os trabalhadores sem terra começaram a se unir, mas a ditadura instalada em 1964 impôs dura repressão. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra se diz herdeiro das Ligas.

Itamara Almeida e Cleidineide Jesus, em “Feminismo camponês e popular: uma abordagem antirracista”, dizem que a sociedade é racista. Prevalece a ideia de superioridade do branco ante negros e indígenas, justificando a superexploração de seu trabalho. O racismo é naturalizado. Segundo dados do Instituto de Pesquisa Aplicada – IPEA, em 2009, 12% das mulheres brancas ocupadas eram empregadas domésticas contra 21,8% das negras. Segundo as autoras, o homicídio de mulheres não negras aumentou 4,5% entre 2007 e 2017, e o das negras, 29,5%. O feminismo camponês e popular tem raízes afro-brasileira e indígena.

Clara Lima e Glaciene Pereira, em “Agricultura camponesa e agronegócio: mulheres em resistência”, contrapõem essas duas formas de agricultura. Enquanto a primeira defende a agroecologia como ciência e modo de vida, produz alimentos saudáveis, preserva o solo e zela por todos os seres vivos, o agronegócio é uma atividade predatória, expulsa os camponeses e produz commodities, transformando água e terra em mercadoria e considera matas e animais silvestres como empecilhos. É excludente e produtivista, faz uso intensivo de agrotóxicos e sementes híbridas e transgênicas. A defesa da agroecologia é feita principalmente pelas mulheres.

Edcleide Silva e Ana Rauber, em “Sementes de resistência: caminhos para a produção de alimentos saudáveis”, dizem que o MMC defende, junto com a Via Campesina, a Campanha Nacional Sementes de Resistência, com o lema Camponesas semeando esperança, tecendo transformação. No Fórum Social Mundial de 2003 foi lançada a Campanha mundial Sementes patrimônio da humanidade a serviço dos povos, para o perigo de transgênicos, agrotóxicos e monocultivos de pinus e eucalipto. Contra os monocultivos, as mulheres camponesas invadiram o Laboratório da Aracruz Celulose em 2006. Seus quintais produtivos são verdadeiros laboratórios experimentais informais.

Maria Cavalcanti, Maria Lucivanda da Silva e Noemi Krefta escreveram “Alimentação saudável: somos o que comemos”. Uma das autoras, Maria Cavalcanti, lembra da infância o “alimento de pobre”, catado no mato (CAVALCANTI; SILVA; KREFTA, 2020, p. 111). O monocultivo da cana chegava à porta dos moradores, não se podia plantar. Quando as usinas fecharam, tiveram que migrar. Só a ousadia do povo lhes permitiu criar movimentos como o MMC, que, em 2001, iniciou campanha nacional de sementes crioulas. Em 2007, lançou a campanha nacional de produção de alimentos saudáveis, que traz de volta o alimento de pobre. Lançados pelo governo, os Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE (2009) e o Programa de Aquisição de Alimentos (2003) – PAA, que compram alimentos orgânicos, incentivou as mulheres.

Isaura Conte, Michela Calaça e Noeli Taborda, em “Divisão sexual do Trabalho”, falam da hierarquização de trabalho sexual. Considera-se que os homens fazem o trabalho produtivo, que gera renda, e as mulheres, o trabalho doméstico como algo natural. Mesmo quando geram renda, são desvalorizados. Dizer que o homem faz o trabalho pesado e a mulher o leve não se sustenta. O trabalho é leve porque a mulher o faz e não o contrário. O que é leve em uma região é pesado em outra, dependendo de quem o faz. Pesquisa realizada em 2006 por curso de extensão do MMC, mostram que o trabalho feminino, comparado aos preços mercado, geram mais de cinco salários-mínimos por pessoa ao ano, frente aos 0,5% do Salário Mínimo gasto em dinheiro. Rompe-se a dicotomia produtivo/reprodutivo.

Elisiane Jahn, Geneci Santos e Sandra Rodrigues, em “Economia feminista e as mulheres camponesas”, mostram o quanto vale o trabalho mal ou não remunerado das mulheres. Pesquisa feita por Sandra Rodrigues em Foz do Iguaçu/PR examina 3 casos. No caso de Hortência, ela gastaria no mercado R$ 3.357,61, mas só gastou R$ 397,00. Catlleya gastaria no mercado R$ 2851,90, mas gostou R$ 886,90. Flor-de-Liz gastaria R$ 1.174,62, mas gastou R$ 360,50. Para as diferenças encontradas, as autoras denominam “economia feminista camponesa” (JAHN; SANTOS; RODRIGUES, 2020, p. 142).

Carmen Lorenzoni, Sandra Rodrigues e Sirlei Santos, em “Enfrentamento à violência contra a mulher”, dizem que esta é um dos pilares do patriarcado. Há vários tipos de violência: física, sexual, psicológica e patrimonial. Mencionam ainda a violência do agronegócio que polui águas, ar e alimentos. O Brasil, segundo a ONU, em 2016 ocupava a 5ª posição no ranking mundial de feminicídios. O MMC tem formulado cartilhas para alertar as camponesas sobre seus direitos. O Estado implantou a Lei Maria da Penha, que pune com mais rigor as agressões criou a Central de atendimento à mulher, “Ligue 180”, para denúncias.

Angélica Cunha e Crísea Cristo, em “Diversidade sexual e heterossexualidade: contribuições para o feminismo camponês e popular”, afirmam que a sexualidade humana é uma construção histórico-social e não biológica, reforçada pela sociedade patriarcal e capitalista. As outras formas de sexualidade são consideradas “desviantes” (CUNHA; CRISTO, 2020, p. 162), por isso vítimas de preconceito e LGBTfobia. A existência de lésbicas é considerada um ataque ao direito masculino de acesso às mulheres. O feminismo lésbico traz importante contribuição na medida em que nega que as mulheres são parte da propriedade emocional e sexual dos homens.

Adriana Mezadri, Justina Cima, Sirlei Gaspareto e Vanderléia Pulga, em “A mística feminina camponesa e popular no MMC”, dizem que a palavra grega mística significa a busca para entender o que está escondido nas coisas. No MMC, ela é uma mística revolucionária que aponta para o sentido da existência humana, política, social, cultural e ambiental imbricada na vida das mulheres enquanto produtoras de alimento em harmonia com a natureza. Alimenta-se de muitas fontes: política, religião, estética/ética da vida, pedagogia libertadora, economia camponesa e feminista, inspirando-se na Igreja fundamentada na Teologia da Libertação. A mística celebra e cultiva um projeto político popular, através de símbolos, cultura, memória e sonhos.

Este livro é um marco na história recente do feminismo brasileiro, embora não conste de nenhuma coletânea atual sobre o tema. Daí a importância da resenha.

Referências

CAVALCANTI, Maria; SILVA, Maria Lucivanda da; KREFTA, Noemi. “Alimentação saudável: somos o que comemos”. In: MEZADRI, Adriana; CIMA, Justina; TABORDA, Noeli; GASPARETO, Sirlei; COLLET, Zenaide (orgs). Feminismo camponês e popular: reflexões a partir de experiências no Movimento de Mulheres Camponesas São Paulo: Outras Expressões, 2020. p. 111-122.

CUNHA, Angélica; CRISTO, Crísea. “Diversidade sexual e heterossexualidade: contribuições para o feminismo camponês e popular”. In: MEZADRI, Adriana; CIMA, Justina; TABORDA, Noeli; GASPARETO, Sirlei; COLLET, Zenaide (orgs). Feminismo camponês e popular: reflexões a partir de experiências no Movimento de Mulheres Camponesas São Paulo: Outras Expressões, 2020. p. 159-169.

JAHN, Elisiane; SANTOS, Geneci; RODRIGUES, Sandra. “Economia feminista e as mulheres camponesas”. In: MEZADRI, Adriana; CIMA, Justina; TABORDA, Noeli; GASPARETO, Sirlei; COLLET, Zenaide (orgs). Feminismo camponês e popular: reflexões a partir de experiências no Movimento de Mulheres Camponesas São Paulo: Outras Expressões, 2020. p. 133-144.

MEZADRI, Adriana; CIMA, Justina; TABORDA, Noeli; GASPARETO, Sirlei; COLLET, Zenaide (orgs). Feminismo camponês e popular: reflexões a partir de experiências no Movimento de Mulheres Camponesas São Paulo: Outras Expressões, 2020.


Resenhista

Maria Ignez Silveira Paulilo -Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1987) e Pós-doutora pela The London School Of Economics And Political Science (1997). Atualmente é professora titular da Universidade Federal de Santa Catarina. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Sociologia Rural, atuando principalmente nos seguintes temas: agricultura familiar, gênero, campesinato, feminismo e movimentos sociais rurais. E-mail; [email protected]


Referências desta Resenha

MEZADRI, Adriana; CIMA, Justina; TABORDA, Noeli; GASPARETO, Sirlei; COLLET, Zenaide (Orgs). Feminismo camponês e popular: reflexões a partir de experiências no Movimento de Mulheres Camponesas. São Paulo: Outras Expressões, 2020. Resenha de: PAULILO, Maria Ignez Silveira. O feminismo marxista se recria. Revista Estudos Feministas. Florianópolis, v. 30, n.1, 2022. Acessar publicação original [DR]

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