Filosofia e Neurociências: intersecções entre as ciências humanas e as naturais | Conjectura | 2021

Metaetica e etica normativa Neurociências
Metaética y ética normativa | Imagem: Lamula.PE

Ao longo de sua história, a disciplina de Filosofia esteve diretamente vinculada com questões acerca da condição humana. Essa inclinação pode ser traduzida por uma preocupação legítima sobre os seres humanos e como sua mente funciona. Derivam daí discussões sobre cognição, razão e emoção, cultura e natureza, genealogia dos comportamentos e juízos morais e religiosos. Em sua gênese, as investigações filosóficas não eram particularmente distintas das realizadas pela psicologia, biologia, história ou ciência política. Na verdade, o próprio avanço dessas áreas trouxe novas indagações à filosofia, em particular, sobre como todas essas peças podem compor um mesmo quebra-cabeça.

Este dossiê também é uma singela homenagem à Dra. Anna Carolina Krebs Regner, filósofa fundamental ao desenvolvimento da filosofia da biologia na América Latina e referência em estudos sobre Aristóteles. Entusiasta das relações entre filosofia e ciência, a professora abriu as portas da academia para gerações de cientistas, filósofos e filósofas que compõem, hoje, os principais centros de pesquisa do Brasil e do mundo. Os eventos e as publicações, na intersecção entre filosofia e ciências empíricas propostos neste dossiê, visam a retomar sua visão. O problema central é o mesmo que acompanhou a professora em sua trajetória, ou seja, esclarecer questões sobre o ser humano e a natureza da qual ele faz parte. As discussões, nos moldes como estão propostas, envolvem o estudo de fenômenos pautados por pesquisas cujas conclusões são, em sua maioria, probabilísticas e passíveis de falseamento empírico – e esse fato não torna esse empreendimento menos filosófico. Ao contrário, considera-se que as principais questões da filosofia são melhores tratadas exatamente ao serem abandonadas verdades imperativas e princípios universais apoiados numa coerência interna, mas incapazes de tocar o mundo.

As influentes descobertas das ciências cognitivas e biológicas têm impactado, com profundidade, a compreensão da natureza. Isso ocorreu pela superespecialização de áreas centrais como a psicologia, a biologia e a medicina, além do desenvolvimento de tecnologias que ampliaram o escopo de estudo nesses campos. Temáticas e problemas que anteriormente eram quase exclusivos da filosofia, passaram a ser tratados empiricamente – no emprego mais forte desse conceito. Poder-se-ia dizer que a filosofia ganhou aliados, mas a relação entre ambas as áreas do conhecimento, quando não adquire contornos competitivos, permanece obscura. Por um lado, há filósofos temendo que esse seria o fim da filosofia e, por outro, cientistas que falham no desenho experimental por não compreenderem as sutilezas dos problemas de que estão tratando. Nesse sentido, o ponto levantado neste dossiê é que a filosofia deve absorver tais descobertas científicas se quiser produzir teorias que estejam em conformidade com os fenômenos descritos por outras áreas do conhecimento.

Tecnologias associadas às Neurociências têm possibilitado um mapeamento funcional tanto do cérebro humano quanto de outros animais sociais. A precisão dessas análises convergiu numa horizontalidade de aplicações, possibilitando uma compreensão empiricamente embasada dos sistemas cerebrais associados a questões filosoficamente relevantes. O ponto arquimediano dessas descobertas tem sido o papel que estudos empíricos do cérebro e do comportamento têm em contextos naturais e culturais. Dessa forma, o modo como as ciências cognitivas têm pensado no cérebro e em sua influência no etos sociocultural e natural de inúmeras espécies têm incitado reflexões sobre os modelos teóricos puramente especulativos da filosofia tradicional – seja para sua corroboração ou falseamento.

De fato, a influência de pesquisas experimentais na filosofia da mente pode ser percebida na querela entre os que defendem o funcionamento modular do cérebro (diferentes partes destinadas a funcionalidades variadas), e os que apostam numa visão computacional (mecanismo orgânico capaz de processar diversos tipos de informação). Além de tópicos dessa natureza, perspectivas experimentais em filosofia visam à repristinação de temas tradicionais nas áreas da moral e da política. Pesquisas em neuropsicologia e biologia comportamental apontam à especialização de sistemas cerebrais direcionados ao comportamento moral ou à tomada de decisão pública, agregando às investigações filosóficas questões sobre a plasticidade neuronal e a integração de sistemas psicobiológicos de sociabilidade. Essas análises também sugerem a existência de níveis variados de adaptação associados ao desenvolvimento cognitivo de mamíferos sociais, compatíveis com capacidades cognitivas similares em diferentes espécies.

Diferentemente das demais posturas filosóficas, propõe-se, como norteador deste dossiê, uma postura crítica baseada em estudos empíricos sistemáticos – tanto os realizados por outras áreas do conhecimento quanto aqueles desenvolvidos em grupos de filosofia empírica. Assim, a presente publicação é definida pela condução de investigações experimentais de processos psicológicos e biológicos acerca de temas centrais à filosofia. O objetivo é desafiar intuições filosóficas tradicionais a partir de análises experimentais e estudos empíricos, os quais são o “norte” das discussões contemporâneas sobre os temas propostos.

As reações a esse movimento são amplamente polarizadas no Brasil. Muitos pesquisadores consideram ser uma forma nova de abordar problemas filosóficos clássicos, enquanto os demais o consideram insidioso, como um espectro que assombra a filosofia contemporânea. Entende-se que ambos os extremos estão baseados numa compreensão incompleta das ambições da filosofia experimental. Nesse sentido, justifica-se a publicação de um dossiê com produções que possam esclarecer essas questões e eliminar tanto preconceitos quanto defesas cegas a essa prática filosófica – esclarecendo sua natureza e apontando sua continuidade com a filosofia tradicional.

Nesse contexto, emerge um ponto bastante complexo: em linhas gerais, ele ocorre num aparente hiato entre os dados empíricos que embasam a filosofia experimental e as teorias que essas evidências deveriam corroborar ou falsear. Nesse sentido, a discussão experimental em filosofia parte de dados acerca da fisiologia cerebral-comportamental de inúmeras espécies animais, de porcentagens sobre que tipos de intuição são realizados com relação a questões específicas, etc. Todavia, as teorias em discussão não são sobre neurofisiologia, etologia ou intuições, mas sobre questões filosóficas substantivas em epistemologia, ética e filosofia da mente. As questões que este dossiê se propõe esclarecer é exatamente como dados empíricos podem ter força para aceitação ou negação de uma visão filosófica específica – desde os gregos até os dias atuais.

A configuração da filosofia experimental é complicada, uma vez que diferentes projetos estão apoiados em abordagens fundamentalmente diferentes, que variam da neuropsicologia, passando pela biologia evolutiva e comportamental, até as ciências políticas. Nesse sentido, não é possível apontar um único ponto de vista básico que seja o cerne do trabalho contemporâneo na área. A única maneira de apresentar esse material é olhar para diferentes vertentes que abrangem áreas em filosofia moral, filosofia política, filosofia da linguagem, filosofia da mente, metaética, etc. Em suma, o dossiê Filosofia e Neurociências: intersecções entre as ciências humanas e as naturais, visa a esclarecer esses pontos e buscar uma convergência na discussão, além de oferecer material-base para alavancar e qualificar a pesquisa empírica e experimental em filosofia dentro do cenário brasileiro.


Organizadores

Matheus de Mesquita Silveira – PPG em Filosofia. Universidade de Caxias do Sul.

Juliano do Carmo – PPG em Filosofia. Universidade Federal de Pelotas.

Heloísa Allgayer – PPG em Biologia. Universidade do Vale do Rio dos Sinos.


Referências desta apresentação

SILVEIRA, Matheus de Mesquita; CARMO, Juliano do; ALLGAYER, Heloísa. Apresentação. Conjectura: Filosofia e Educação. Caxias do Sul, v.26, p. 8-11, 2021. Acessar publicação original [DR]

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