Filosofia para mortais: pensar bem para viver bem | Daniel Gomes de Carvalho

Um professor de História escreve um livro de Filosofia. A afirmação pode lembrar uma daquelas anedotas que começam com “Um fulano e um sicrano entram num bar”. Contudo, a questão aqui levantada é, mais do que pilhéria, uma reflexão primordial a diversas ciências humanas: aquela que se refere à interdisciplinaridade. É neste campo que nosso objetivo central nesta ligeira exposição de Filosofia para mortais está inserido. Podemos resumi-lo na seguinte pergunta: Por que ler um livro de Filosofia escrito por um professor de História? Os caminhos de resposta escolhidos apontam para a correlação entre os pensamentos histórico e filosófico, sendo igualmente válidos para não historiadores (as) e não filósofos (as).

De antemão, nos desculpamos com o autor e futuro público leitor que, ao contraporem as considerações que aqui expomos com a obra original, logo perceberão que outras muitas ponderações possíveis foram deixadas de lado, por conta da necessidade de enfoque exigido por uma resenha. Aqui falaremos de algumas correlações entre o pensamento filosófico e o pensamento histórico, com destaque à questão da mortalidade, uma das ideias centrais trabalhadas no livro de Daniel Carvalho. Neste ponto, devemos também alertar que indicar pontos da referida conexão não elimina os diferentes lugares ocupados e metodologias exercidas por cada uma das referidas áreas do conhecimento como disciplinas.

Se uma das principais prerrogativas do pensamento histórico é a consideração do contexto de algo ou alguém – Lucien Fèbvre e outros já avisaram que o anacronismo é o grande pecado de historiadores (as)! 1 -, a relação autor e obra deve ser nosso ponto de partida da apresentação do livro. Questões subjetivas do escritor fogem a nosso escopo, mas informações básicas e objetivas nos auxiliam na contextualização do escrito. Daniel Gomes de Carvalho é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, professor de História Moderna na Universidade de Brasília, integrante dos canais virtuais Se Liga nessa História! (Youtube) e História Pirata (podcast), expressivas plataformas de compartilhamento de conhecimento, de livre acesso àqueles que possuem internet. Cabe-nos dizer, ainda, que Daniel é um estudioso de Thomas Paine e outros pensadores (sim, há motivo para “Thomas Paine” anteceder “outros pensadores”). Compreender o autor como um historiador e estudioso de intelectuais esclarece, em grande parte, o fato de o livro ser estruturado a partir da exposição de teorias de muitos (as) eruditos (as) de diferentes séculos, incluindo aqueles (as) por trás de filmes, séries e músicas de nossos dias ou de dias próximos aos nossos. Star Wars, Game of Thrones, canções de Chico Buarque, Raul Seixas e outros são exemplos de referências algo mais coevas à nossa geração, usadas para exemplificar parte dos argumentos.

Uma vez conhecido o autor, chegamos ao livro. A colorida capa2 é sucedida por uma introdução e mais onze capítulos. Estruturamos nossas considerações em blocos e em cada um deles apresentamos brevemente o conteúdo das partes que formam a obra, junto a ponderações sobre a correlação entre o pensamento filosófico e o histórico.

O primeiro bloco é formado pela introdução e os três primeiros capítulos. A primeira apresenta uma das questões mais fundamentais do livro: a mortalidade como fornecedora de sentido à vida humana. O autor nos conta sobre uma sociedade chamada Dohrnii3, na qual descobriu-se uma fórmula da juventude e imortalidade. Ali, a ausência de finitude e de preocupação com a morte, com um final da vida, retirou daquele grupo de pessoas a angústia como descrita por Soren Kierkegaard – elemento imprescindível para dar limites às nossas escolhas dentro da única certeza da vida humana, a morte. Amores, acordos, sentimentos, temas para canções, poesias, educação, contrato social, prevenção às doenças e outras características dos homens mortais deixaram de fazer sentido. Sem a mortalidade, nem mesmo os aniversários tinham justificativa, visto que mais um ano vivido não carregava mais o símbolo de vitória, alegria ou privilégio, pois todos viveriam eternamente. A porção garantia, ainda, a manutenção da juventude e da beleza, de modo que esses atributos perderam suas essências, pois todos eram igualmente jovens e belos. A justiça caiu em desuso, junto à necessidade de se pedir perdão, afinal qualquer dano ou remorso seriam ultrapassados pelo passar da vida sem previsão de fim.

Todd May, Jorge Luís Borges, Albert Camus e outros pensadores são evocados para embasar o argumento central de que a Filosofia, como o constante pensamento sobre a vida, seus fins e finitude, é um assunto para mortais, pois as reflexões sobre a morte, nas palavras de Luís César Oliva, nos tornam mais fortes para a vida. Ainda na introdução, nomes como os de Santo Agostinho e Friedrich Nietzsche aparecem para embasar a ideia de peculiaridade do homem em relação a Deus e outros animais, no que concerne ao enfrentamento da morte. Dizse que os seres humanos não são oniscientes e onipresentes, como se acredita que seja o ser divino (Deus), tampouco sentem medo da morte apenas por instinto e no momento do perigo, como é o caso dos bichos. Ao fim da parte introdutória, sabemos que os Dorhnii são salvos de sua vida não mortal, portanto não humana, por uma falha na composição da fórmula. Esta parou de funcionar em um certo momento e, como a imortalidade fez com que a preocupação em guardar conhecimentos científicos decaísse, não havia mais cientistas para ajustá-la ou refazê-la. O grupamento teve angústia, medo da morte e, portanto, humanidade e filosofia novamente, pois a mortalidade voltou ao conjunto de valores daquele grupo de pessoas.

A Filosofia mencionada por Daniel Carvalho não é restrita às filósofas e filósofos diplomados. Ainda que estes tenham maior arcabouço para debater teorias e a Filosofia como ciência e disciplina acadêmica, no livro ela aparece como o ato de pensar sobre a existência, a finitude, as coisas da vida e da morte. A mortalidade é condição indispensável para os questionamentos sobre o viver. Ainda na introdução é esclarecido o subtítulo do livro. O autor nos conta que sua obra não é um manual de bem-estar, mas um caminho que indica que “viver uma vida com reflexão” (p.24) traz capacidade de diálogo com outros e com nós mesmos, o que torna a existência algo a ser encarado, pensado constantemente, aprimorado.

As reflexões desta parte nos permitem fazer uma das principais aproximações entre Filosofia e História. Esta, segundo Marc Bloch, é a ciência dos homens no tempo. Devemos adicionar mulheres à definição e perceber a partir dela que os sujeitos estão no plural, fazendo referência à sucessão de pessoas atuando em um tempo processual, que é finito para cada geração. A História é, também, uma ciência da mortalidade. Os próprios objetos da investigação histórica e historiadores (as) são mortais. As fontes de trabalho de historiadores (as) encontram limites e seus problemas de pesquisa ganham sentido a partir de pessoas e questões finitas, ainda que uma mesma problematização e/ou objeto possa ser evocado sob inúmeras abordagens e perspectivas, por diferentes pessoas.

Os três primeiros capítulos – Amor e Filosofia, Isto não é um cachimbo: o que eu posso conhecer? e Os tubarões podem ser maus? apontam a importância da Filosofia para pensar questões existenciais da vida humana em sociedade, a exemplo do amor, das imagens, percepções e constructos sociais de nossa visão biológica, o bem, o mal e outras. No primeiro, as ponderações de René Descartes, Luc Ferry, Michel de Montaigne, Elisabeth Badinter, Viviana Zelizer e outros compõem uma discussão voltada a pensar sobre o amor como parte das construções sociais e subjetivas do ser humano. Daniel Carvalho aponta Descartes como o primeiro pensador a abordar o amor como reação fisiológica. Destaca, também, alguns problemas disso, sobretudo pelo fato de a reação química do amor ser diferente da experiência de amar. As transformações daquele como valor social ao longo do tempo – e aqui o capítulo não se refere apenas à experiência do amor de casais, mas também ao afetivo de familiares e crianças -, são ponto-chave. Considerações de Platão, Aristóteles e Zigmunt Bauman são citadas neste capítulo, que é destinado a elencar o amor como criador de sentidos, parte da humanidade, portanto objeto de constante reflexão, diferente do que muitos (as) pensam habitualmente – que exercê-lo é melhor do que pensar sobre ele.

O capítulo do cachimbo (ou do que não é um) indaga sobre o que podemos conhecer em nossa vida. Trata-se da proposição de que nossas percepções são, mais do que visuais no sentido estrito, historicamente erigidas. Platão, Aristóteles, David Hume, Immanuel Kant, René Descartes e outros são eleitos para auxiliar na construção argumentativa que tem por cerne a relação entre o real e sua representação. Para o autor do livro que resenhamos, a própria relação entre o ser humano e o real é uma representação, no sentido de que o que admitimos como tal é sempre mediado por olhares e construções sociais. Razão, intelecto, sentidos, dúvida, ciência, probabilidade e a própria noção de realidade são objetos de debate, incertezas que ocupam muitos teóricos e teóricas ao longo da história da humanidade. Tais dilemas diretamente relacionados à angustia que acompanha a mortalidade e nos faz querer descobrir e pensar sobre nossa própria vida. As ponderações desta parte são finalizadas com a assertiva de que “toda consciência é produto de uma teia de relações com outros seres humanos, com a natureza e mesmo com a rede de símbolos na qual estamos imersos” (p.63-64), de modo que consciência e percepções da realidade são inevitavelmente sociais.

O capítulo dos tubarões discute as ideias de bondade, maldade, superioridade e consciência humanas em relação aos animais. Seu mote é a reflexão sobre o que diferencia o homem do restante da natureza. Jean-Jacques Rousseau é citado com a resposta de que somente o ser humano age além de sua determinação biológica e tem história em sociedade, portanto, somente ele pode ser bom ou mau. Immanuel Kant indica o caminho de que diferente de animais como o tubarão, o homem possui autonomia da vontade acima dos instintos, sendo a moral criação da liberdade humana e não da natureza biológica. Segundo essa ideia, os tubarões não podem evitar seu desejo de carne humana, já os seres humanos podem evitar seus desejos e optar pelo bem ou pelo mal.

O apontamento de que vida social e percepção da realidade somente são possíveis em uma rede que envolve seres humanos, natureza e símbolos, é outro ponto da conexão entre pensamentos filosófico e histórico, em dois sentidos, no mínimo. O primeiro se refere ao cuidado que historiadores (as) devem tomar ao analisar fontes históricas. Deve-se ter em mente que as mesmas foram construídas a partir de percepções sociais ligadas a um tempo e uma sociedade específicas e que, na maioria dos casos, as percepções e contextos de objeto de pesquisa e historiador (a) são diversos daqueles em que a fonte foi produzida. O segundo diz respeito a compreender que pensar historicamente é pensar socialmente. O sistema de construção de símbolos, o micro como parte de um macro e o homem como ser mortal e pensante são cernes nas investigações em História. O trabalho histórico é, em certa medida, um trabalho de filosofia por refletir sobre a vida.

O segundo bloco é formado pelos quatro capítulos seguintes: Kant, direitos dos animais e consumo de carne; Maquiavel, Hobbes, Ned Stark e a Guerra dos tronos; Sobre a maldade dos homens de bem, a banalidade do mal e a profundidade do bem e; Tolkien, Hitler, a razão instrumental e o Senhor dos Anéis. Os títulos desta parte elucidam a continuidade de questões propostas desde a Antiguidade, pensadas de diversas formas até os dias atuais. Mais do que isso, demonstram a atualidade das mesmas e exemplificam a complexidade de elementos costumeiramente vistos como entretenimento, a exemplo de séries e filmes, que se configuram como excepcional tática pedagógica de explicação de argumentos de forma clara para variados tipos de público. O uso desses elementos no livro torna sua leitura divertida e fluída. Além disso, atestam a presença da Filosofia no dia-a-dia, para além do ambiente acadêmico-escolar.

O capítulo sobre Kant e a carne aborda a igualdade entre seres humanos e direitos desta espécie. O autor faz um breve histórico da história dos direitos humanos e políticos desde o mundo antigo – onde surgiu a ideia de isonomia, base da de democracia –, destacando algumas evoluções primordiais, com ênfase na tecnológica que transformou padrões, a exemplo da abundância de recursos de que a sociedade contemporânea dispõe, que não era uma realidade possível em sociedades de baixo desenvolvimento técnico (p.82). Iluministas radicais e liberais ganham lugar no capítulo para a discussão dos direitos da espécie humana, como liberdade, felicidade, propriedade, segurança e outros. A pergunta sobre se o ato de comer carne é natural ou não é utilizada para problematizar convicções sobre natureza, moral e racionalidade. Assim como o amor, a alimentação é objeto da Filosofia, do pensar bem para viver bem, que muitas vezes não ganha a reflexão merecida por parecer banal 4.

O capítulo da Guerra dos Tronos concentra-se no comportamento do ser humano perante outros seres humanos. Ética, política e abdicação do direito natural em nome de um Estado que garanta liberdades básicas são objetos centrais dos entrechos. No primeiro, Daniel Carvalho realiza uma metáfora entre Game of Thrones, a Itália de Nicolau Maquiavel e a Inglaterra de Thomas Hobbes. Um aviso sobre o primeiro ser um dos autores mais mal interpretados da história também integra o capítulo. A trama vivida pelo personagem Ned Stark – o íntegro homem que teve um filho, John Snow5, fora do casamento – é utilizada para esclarecer debates sobre moral, fortuna e virtú. Stark é considerado um anti-Maquiavel, por descobrir tarde demais que homens (e garotos, no caso do seriado) maus não respeitam acordos e, além disso, que salvar a alma e a cidade ao mesmo tempo é tarefa não possível quando outras éticas dividem espaço com a sua. Stark teria custado a entender que por vezes o mal praticado contra alguns é fim para o bem comum.

Os dois capítulos que fecham o segundo bloco, sobre a maldade do homem de bem e a razão instrumental prosseguem as análises do comportamento do homem como ser político e social. No primeiro, as justificativas que versam sobre o direito de agir em nome de Deus ou da justiça social – presentes em tantos episódios da história da humanidade –, e a confrontação da ideia de senso comum – que quando usada em negação à ciência é tão maléfica ao bem coletivo –, apresentam a questão da maldade. Hannah Arendt, os stormtroopers da Franquia Star Wars e outros exemplificam que “a maldade não é condição necessária para fazer o mal” (p.130). Por vezes a obediência e/ou o cansaço de liderar a própria vontade e guiar as próprias ações fazem com que se obedeça e apoie a ação de sujeitos maus. Algo assim ocorre nos regimes totalitários. Nesse sentido, tomar cuidado para não compactuar com a maldade é tarefa difícil. O bem exige sacrifício e luta pela liberdade. Implica, de igual modo, que pensemos sobre ele e sobre nossas atitudes constantemente. Aqui reside mais um importante sentido de pensar bem para viver bem, subtítulo do livro Filosofia para mortais.

No segundo, a obra cinematográfica de Tolkien aparece como um caminho de crítica à razão instrumental, típica da modernidade, que preconiza a propaganda, a estatística e a utilidade em detrimento da simplicidade e do encanto do mundo. Em O Senhor dos Anéis algumas metáforas de protesto contra a modernidade são bem claras: os hobbits, que são criaturas singelas e simples, mas conseguem salvar todo o mundo; as árvores, elementos da natureza, que vencem um poderoso mago; a ideia de que violentar a natureza é violentar a si próprio, entre outras são percebidas. Trata-se da proposição de uma nova relação entre tempo, vida e racionalidade.

Tolkien lutou nas trincheiras da Segunda Guerra Mundial e presenciou um mundo com as barbáries de Hitler. Sua biografia ajuda a compreender a revolta contra a modernidade, identificada com esse tipo de mundo, instrumental, desumanizador, desencantador. O ponto central de relação entre Filosofia e História que desejamos ressaltar nesta parte é o que se encontra nas concepções de bem e mal como elementos subjetivos e sociais. Ainda que na metodologia histórica a subjetividade seja terreno escorregadio, devemos considerar que o julgamento de boas ou más ações se liga diretamente à estrutura de valores de determinadas sociedades. Por mais que nas reflexões históricas o intuito não seja apenas dizer quem é bom ou mal, compreender como essas noções se constituem em determinada região e período é imprescindível. Assim sendo, pensar sobre a bondade e a maldade, bem como denunciar a última, é também tarefa da História. A periodização de diferentes padrões de direitos, maldades e bondades também é função desta ciência, deveras ajudada por diversos pensadores e pensadoras da Filosofia.

Os três capítulos do bloco seguinte falam sobre sentido da vida, emoções, arte, beleza, desejos e vontades. Você tem fome de quê? Arte é fundamental nos faz pensar sobre a importância de sentir, desejar e combater uma vida tediosa a partir do exemplo da arte, mais especificamente em sua relação com o belo. Novamente nos deparamos com questões aparentemente corriqueiras, mas que envolvem alto nível de reflexão. O autor evoca Platão, um dos primeiros a se debruçar sobre o problema do belo, para ilustrar a antiguidade e importância da questão. Para o filósofo antigo, a beleza estaria ligada ao ser, a algo maior e superior às coisas naturais. Já a arte correlacionava-se à representação (mímese), de modo que um quadro pintado poderia mostrar mais do que a imitação de alguma coisa expressando, também, valores e noções de quem o pintou. Sobre a mesma relação, Aristóteles dizia que a arte era mais do que beleza e estava ligada à educação, ao potencial pedagógico de ser exemplar e aumentar a inteligência humana. Outro filósofo, Kant, apontava a beleza como indissociável da subjetividade, fundamental à imaginação, ao espírito e ao não meramente instrumental.

As reflexões deste bloco evidenciam ser a arte fundamental ao espírito, à própria essência humana, de modo que ela deve ser vista como caminho de liberdade, que ultrapassa o lado perceptível da vida, demonstrando nosso potencial de ir além. Nietzsche alertara sobre o perigo da racionalidade ocidental que destituiu o seu valor ou a secundarizou em prol de explicações herméticas. A arte moderna, que quebrou com padrões impostos pelo Estado, é exemplo de protesto contra a racionalidade instrumental. Para Daniel Carvalho, atualmente a arte é arma contra a generalização da violência, refúgio de combate à perda de interesse pela diversão, pelo prazer e pela imaginação, inerentes ao controle da própria vida.

Camus, o absurdo e as lições de Merlí e Rick and Morty trata do absurdo em reflexões que nos impulsionam a questionar sobre limites do pensamento que afetam o dia-a-dia do ser humano. O costume com as rotinas é tido como um perigo por nos fazer recuar ao ato de ultrapassar padrões definidos por outrem. Ao absurdo de Camus – formado pela máxima de que se o universo é um vasto desconhecido e possui várias dimensões, por que devemos nos ater a obrigações e lições morais do pequeno espaço que conhecemos? – é apontada a alternativa de que apesar do desconhecido, que pode mudar toda a nossa vida a qualquer momento, vale a pena viver nos atendo ao que se tem e se conhece, não no sentido de não refletir sobre o que desconhecemos, mas no de dar importância ao que nos é tangível. O próprio Camus assume que prender-se à finitude e ao que se tem é caminho para a felicidade. Se existem outras partes que não conhecemos no universo, isto não deve destituir a validade do que nos está próximo – diferente do cientista alcoólatra Ricky, que está quase sempre a buscar realidades alternativas, ignorando questões e pessoas da sua de origem.

Em Breaking Bad, Nietzsche e o além-homem, o autor usa o professor White, personagem da série mencionada no título, como exemplo de pessoa entregue à heteronomia. Este conceito, em termos Kantianos, nomenclatura situações em que pessoas exercem autoridade sobre a vida de alguém, de modo que a figura que sofre a heteronomia não se posiciona de forma autônoma em sua própria vida. Para Kant, pessoas que a aceitam são preguiçosas e desperdiçam a autonomia do viver. Quando White descobre ser vítima de um câncer, ele abandona a referida condição e passa a determinar seu próprio destino. Junto à análise do conceito, o capítulo evoca a ideia nietzschiana de além-homem, que concerne a um tipo de sujeito que se desprende do medo de refutar verdades impostas e absolutas que proporcionam conforto estático. O além-homem rompe com a busca por verdades irrefutáveis e não tem medo de paixões fortes, riscos e decepções que fazem parte do ato de existir, estar vivo.

Este bloco remete ao pensamento histórico de diversas maneiras. Desejamos preconizar a que trata da demonstração da possibilidade de utilizar elementos da cultura pop, como seriados e desenhos, como fontes de análise de uma problematização. É importante ter em mente que esses objetos refletem a cultura de um período e de grupos sociais específicos com os quais alguns campos da História se preocupam e podem trabalhar, rompendo com concepções tradicionais que apontam os documentos escritos como única documentação confiável. Dentro desta perspectiva apontamos, ainda, um movimento inerente à metodologia da História, que é a relação entre teoria e prática. Nos capítulos observamos pensamentos de autores de diferentes épocas sendo usados na análise de um seriado e de um desenho da atualidade. Não nos referimos aqui à defesa da aplicação de qualquer pensamento antigo a uma fonte atual, mas sim à necessidade de discussão, troca de ideias e atualização de pensamentos, bem como aplicação de teorias a objetos próximos a nós, para compreender a História como parte da vida e não como algo desconexo dela.

O último capítulo, de título homônimo ao do próprio livro, aborda a finitude e a grandeza do homem, elencando como questão central a maneira de lidar com a morte, que embasa a forma de lidar com todas as demais coisas da vida. Blaise Pascal é evocado em suas assertivas de que o ser humano está preso entre dois infinitos do ser (p.199) – ser deveras pequeno ou infinitamente grande. Trata-se da ideia de que apesar de finitos, somos dignos e fabulosos devido à nossa capacidade de pensar. A lição principal do capítulo é evidenciar que não devemos encarar a morte como algo deprimente, ainda que ao longo da história da humanidade esta tenha se tornado um tabu. Autores como Espinosa, Sêneca e outros aparecem tanto como exemplos de pensadores preocupados com o que esperar após a morte, como comprovação de que existem diversas concepções e jeitos de considerá-la.

O livro nos concede, ainda, a sútil sugestão de que o ser humano precisa melhorar, a partir da reflexão constante, sua relação com o finito durante a vida. Nesta parte, o autor adjetiva como positivo o chamado esgotamento de si, que se refere a tornar-se desnecessário por já ter cumprido uma missão na vida de outrem, por exemplo: um professor que se torna desnecessário a um aluno, conseguiu ensiná-lo e, portanto, cumpriu seus objetivos. Ele deve ficar feliz por isso e não triste por achar que ninguém mais precisa dele. Filosofar sobre os finais de ciclos, além do da própria vida, é, desse modo, mais um caminho para viver bem.

No desenvolvimento da resenha, oferecemos alguns pontos possibilitadores da percepção acerca de algumas possíveis interseções entre o pensamento filosófico e o pensamento histórico. Ambos nascem de inquietações com coisas finitas da vida. Um e outro não envolvem apenas os profissionais da área. Os dois envolvem considerar, também, que o ato de pensar é finito e contínuo, pois com o passar do tempo outros seres humanos com novos pensamentos surgem e ideias deixadas como legado ganham, assim, novas perspectivas – e esta dinâmica de continuidades e transformações são tão características da História!

As considerações aqui propostas se configuram como alguns, dentre muitos possíveis, motivos que explicam porque devemos ler um livro de Filosofia escrito por um professor de História. A utilidade não serve apenas às pessoas diplomadas, mas a todos (as) aqueles (as) que não são Dorhnii, mas sim mortais, pensam sobre a vida como filósofos (as) e, inevitavelmente, fazem parte da História (não só como disciplina).

Notas

1 Pensadoras (es) como Nicole Loraux em “Elogio do anacronismo” (1992) fornecem outras perspectivas sobre o anacronismo. Mas, para este texto, a que apresentamos basta ao argumento.

2 Thomas Hobbes, Epícuro de Samos, Baruch Espinosa, George W.F. Hegel, Aristóteles e Simone de Beauvoir são figuras que aparecem na capa.

3 Spoiler: O nome desse grupamento fictício é inspirado na espécie biológica Turritopsis Dohrnii, considerada imortal pela capacidade de voltar a seu estado inicial de vida e dar origem a pólipos que geram clones de si mesma.

4 O autor não é vegetariano ou vegano.

5 E ainda que eu goste bastante do seriado, me cabe confessar que, na condição de historiadora da medicina, me incomoda que o nome John Snow seja habitualmente ligado ao personagem, quando na verdade era o nome de um médico de significativa importância da epidemiologia moderna que muito contribuiu ao avanço da medicina, dentre outras ações, com seus métodos de anestesia e investigações sobre a cólera-morbo no século XIX.


Resenhista

Vanessa de Jesus Queiroz – Doutoranda em História pela Universidade de Brasília (UnB); bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

CARVALHO, Daniel Gomes de. Filosofia para mortais: pensar bem para viver bem. Rio de Janeiro:  Editora Harper Collins, 2020. Resenha de: QUEIROZ, Vanessa de Jesus. Revista de História da UEG. Morrinhos, v.10, n.2, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]

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