Fronteiras multissituadas, fronteiras epistemológicas e fronteiras no ensino de história | Jamaxi | 2021

EPÍGRAFE

O GUARDIÃO DAS FRONTEIRAS

A partir de George Landow

“No lugar do posto de controle de saída da fronteira, o guardião do país vizinho pediu que o estudioso de Ecologia Cognitiva mostrasse seu passaporte, chamando-o: – Ei, você, faz o quê?

A resposta foi: – Apesar do meu nome, não trabalho exatamente com Ecologia, mas com o conhecimento.

– Negativo: há muito a Filosofia se encarrega disso foi a objeção do guardião das fronteiras. Vá pleitear a sua saída pela outra porta.

– Espere! Entendo o conhecimento de uma forma ampla. Ocupo-me dos signos, de todos os vestígios sensíveis ligados às intenções na produção e atribuição de sentidos, explicou o estudioso.

– Ora – refutou novamente o guarda – isso é o que faz a Semiologia. Você está querendo burlar a segurança?

– Absolutamente! De fato – ponderou o estudioso – alguns teóricos trabalham sobre o sentido dos signos. Mas interessam-me mais diretamente as relações de poder que são travadas na arena da comunicação.

– Hum… – observou-o o guardião, desconfiado. – Sim, já entendo, trata-se então de Filosofia da Linguagem.

O estudioso ousou especificar ainda um pouco mais a sua ação e disse: – Sim, a Filosofia da Linguagem, em especial a corrente da pragmática, aborda esse tema com muita propriedade, mas concentrando-se no que é produzido no decorrer da comunicação entre os interlocutores. Quanto a mim, procuro fixar-me em algo que vai além, buscando verificar como as idéias se transmitem e interagem entre si por meio de palavras, imagens e sons articulados, em toda a riqueza dos signos, para, então, discutir como o pensamento tem sido produzido.

Trata-se de entender as dimensões técnicas e coletivas da cognição. O soldado sorriu com desdém. “Ah, e a cognição. Ora, então você é um estudioso da Educação”.

– De certo modo, sim – concordou em parte o visitante -, mas apenas se considerarmos a Educação compreendida em seus novos ambientes e espaços, nos quais um novo sujeito, digamos, coletivo, se movimenta… E para compreendê-la dessa forma devemos derrubar algumas das fronteiras e construir elos com a Filosofia, com a Semiologia e com outras disciplinas das quais herdei também algumas questões, como a Linguística, ou a Psicologia.

Na verdade, não há como conceber a Ecologia Cognitiva sem falar das redes de conhecimento, e não há como estudar ou entender tais redes sem antes permitir também as interconexões em nossos próprios campos. E o estudioso terminou dizendo: – Por isso, não solicito apenas que autorizes minha passagem, como também te peço, em nome de todos os que desenvolvem pesquisas neste momento, que te despeças da sua função, pois para exercer a minha prática e levar adiante a pesquisa, não será possível que haja guardiões de fronteiras entre os países que visito.

O guarda já ia expulsar o forasteiro, pela insolência da fala, vindo a perturbar lhe a paz que há tanto conhecia naquele espaço-limite, quando aconteceu o inusitado: viu que atrás do Ecologista Cognitivo, e pelos lados, e mais adiante, e também por muitas outras vertentes, aproximavam-se multidões de cientistas e estudiosos e pesquisadores e professores, todos numa rebelião não organizada contra as cancelas de fronteiras, e tinham os nomes metamorfoseados: não mais ostentavam carteira de identidade de comunicador, de sociólogo, ou de historiador, ou de cientista, mas de coisas estranhas, como educo-municador, engenheiro do conhecimento, historiador das idéias, arquiteto cognitivo, sociólogo da linguagem e coisas nesse estilo. Viu que outros dos seus colegas tentavam reagir, mas era inútil.

O companheiro vizinho era desafiado por um sociotecnólogo, enquanto recebia a notícia de que legiões de historiadores das mentalidades haviam invadido um terreno proibido. Psicolingüístas atacavam pelo outro lado e, já sem receber maior resistência, um grupo de arte-educadores se preparava para ocupar a praça. E assim, apesar de esboçar uma reação inicial, os guardiões das fronteiras não tiveram outra opção a não ser retirar-se, resignados, deixando que fossem, por fim, apagadas as linhas tênues que marcavam os limites entre os países de uns e de outros.

Foi quando as portas se abriram e começou a história.”

As fronteiras de construção do conhecimento, tal como apresentada na epígrafe acima, são caminhos, encruzilhadas, margens, atravessamentos de campos constituídos por matrizes que possuem seus direcionamentos metodológicos e teóricos estabelecidos desde os século XIX. Porém, muitos os pesquisadores/pesquisadoras contemporâneos navegam nos mares das ciências vizinhas quando os seus “objetos de estudos” e seus “sujeitos” da produção do conhecimento tensionam seus referenciais de pesquisa, o que os leva a desaguar em rotas e itinerários novos das pesquisas nas ciências humanas.

O presente dossiê é resultado de um campo de estudos que vem crescendo no Brasil: os estudos relacionados às (i)emigrações e sua relação com as fronteiras geopolíticas em Estados de circunvizinhança. Além disso, também aglutina artigos relacionados ao campo do Ensino de História e suas relações interdisciplinares. Em artigo publicado em 2015 pela Revista Interdiciplinar de Mobilidade Humana, o filósofo italiano Sandro Mezzadra assinala em “Multiplicação das fronteiras e práticas de mobilidade” que vivemos uma crescente instabilidade das categorias e epistemologias que amparam o campo migratório e as sociedades contemporâneas, apontando a necessidade de pensarmos sobre as categorias de “integração, migração voluntária/forçada, migrante econômico/solicitante de asilo, migrante ‘ilegal”, como formas de que sejam refletidos os contextos de transformação e multiplicação das fronteiras no contexto neoliberal capitalista. Sabe-se que o acirramento das políticas neoliberais em contextos latino-americanos intensificou a precarização das condições de vida dos sujeitos no território, assim como reduziu os direitos constitucionais da sociedade civil, dos povos originários, das populações afrodescendentes, das mulheres, dos (e)imigrante/refugiados/apátridas/ciganos e grupos dos LGBTQIA+.

O que pensar diante de tais desafios aos quais somos submetidos cotidianamente? Na tentativa de refletir sobre tal pergunta, o atual dossiê foi organizado partindo da discussão das fronteiras multissituadas, nas quais a mobilidade humana e suas interconexões fronteiriças sejam compreendidos como processos interculturais vivenciados por diferentes sujeitos em espaços nos quais a diversidade étnica de experiências necessita ser pesquisada. O sistema capitalista intensificou, nas últimas décadas do século XX e princípios do século XXI, no contexto amazônico, os processos de desterritorialização das populações camponesas, das ribeirinhas, dos quilombolas e dos povos originários (RABELLO, 2013). Deste modo, é fundamental dirigirmos nossos olhares para os mecanismos das lutas e das resistências em torno dos direitos que as populações amazônicas mobilizam frente a tais desmonte.

Outra temática que emergiu em alguns artigos é quanto ao debate das fronteiras epistemológicas da produção do conhecimento histórico. Neste campo, pensamos nas articulações realizadas entre os estudos sobre a questão amazônica e o ensino de história, além disso, podemos apontar que as fronteiras epistemológicas interconectam matrizes de constituição de saberes, as quais diferentes posicionamentos dos sujeitos passam a dialogarem sobre a plataforma de agência de suas vidas (ROVAI, 2021).

A partir da temática das fronteiras do Ensino de História, temos a reunião de artigos que trazem contribuições sobre diferentes concepções educacionais, sobre a formação de professores e da matriz curricular no ensino de história. Buscou-se, deste modo, evidenciar os desafios sobre a produção científica a partir do debate das políticas públicas para o ensino de História e para o campo educacional em contextos democráticos. Esperamos que a reunião desses artigos seja capaz de lançar luzes sobre a produção consagrada à interconexão entre as fronteiras e o Ensino de História. Atenta-se para que esse dossiê estimule o debate, a crítica e sirva de referência ao diálogo desse campo com outras áreas da produção do conhecimento no Brasil.

O artigo que apresenta o dossiê aos leitores é “Jornalismo e sociedade: as concepções de Amazônia nos discursos da agência de notícias Amazônia Real”, de Fernanda Salvo e Miguel Felippe França Rodrigues, que a partir de fontes da agência de notícias Amazônia Real, analisa os discursos produzidos pelos viajantes, apontando os elementos exógenos e racistas presentes no folhetim sobre a população local, além de um modelo eurocêntrico ao construírem discursos que homogeneízam uma região sociodiversa reconhecida mundialmente como Amazônia.

Na sequência, temos o artigo “História, Ideologia e Mídias Sociais no Ensino de História: o caso Brasil Paralelo”, de Mauro Henrique Miranda de Alcântara, Rebeca de Paula Belmont e Maria Gabrielli Favoretti Fornazier, que analisa a base ideológica da série “Brasil: a última cruzada”, produzida pela empresa Brasil Paralelo. A crítica estabelecida no artigo revela as condições estéticas da recepção, problematizando a ausência de base empírica e o suporte metodológico na produção geral da série.

A seguir é construída uma reflexão sobre as políticas de formação de professores no Brasil. O artigo “Tendências nas políticas de formação de professores no Brasil: fragmentação e descontinuidade”, de Carmem Lúcia Caetano de Souza, Cristovam da Silva Alves, Danielle Prado Nepomuceno e Virgínia Mara Próspero da Cunha, aborda os conceitos de saberes docentes e os desdobramentos da profissão no Brasil, com destaque para a baixa qualidade do ensino e da precarização do campo educacional no país.

O artigo de Giovanna Sanches Serbilla Jesuino e Suzana Lopes Salgado Ribeiro, sobre a temática das “Relações étnico-raciais e ensino de história: tensões entre a lei 10.639/2003 e a BNCC”, mostra as tensões em torno de tais normativas no currículo de História, ao apontar a ausência de comprometimento sobre a base de implementação das propostas inclusivas. Além disso, o modelo vertical na proposta de implementação do currículo num país que possuí dimensões continentais e histórias plurais, revela as relações de desigualdade que a escola contemporânea agrega em seu atual contexto.

Na sequência, o artigo assinado por Andrea Paula dos Santos Kamensky, Marcio Alexandre Aveiro de Souza, Mariana Fernandes da Costa e Luciana Pereira, produziu um relato sobre o projeto de extensão “DIGITAL PLURAL: plataforma digital de extensão, educação e inovação social durante a pandemia de COVID-19”, que apresentou as potencialidades de projetos desenvolvidos em plataformas virtuais de aprendizagem nas quais foram realizados cursos de formações, debates, seminários, extrapolando os muros acadêmicos, pondo em prática o valor social da extensão universitária em contexto de isolamento social.

As relações de fronteiras no que tange a formação docente no Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – PIBID são apresentadas no artigo de Ozana Costa de Oliveira, Diego Correia Machado e Luciene Mendes de Oliveira. Os autores partem da premissa de que a formação docente durante o PIBID promove o diálogo, o envolvimento de diferentes sujeitos na construção de ações e práticas pedagógicas que possibilitam a formação calcada na realidade escolar, sem abrir mão do rigor teórico que marca a formação identitária da docência no Ensino de História.

No artigo “ A formação oferecida no curso de pedagogia da universidade estadual do norte do Paraná (UENP) em análise”, de Viviani Fernanda Hojas e Érica Tatiana de Almeida Santos Guilherme, propõe uma compreensão sobre a formação de professores do Norte do Paraná a partir da análise da matriz curricular dos cursos de pedagogia em sua prática no cursos de estágios supervisionado, evidenciando as mudanças e os significados desse processo.

Em artigo intitulado “As contribuições da teoria crítica Social para a arte, cultura e educação”, de Carlos Eduardo da Silva e Tânia Mara Rezende Machado, é realizado uma análise com base na teoria crítica da escola de Frankfurt, principalmente nos aportes críticos de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, ao pensarem nos processos relacionados a cultura, arte e educação. Os pesquisadores concluem que a emancipação do sujeito está diretamente vinculada à crítica do processo de alienação das subjetividades.

Na sequência, temos o artigo “Direito à imigração – a representação do imigrante nas leis brasileiras do final do século XIX”, de historiadora Vanessa Generoso Paes, que analisa os mecanismos jurídicos que circunscreveram os ditames da cidadania no período, e conclui que, a representação jurídica do período criou um muro social para inclusão do imigrantes, principalmente os que não eram considerados brancos e advindos do norte global, enquanto sujeitos desprovidos de direitos dentro de um contexto assimilacionista e marcadamente racista.

Ao final do dossiê, é realizado uma discussão sobre o racismo e o discurso de ódio no campo escolar a partir de uma pesquisa em redes sociais, intitulado “Educação antirracista na fronteira da contemporaneidade: redes de intolerância e memes de preconceito e racismo na escola e na sociedade”, de Heleno Szerwinsk de Mendonça Rocha.

Frente à diversidade de experiências de pesquisas e abordagens relacionadas as fronteiras epistemológicas e aos caminhos do ensino de história, esperamos que este dossiê seja uma contribuição sobre os caminhos de tais campos, enfatizando os processos educacionais e seus debates em torno da democratização da educação no Brasil.

Desejamos a todes uma boa leitura!

Referências

RABELLO, Antonio Cláudio. A QUESTÃO SETENTRIONAL: AMAZÔNIA, NATUREZA E CAPITALISMO. Sociedade civil: ensaios históricos. Jundiaí: Paco Editorial, p. 115-128, 2013.

MEZZADRA, Sandro. Multiplicação das fronteiras e das práticas de mobilidade. REMHU: Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 23, p. 11-30, 2015.

ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira (Org.). Escutas Sensíveis, vozes potentes: diálogos com mulheres que nos transformam. Teresina: Cancioneiro, 2021.

RAMAL, Andrea Cecilia. O guardião das fronteiras: a partir de George Landow. In: ________. Educação na cibercultura: hipertextualidade, leitura, escrita e aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 2002.


Organizadores

Tânia Mara Rezende Machado – PPGE/ ProfHistória/UFAC.

Vanessa Generoso Paes – UFAC.

Zuila Guimarães Cova dos Santos – UNIR.

 


Referências desta apresentação

MACHADO, Tânia Mara Rezende; PAES, Vanessa Generoso; SANTOS, Zuila Guimarães Cova dos. Apresentação. Jamaxi, v. 5, n. 2, 2021. Acessar publicação original [DR]

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