Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil | Marcelo Badaró Mattos

Marcelo Badaró Mattos é professor titular do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), pelo qual se doutorou. Trata-se de um dos mais importantes historiadores marxistas do país na atualidade, devido principalmente as suas contribuições à História social do trabalho, como o clássico Novos e Velhos Sindicalismos no Rio de Janeiro (1955/1988).2 Não obstante, tem trabalhos relevantes para o entendimento da teoria marxista e da História do tempo presente, campo ao qual pertence o livro Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil, publicado em 2020. Nesse mais recente estudo, o pesquisador tem como objetivo analisar fenômeno político da chegada de Jair Bolsonaro à presidência da República, tentando entender o caráter de seu governo e o seu papel na dinâmica da luta de classes no Brasil de hoje. O seu método consiste na busca de comparações entre o quadro atual e os fascismos históricos, o que o levou também a refletir sobre a nossa trajetória histórica desde o século XX, para o melhor entendimento do processo político brasileiro atual.

Antes de se debruçar especificamente sobre o governo Bolsonaro, autor inicia o primeiro capítulo, intitulado “Fascismos”, com as reflexões realizadas pelos militantes revolucionários que viveram os anos 1920 e 1930 e, portanto, estavam comprometidos com o combate a esses fenômenos políticos. Assim, mostra que Leon Trotsky, Clara Zetkin e Antonio Gramsci apresentaram análises concordantes quanto à existência: de um contexto marcado pela crise política (na dimensão da dominação de classe) e econômica (em nível internacional) que favoreceu a eclosão de tais movimentos; de uma base social de massas composta pela pequena burguesia e por assalariados médios, que contou ainda com a presença de setores do proletariado, apesar de os regimes políticos implantados beneficiarem o grande capital; de um sentido de classe visto também na violência e no terror exercidos contra as organizações dos trabalhadores; de um recuo dessas entidades diante das possibilidades objetivas de revolução, o que estimulou a adesão da pequena burguesia à ação contrarrevolucionária burguesa; e de uma complacência de setores do Estado precedente com os fascistas, notadamente, a polícia e o judiciário. De forma geral, também são coincidentes as recomendações no sentido da adoção de uma linha política de frente única para enfrentar essa ameaça aos operários (p. 12-41).

Depois das análises pioneiras realizadas por dirigentes revolucionários, Mattos resgata os principais elementos explicativos de formulações críticas sobre o fascismo elaboradas pelos historiadores nas décadas seguintes, valorizando não apenas aqueles ancorados no materialismo histórico. Os dois pressupostos destacados foram: a historicidade e a luta de classes. O primeiro deles aponta para a necessidade de compreender a amplitude e a complexidade do fascismo, que envolveu diferentes dimensões, apesar de elas não terem sido vividas simultaneamente, em conjunto, pelas sociedades que assistiram a sua emergência. As dimensões mencionadas dizem respeito aos: 1) movimentos, 2) ideologias, 3) lideranças políticas, 4) partidos, 5) governos, 6) regimes fascistas (p. 47).

Mattos conceitua essas dimensões dos fascismos e visita o debate sobre as condições históricas que permitiram a eclosão de tais movimentos e a chegada deles ao poder político. A síntese realizada por Fernando Rosas, autor em quem o historiador brasileiro se baseou para organizar o primeiro capítulo, fornece como elementos definidores: os efeitos da crise do sistema liberal potencializados pelos impactos da Grande Guerra em países europeus periféricos ou empurrados a essa condição, a derrota das lutas revolucionárias empreendidas pelos operários no pós-guerra, a rendição dos liberais e a fascistização e a unificação das direitas em torno do fascismo, nascido em outras bases sociais (p. 55).

Ainda na linha de valorização dos contextos históricos, enquanto Rosas lembra a relação entre fascismo e colonialismo – no que diz respeito às doutrinas racistas, à escravização dos prisioneiros de guerra e ao extermínio como método de limpeza étnica –, Leandro Konder enfatiza a relação entre fascismo e capitalismo, pois um pressuposto da emergência fascista foi o certo nível de fusão existente entre o capital bancário e o industrial. Geralmente ocultada na teoria do totalitarismo, essa última realidade foi criticada pelo autor do livro, novamente referenciado no trabalho de Rosas (p. 56-7).

Além do pressuposto historicista, Mattos destacou o da luta de classes, considerando, em primeiro lugar, o sentido contrarrevolucionário da violência fascista direcionada às organizações da classe trabalhadora e ao campesinato empobrecido, sendo ela uma necessidade da dominação burguesa em um período de crises múltiplas; em segundo, a implementação de políticas econômicas que favoreciam o grande capital; e, por último, a instalação de regimes de força que facilitaram a intensificação da exploração da força de trabalho (p. 61).

Após a constatação de que os intérpretes revolucionários dos anos 1920 e 1930 apontaram para a maioria dos elementos de análise que seriam retomados nos estudos críticos realizados ao fim da Segunda Guerra, o professor da UFF tratou do debate atual sobre o caráter da extrema-direita global, altura em que abordou a categoria de neofascismo. Para entendê-la, é necessário, por lado, reconhecer que os regimes fascistas da forma como se apresentavam no pós-guerra não mais existem, assim como o contexto em que agora emergem diferentes dimensões do fascismo é consideravelmente diferente. Por outro, afirmar que é possível encontrar hoje importantes pontos de contato com aquele momento histórico dos anos 1920 e 1930, além da validade de se falar em fascismos mesmo após as derrotas de Hitler e Mussolini. A autora que fornece uma boa solução teórica é Andrea Mammone, que sugere o entendimento do neofascismo a partir da sua adaptabilidade, do seu hibridismo e da sua mutabilidade, não obstante mencionar a dimensão de continuidade, na longa duração, entre o fascismo clássico e o contemporâneo (p. 76- 7). Então, do ponto de vista analítico, mais relevante do que listar aquelas mencionadas dimensões do fascismo para tentar verificar se elas são preenchidas ou não por cada situação histórica, é perceber como elas se desdobram, adaptando-se a novas situações ao longo do tempo. Essas características de adaptabilidade, de hibridismo e mutabilidade do fascismo não só viabilizam a categoria de neofascismo, como possibilitam entendê-lo como o fascismo do século XXI, adaptado como tal para chegar aos dias de hoje.

Por essa razão, os neofascismos guardam profundas similitudes com o fascismo histórico, mas também especificidades. O exercício de comparação histórica realizada por Mattos mostra que, em termos de semelhanças, os neofascismos ganham força com a crise social, seja aquela decorrente das políticas econômicas neoliberais no fim da década de 1980, seja ocorrida em escala global no ano de 2008. Se não bastasse, também são marcas do tempo presente as aproximações e os hibridismos entre as direitas conservadoras e os neofascistas. Por fim, a estratégia política por trás da ideologia do “nós” e “eles” (ou os “outros”) é mais um elemento encontrado tanto ontem, quanto hoje. Mas, diferentemente da década de 1920, os neofascismos avançam sem o assombro do fantasma de uma revolução. Outras particularidades são vistas na discussão sobre as relações do neofascismo com a periferia, o nacionalismo e o liberalismo (p. 79).

O primeiro capítulo é encerrado com o início da análise do neofascismo no Brasil, ponto em que o historiador compara as ideologias do passado com as de hoje, e o bolsonarismo com o neofascismo praticado nos EUA e na Europa. Entre os autores citados, Armando Boito Jr. identifica similitudes entre aquele e os fascismos históricos, como: a eleição da esquerda como inimiga, o culto da violência, o caráter destrutivo, o irracionalismo, o nacionalismo autoritário e conservador, a politização do racismo e do machismo, e o desespero dos setores médios como fonte de nascimento do neofascismo. Tratando propriamente do cenário brasileiro, o cientista político da Unicamp enxerga especificidades nas esquerdas a serem exterminadas pelo neofascismo (no caso, aquelas reduzidas ao reformismo), na ausência de ameaça concreta de uma revolução social, e na dispensa de um partido de massas, sendo a internet utilizada na tarefa de mobilização (p. 93-4). Já Michel Löwy vê como pontos de contato entre os neofascismos brasileiro, americano e europeu, a ideologia repressiva, o culto da violência policial, o apelo à pena da morte e ao armamento da população, e a intolerância com as minorias sexuais. Embora liste em maior número as peculiaridades existentes no Brasil, como a pouca ou nenhuma relação direta com os fascismos dos anos 1930 (a maior experiencia nacional foi o integralismo), a não colocação do racismo como principal bandeira, a importância decisiva do tema da corrupção para a vitória no pleito presidencial, a forte presença do ódio à esquerda ou centro-esquerda (secundário na extrema-direita da Europa Ocidental, mas não na do Leste desse continente) e o essencial papel da religião no sucesso eleitoral (p. 95- 6).

A discussão sobre o bolsonarismo é aprofundada na última parte do livro. Antes, o segundo capítulo, “A autocracia burguesa no Brasil”, contém a análise da dinâmica política brasileira da ditadura militar à ascensão eleitoral de Bolsonaro. Essa reflexão privilegia as formas de Estado e a lógica da dominação burguesa no Brasil, a partir da obra de Florestan Fernandes e a sua ênfase no caráter autocrático do Estado Burguês, responsável por uma contrarrevolução permanente e preventiva, ao se colocar antes da ameaça da revolução. Essa é uma particularidade da revolução burguesa na periferia do capitalismo dependente, entendida pelo ex-professor da USP tanto na expansão das relações de produção capitalistas (no caso, a dependência econômica), quanto nas formas políticas do Estado burguês brasileiro. O mesmo autor afirma que na periferia do capitalismo dependente o padrão de dominação é a autocracia e não a democracia burguesa, enquanto a ditadura militar teria desmascarado esses regimes autocráticos, que limitavam sobremaneira a participação dos de baixo. “Fernandes caracterizou a especificidade da revolução burguesa numa periferia capitalista dependente como a brasileira a partir dessa afirmação reacionária da dominação”, complementou Mattos (p.107).

Esse autor assinala que Fernandes debatia o capitalismo dependente no Brasil com base na aplicação não esquemática das reflexões de Marx sobre a acumulação capitalista, associadas às teorias do imperialismo e à ideia de desenvolvimento desigual e combinado. Por essa razão, avista a existência de uma relação entre a autocracia burguesa e as formas assumidas pela acumulação capitalista na periferia dependente. Partindo desse viés não ortodoxo, empreendeu um diálogo com elementos da teoria marxista da dependência, selecionando na obra de Ruy Mauro Marini a ideia da superexploração da força de trabalho, que se refere ao fato de que o capitalismo se desenvolve aqui não apenas tardiamente, mas atrelado a relações de dependência em relação ao imperialismo. Então a única possibilidade de o capitalismo brasileiro se desenvolver seria extraindo uma elevada quantidade de mais valor, para garantir ao mesmo tempo a reprodução do capital internamente e a remuneração do capitalismo central, em um tipo de compensação por suas desvantagens relativas. A compressão salarial abaixo de seu valor compensaria essa expropriação externa (p. 105).

No trabalho de Mattos há o estudo das propostas de autocracia, contrarrevolução e também de “ocidentalização”, de Gramsci, mas com foco na leitura que Carlos Nelson Coutinho empreendeu para o Brasil no fim da ditadura. No parecer desse último, a “modernização conservadora” teria, contraditoriamente, criado as bases para a complexificação da sociedade civil brasileira e, consequentemente, o país teria se ocidentalizado após os anos 1970. Nesse sentido, a perda das bases do consenso (passivo) dos militares à frente do Estado teria criado condições para o ressurgimento de aparelhos da sociedade civil agora hegemonizados por forças antiditatoriais, embora com variadas posições políticas, da esquerda à direita. Em outras palavras, a forma de dominação de classe teria sido construída em torno de um projeto hegemônico das classes dominantes materializado desde a sociedade civil até a sociedade política, em uma interação mais complexa entre essas dimensões (p. 114).

O professor da UFF critica essa reflexão por entender que seria mais correto pensar que depois da ditadura militar ocorreu no Estado brasileiro, formalmente democrático, uma combinação particular entre elementos de construção do consenso e de coerção política. Por um lado, houve bastante investimento nos aparelhos privados de hegemonia – dos tradicionais meios de comunicação às novas organizações não-governamentais (ou organizações da sociedade civil de interesse público) – para construir consensos em torno dos projetos burgueses, desde o fim dos anos 1980. Por outro, foi mantida uma lógica autocrática e contrarrevolucionária, visualizada na aplicação dos mecanismos coercitivos, no uso da força e da violência de Estado (por exemplo, nas favelas cariocas). O historiador ressalva ainda que havia fortes elementos ocidentalizantes na dominação de classe muito antes de 1964, conforme comprovam pesquisas de referência sobre a História do Brasil, desenvolvidas por Sonia Mendonça e René Dreifuss (p. 114-5, 118-20).

As três referências anteriormente discutidas são articuladas por Mattos em sua interpretação do processo político brasileiro mais recente. Além do golpe de 2016, atenção especial foi dada aos limites e à dinâmica política dos regimes de conciliação de classe como proposta de gestão da dominação de classe, que caracterizam a experiência do Partido dos Trabalhadores à frente do governo federal. As Jornadas de Junho de 2013 são um marco explicativo, porque nelas a classe trabalhadora apresentou uma pauta progressiva, baseada nos direitos sociais, ao mesmo tempo que esse grande movimento foi disputado pela direita, cujas formas organizadas perceberam a importância das ruas, e as ocuparam, assim como as da extrema-direita. Esse evento foi fundamental para a percepção pela burguesia de que os governos petistas não conseguiam mais manter o controle sobre a classe trabalhadora. Já o aumento da crise econômica a partir do ano seguinte levou as classes dominantes a exigirem uma política de austeridade orçamentária e de radical retirada de direitos da classe trabalhadora, em uma velocidade e profundidade que não poderiam ser contempladas por Dilma Rousseff, considerando o próprio vínculo de origem de seu partido com as lutas da classe trabalhadora – embora a sua estratégia de superação da ordem capitalista privilegie as reformas no interior da institucionalidade capitalista, por meio da prioridade política ao braço eleitoral, conforme lembra o autor (p. 136). A sua deposição, caracterizada como o primeiro ato de um golpe de Estado de novo tipo (sendo o segundo a prisão de Lula), foi efetivada “via manobras parlamentares, sustentadas por medidas judiciais e ampla difusão na grande mídia dos protestos de rua organizados pelos aparelhos da ultradireita na sociedade civil” (p. 162). Mas a intensificação das greves, as ocupações de escolas e universidades, o “tsunami” da Educação e a reorganização do movimento feminista mostram que várias sementes de junho germinaram.

Pode-se dizer que os subcapítulos “O século XXI e os governos PT” e “de 2013 a 2018” são uma especial contribuição para o entendimento da História do Brasil recente. Mattos domina a bibliografia crítica sobre o citado partido, e privilegia a ideia de “transformismo” (também de Gramsci) na análise de sua trajetória, trabalhada por Eurelino Coelho e Felipe Demier. Avaliando as suas dimensões de classe, o professor da UFF nomeia o PT como um representante dos interesses do grande capital em geral, verificando as doações de campanha e a composição do primeiro escalão dos governos, assim como a dos conselhos que elaboravam políticas públicas (p. 134). O historiador pesquisa esse processo pelo ponto de vista da classe trabalhadora, e ressalta: a retirada de direitos do trabalho; o controle do Estado sobre os sindicatos; as políticas sociais aplicadas de forma focalizada (com programas conectados ao grande capital); a recuperação do salário mínimo apenas aos patamares dos anos 1980, quando esses estavam no nível mais baixo desde a década de 1950; a diminuição do desemprego, porém, baseada no preenchimento de postos precarizados e com baixa remuneração; a diminuição da diferença de renda entre os que recebem salário, mas com concentração de riqueza pelo capital; e a violência policial para manter a ordem e neutralizar o protesto popular (p. 136-146).

Esse enfraquecido projeto político não retomou o poder em 2018. A ascensão eleitoral do deputado federal oriundo do baixo clero da política brasileira e o seu primeiro ano de governo são analisados no terceiro capítulo. A primeira dimensão do bolsonarismo enfocada pelo autor é a da ideologia, que mistura: a defesa da ditadura e de suas dimensões de terrorismo de Estado; a busca de uma “teoria” neofascista, com base em Olavo de Carvalho e sua tradução vulgarizada de variadas doutrinas da ultradireita dos EUA, que redundam principalmente no anticomunismo e no combate à “ideologia de gênero”; a LGBTfobia; a influência de elementos da “teologia da liberdade”; o armamentismo e a “justiça privada” pelos “cidadãos de bem”; e o discurso anticorrupção (p. 168-82).

Essas ideologias mobilizadoras são forjadas pelo movimento social e pelas organizações políticas, que correspondem à segunda dimensão neofascista verificada no governo Bolsonaro. Mattos se debruça sobre as mobilizações de massa convocadas pelas organizações da “nova direita”, que, apesar dessa nomenclatura, tem as suas raízes históricas fincadas na redemocratização dos anos 1980, segundo o historiador Gilberto Calil. Essas passeatas que legitimaram o golpe de 2016 tinham como pauta o “combate à corrupção” nos governos petistas, mas também o chamado à intervenção militar. O perfil desses manifestantes guarda relação com o dos eleitores e eleitoras de Bolsonaro, com base social nos setores médios, mas com ramificações entre os trabalhadores mais pobres. Outro componente essencial desse neofascismo é a prática das fake news da extrema-direita nas redes virtuais. Por fim, vale observar que, embora Bolsonaro não tenha precisado de um partido fascista clássico para se eleger, uma organização partidária com esse perfil lhe seria muito útil, e não à toa a sua família tenta legalizar o Aliança pelo Brasil, até agora sem sucesso (p. 181-204).

Bolsonaro se habilitou como líder desse movimento social bem-sucedido a ponto de ter alcançado o governo, gerando políticas. Aqui o capítulo adentra a terceira dimensão investigada, em que é evidente a força do núcleo militar do primeiro ao quarto escalões governamentais. A ele se soma o núcleo dito “ideológico”, influenciado por Olavo de Carvalho e pelo fundamentalismo evangélico. O último núcleo é constituído pelos economistas neoliberais comandados pelo Paulo Guedes. Vale acrescentar a esses três a chancela do ex-juiz Sérgio Moro, que ocupou o Ministério da Justiça. Trata-se de um governo sustentado pela grande burguesia, “que se foca na transferência de fundo público para a órbita do lucro privado e na redução do custo dos salários via elevação brutal da (super)exploração da força de trabalho, secundarizando todo o resto” (p. 205). Se não bastasse, a política neoliberal é articulada a uma “combinação da ideologia obscurantista neofascista com políticas concretas de restrição e ataques a direitos democráticos e sociais (p. 214). Se a radicalização autocrática do governo é vista tanto na militarização, quanto na forma de governar do presidente (p. 210), a relação com as tropas de ataque típicas do fascismo clássico é vista no forte apoio de policiais militares e das forças de milicianos a eles ligados (p. 228).

Após a análise das dimensões do governo Bolsonaro, a parte da conclusão da obra traz o pensamento de que ele “representa um momento em que a autocracia burguesa recorre ao neofascismo para garantir a contrarrevolução preventiva” (p. 236). O autor recomenda pensar os regimes políticos nas formas híbridas e em suas complexas e dinâmicas combinações. Assim, embora o regime brasileiro se apresente como predominantemente democrático-burguês, ele já contém elementos da face autoritária (militarizada) e até fascista. Para enfrentar a ameaça da eliminação das organizações da classe trabalhadora e do pensamento crítico, o historiador sugere uma frente única, reunindo as diferentes representações políticas, sindicais e de movimentos sociais dos trabalhadores (p. 242). Além disso, lembra a importância de construir uma alternativa à esquerda que supere a lógica da conciliação de classes, dada a incapacidade do PT de oferecer respostas à altura da movimentação das representações políticas das classes dominantes em torno de Bolsonaro (p. 244).

Essa ainda não é a reflexão final do livro, que traz um epílogo sobre o quadro atual. O autor demonstra que a atuação de Bolsonaro (e de seus apoiadores) diante da crise sanitária – no sentido da sabotagem ao enfrentamento da epidemia de Covid 19 e no do incentivo à retomada da atividade econômica, em prejuízo à saúde dos trabalhadores – o isola mundialmente na posição neofascista mais radical. Outra observação do historiador é a de que, além do apoio de suas bases sociais e do suporte dos militares, há o respaldo das mais variadas frações burguesas. Enquanto a grande mídia critica e se opõe ao seu radicalismo, tentando controlá-lo, existe um consenso entre elas no que diz respeito à aplicação da nova rodada de retirada de direitos, elevando incrivelmente o patamar da superexploração (p.256-7). No entanto, as dimensões inéditas dessa crise podem levar a giros relativamente rápidos.

A obra aqui resenhada contribui bastante dentro da lógica do conhecer para combater. O esforço de qualificar o uso do termo fascismo, banalizado nas disputas sociais, contribui para o entendimento da natureza das formas da dominação burguesa em uma sociedade capitalista periférica e dependente como é a brasileira. O uso preciso dessa categoria de análise pode ser útil para entender situações históricas concretas em que o fascismo emerge. Além de avançar sobre esse debate teórico, com utilização de bibliografia crítica internacional e de alto nível, outra qualidade do livro é a realização de uma síntese histórica de longa duração sobre as formas de Estado e da dominação burguesa no país, prática essa cada vez mais abandonada pelos historiadores. Não seria demasiado pedir-lhes a elaboração de ainda mais análises do tempo presente, aproveitando-se dos métodos e técnicas próprios de seu ofício para contribuir a esse debate no Brasil – do qual o trabalho de Marcelo Badaró Mattos é exemplar.

Nota

2 MATTOS, Marcelo Badaró. Novos e Velhos Sindicalismos no Rio de Janeiro (1955/1988). Rio de Janeiro: Vício de leitura, 1998.


Resenhista

Romulo Costa Mattos – Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense e professor do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.


Referências desta Resenha

MATTOS, Marcelo Badaró. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil. São Paulo: Usina Editorial, 2020. Resenha de: MATTOS, Romulo Costa. Neofascismo no Planalto: o governo Bolsonaro e a dominação burguesa no Brasil. História & Luta de Classes, ano 16, v.31, p.120-127, mar.2021. Acessar publicação original [DR]

 

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.