Guerrilha do Araguaia 50 anos: direito à memória e à verdade – desafios para a pesquisa e o ensino | Escritas do Tempo | 2022

Caso Gomes Lund e outros Guerrilha do Araguaia versus Brasil Imagem Reu Brasil
Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) versus Brasil | Imagem: Réu Brasil

O presente dossiê sobre os 50 anos da Guerrilha do Araguaia (1972-1975), além de buscar trabalhar detidamente sobre o evento da epopeia guerrilheira e os seus desdobramentos no ano de seu quinquagenário, também visa trazer à lume outras questões que tangenciam o tema e procuram fazer o trabalho de denúncia contínua sobre os arbítrios do período da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985). Para endosso dessa presente organização compreendemos que toda a produção discursiva que almeje o exercício de revelação do período do torcionário ditatorial são extremamente bemvindas, pois além de produzir a reverberação dos fatos ainda estabelecem a luta constante pela memória, verdade, reparação e justiça.

Nesse sentido, entendemos que o advento da Guerrilha do Araguaia não foi uma epopeia de luta isolada, mas parte constitutiva e atuante das inúmeras batalhas que a sociedade brasileira empenhou para romper os obstáculos do terror de Estado imposto a partir de 1964. Essas batalhas realizadas tanto pela sociedade civil, em seus vários arranjos, assim como pelas organizações políticas, foram o somatório da força desses inúmeros agentes que lutaram contra a ditadura desde a eclosão do Golpe e que, até o presente momento, não se cansam de lutar pela verdade. Tendo em vista as repetidas tentativas de reescrita da história e malsucedidas guerras de narrativas.

No que tange à Guerrilha do Araguaia constatamos vozes uníssonas que potencializam essas denúncias, mas que, infelizmente, muitas vezes possuem apenas o registro da oralidade como testemunho, ficando ainda muito carente do amparo jurídico e de outras representações legais para a busca efetiva pelas reparações requeridas junto ao Estado brasileiro. No entanto, mesmo com dificuldades, essa forte oralidade se reproduz em inúmeras searas que não se cansam de revelar o que ocorreu nesse Brasil profundo entre o Norte e o Nordeste, pois felizmente há mediadores que afluem ao encontro dessa oralidade para contar o ocorrido e, assim, potencializar esse fato político por meio da literatura, da história, da música, da poesia e do cinema. Isso posto, por mais que a corporação militar tenha pretendido sentenciar o ocorrido com um silêncio petrificado, como se nada tivesse ocorrido na região, essa multiplicidade vocal produziu uma reverberação que não deixou o Araguaia desamparado e sem história.

Justamente é dessa multiplicidade vocal, da força dos seus agentes sociais e políticos, bem como das diversas áreas do conhecimento que produzimos esse dossiê e, logo, intencionamos colocar no mapa a Guerrilha do Araguaia. Nessa mirada, precisamos ratificar que o arbítrio ditatorial não se esgotou naquele período, haja vista é presente nas dores e nos relatos dos moradores da região – sendo reproduzidos magistralmente em inúmeras obras. Deste modo, temos a pretensão de dialogar com o conjunto dessas obras com aporte e searas diferentes, mas que constroem um mosaico extremamente pujante sobre o ocorrido há 50 anos. Ou seja, obras seminais enfatizam agruras que se mantiveram perenes nesses anos todos, visto que não houve de fato uma efetiva Justiça de Transição no Brasil, capaz de resgatar as dores e os traumas da população campesina do Araguaia.

A fim de buscar esse diálogo profícuo começamos com o trabalho de César Alessandro Sagrillo Figueiredo com o texto, Os 50 anos da Guerrilha do Araguaia e os reflexos da luta política. Nesse texto, precisamente, o autor pretende fazer um balanço desses 50 anos, periodizando com rigor o fato ocorrido e trazendo dados recentes, visando enfocar no atual momento a luta por verdade e justiça, enfatizando a luta das famílias pela localização dos corpos dos guerrilheiros. Ou seja, evidencia que o fenômeno político do desaparecimento forçado dos guerrilheiros do Araguaia é uma das maiores chagas herdadas da ditadura civil-militar.

O segundo texto continua com esse mesmo debate através da autoria de Jacielle Silva Santos e Francisca Verônica Feitosa Andrade com o texto, O estatuto do sujeito diante do acontecimento: análise do romance “K. relato de uma busca”. No artigo, as autoras visam analisar o corpus do livro K, de autoria de Bernardo Kuciscki, o qual se debruçou sobre o desaparecimento político de sua irmã Ana Rosa durante o período ditatorial, enfocando a busca do seu pai para encontrar pistas sobre o que havia ocorrido. Por meio de aporte semiótico de Zilberberg, objetiva identificar quais sentimentos são emergidos e intensificados durante a procura de um pai por algum fragmento de uma filha que fora aniquilada por um Estado ditatorial.

Dando continuidade ao Dossiê, temos o texto de Luiza Helena Oliveira da Silva, Um herói da guerrilha pelas lentes de JJ Leandro, visando trabalhar com o escritor José Leandro Bezerra Junior, que assinava JJ Leandro em suas produções. O escritor nascido no Maranhão foi partícipe ocular do que ocorreu no Sudeste do Pará, pois vivendo em Araguaína tornou-se testemunha da passagem dos militares pela sua cidade quando do momento de caçada dos guerrilheiros comunistas. A partir dos contos de JJ Leandro, a autora mobiliza as categorias da semiótica discursiva para dialogar acerca da figura do Osvaldão e da Dina do Araguaia, especificamente como os mesmos foram transformados em mitos na região.

Buscando a intertextualidade entre poema/canção e a história, temos o artigo de Cristian Xavier Lopez e Jacielle Silva Santos, O cultivo da memória sobre a Guerrilha do Araguaia – diálogos interartísticos. O texto propõe a analisar o poema/canção “Serra das andorinhas” (2019), letra de Bertin di Carmelita e música de Charles do Arraia. Nessa obra, os autores fazem uma reflexão sobre um fato histórico da Guerrilha do Araguaia (1972/1975) sob um ponto de vista local e por meio da junção de diferentes ramos do saber, desde a perspectiva interartística, convidam o leitor a pensar sobre a importância do cultivo da memória.

A autora Maria Nazaré Rodrigues Oliveira Dornellas amplia as reflexões e constrói um exercício pensando como foi a repressão ditatorial no Norte do Brasil, detidamente no Acre por meio do artigo, A arte de Danilo de S’Acre: “montagem” e “desmontagem” da história e de um tempo sombrio. Evidencia com seu texto que durante a Ditadura civil-militar os atos perpetrados em termos de repressão podem não ter recaído diretamente em solo acreano, mas ratifica que toda a Amazônia caiu nas mãos dos projetos colonizadores pela política desenvolvimentista. Para tanto, potencializa em seu artigo algumas reflexões à luz das imagens de Danilo de S’Acre e apresenta o artista com as obras de contestação e de provocações. Além disso, combate visões de que a repressão e seu aparato ficaram restritas ao eixo sul-sudeste.

Ainda dentro das análises presentes no dossiê temático, Moisés Pereira Silva, Marcos Edilson de Araújo Clemente e Jôyara Maria Silva de Oliveira no trabalho A Guerrilha do Araguaia e a memória como direito na Educação Básica, socializam experiência de pesquisa e de docência, em crítica ao currículo em relação aos povos do campo para propor a memória como possibilidade de ressignificação do ensino de História. Utilizando o documento Direito à Memória e à Verdade, elaborado pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (BRASIL, 2007), os autores discutiram a garantia da memória no ensino de História como forma de reparação da violência.

Fechando a edição, também, possuímos dois artigos livres que não se detém sobre o período ditatorial, mas que trazem importantes categorias de análise. Nesse segmento, temos o texto de Clodoaldo da Luz com o título, Catolicismo, ateísmo, conservadorismo e comunismo: uma análise do paradoxo entre D. Geraldo de Proença Sigaud e Eugênio de Proença Sigaud, com objetivo de analisar o paradoxo existente entre a concepção comunista ateia e a doutrina católica no período de 1947 a 1961, sob as orientações da micro-história e da história das religiões através da vida e da obra dos irmãos Proença Sigaud.

Findando, temos o artigo de José dos Santos Costa Júnior, Evaristo de Moraes e a criminalidade infanto-juvenil: das impressões às proposições (Brasil, 1910-1920), o qual parte de um estudo sobre a emergência do conceito-imagem do menor infrator na sociedade brasileira no contexto da Primeira República como efeito do dispositivo da menoridade, isto é, a rede que articulou discursos, instituições, profissões e leis para constituir imagética e conceitualmente o menor como um problema social. Para isso, o autor dialoga com o livro “Criminalidade da infância e da adolescência”, do advogado Evaristo de Moraes (1871-1939), mobilizando as ferramentas teórico-metodológicas da análise do discurso de Michel Foucault, tensionando-se as noções de “obra” e “autor” como unidades discursivas.

Nesta edição, e seguindo a sua linha editorial, a Escritas do Tempo conta com a tradução do artigo de Willem de Blécourt, originalmente publicado na Gender & History, intitulado The making of the female witch: Reflections on witchcraft and gender in the early modern period 4. Traduzido pelo professor Marcus Vinicius Reis e pela professora Heloisa Melo da Silva, o artigo saiu com o título de A construção da Bruxa: reflexões sobre bruxaria e gênero na Primeira Modernidade –, tratando-se de uma discussão interessada em teorizar sobre a formação da bruxa e do fenômeno e caça às bruxas no período citado.

Conforme exposto, não pretendemos dar um fecho definitivo acerca das questões do Araguaia com esse dossiê, muito pelo contrário, haja vista que a Guerrilha sempre apresenta novas versões, personagens e, sobretudo, novos testemunhos de vítimas dispostos a revelar o que aconteceu e as suas agruras. Nessa perspectiva, puxando para as questões históricas, os encaixes das memórias e dos silenciamentos forçados podemos dialogar perfeitamente com Michel Pollak5 em Memória, esquecimento e Silêncio, quando o autor enfatiza que:

[…] o longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo tempo, ela transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas redes familiares e de amizades, esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e ideológicas. (POLLAK, 1989, p. 5)

Concluindo, esses 50 anos da Guerrilha do Araguaia produziram muitas lembranças e sobretudo resistências, que ouvidos atentos e escritas solidárias estão dispostos a relatar por meio da revista Escritas do Tempo, como se fosse uma colaboração para a história por meio de fragmentos e reconstrução de um passado que teima a aflorar. Podemos dizer que são memórias para armar, com encaixes múltiplos de acordo com as reminiscências das várias personagens e com os relatos escritos de múltiplos autores; embora havendo várias mãos nesse mosaico da escrita, asseveramos haver sempre o total respeito para com a vítimas e fundamentalmente o compromisso inquebrantável pela verdade como ofício principal: Para que não se esqueça e para que nunca mais aconteça!

Sempre conjugando o verbo esperançar.

Marabá, setembro de 2022.

Notas

4 DE BLÉCOURT, Willem. The making of the female witch: Reflections on witchcraft and gender in the early modern period. Gender & History, v. 12, n. 2, p. 287-309, 2000.

5 POLLAK. Michel. Memória, esquecimento, silêncio. In.: Estudos Históricos. v. 2, n. 3, Rio de Janeiro, Vértice, p. 3-15, 1989.


Organizadores

Ary Albuquerque Cavalcanti Júnior – Doutorado em História pela Universidade Federal da Grande Dourados. Docente do Magistério Superior da Universidade Federal de Mato Grosso. https://orcid.org/0000-0001-7918-1892

César Alessandro Sagrillo Figueiredo – Doutorado em Programa de Pós-graduação em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Docente em Ciência Política no Curso de Licenciatura em Ciências Sociais da Universidade Federal do Norte do Tocantins. https://orcid.org/0000-0002-6011-9527

Janailson Macêdo Luiz – Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Mestrado em História pela Universidade Federal de Campina Grande. Professor do Magistério Superior – História da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. https://orcid.org/0000-0003-3879-4240


Referências desta apresentação

CAVALCANTI JÚNIOR, Ary Albuquerque; FIGUEIREDO, César Alessandro Sagrillo; LUIZ, Janailson Macêdo. Apresentação. Escritas do Tempo, v. 4, n. 11, p. 3-7, maio/ago. 2022. Acessar publicação original [DR]

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