Hagiografia & História: reflexões sobre a Igreja e o fenômeno da santidade na Idade Média Central | Andréia Cristina Lopes Frazaão da Silva

Desde o final do século XX, o estudo das hagiografias sofreu uma renovação, sendo considerado como fonte para pesquisas que tratam de temas diversos. Nesse sentido, Hagiografia & História: reflexões sobre a Igreja e o fenômeno da santidade na Idade Média Central, organizado por Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva, reúne artigos de participantes da pesquisa coletiva Hagiografia e História: um estudo comparativo da santidade e vem ao encontro desta renovação. Os artigos apresentados a seguir, apesar de versarem sobre temas diversos, serão reunidos, se possível, segundo uma aproximação temática.

O primeiro artigo, “Perpétua, o diabo e o caminho para a salvação” (p. 15-23) , de Alinde G. Kühner, graduanda em História pela UFRJ e o décimo oitavo artigo, “O diabo na Vida de Sán Millán de la Cogolla: reflexões sobre a demonologia na Península Ibérica do século XIII” (p. 289 – 301), de Vanessa Monique Menduiña Rodrigues, bacharel e licenciada em História pela UFRJ, apresentam reflexões sobre o diabo e o Mal na sociedade medieval. No primeiro artigo, a presença do diabo relaciona-se ao alcance da salvação. Aqui a autora usa duas versões do martírio de Perpétua e seus companheiros, apontando como diferença essencial entre elas o nível de arduidade do alcance da salvação. Tal diferença seria explicada pela representação do Diabo, que modificou-se no espaço de tempo que separa a redação de ambas. No décimo oitavo artigo há uma análise das representações do diabo, a partir do estudo da Vida de San Millán de la Cogolla (VSM), de Gonzalo de Berceo. Faz-se um inventário das ações e dos adjetivos vinculados à figura em questão, identificando-se características que constroem a representação do Mal.

O segundo artigo, de Ana Paula S. Caldeira, Mestre em História Social pela UFRJ, e cujo título é “A formação intelectual no século XIII: desdobramentos do projeto Hagiografia e História” (p. 25-36) objetiva, primeiramente, mostrar como se deu a organização de um banco de dados dos santos da Península Itálica e explica o processo de estruturação deste projeto. Nesse sentido, sua constituição foi útil para que se compreendesse a organização eclesiástica e a religiosidade das sociedades da época. O segundo objetivo é tratar do tema de formação intelectual no século XIII, vinculado-o às ordens religiosas. A autora ocupou-se, para tal estudo, do teólogo Boaventura de Bagnorea, cuja obra foi influenciada pelas situações conflituosas em que se viu inserido devido ao seu pertencimento simultâneo à ordem religiosa e à instituição acadêmica.

O terceiro artigo, intitulado “Elias no meio das trevas: os primeiros anos sem Frei Francisco” (p. 37-46), de Anderson dos Santos Moura, bacharel e licenciado em História pela UFRJ e membro do Conselho Editorial da FFB, procura analisar a disputa entre os frades leigos e sacerdotes da Ordem dos Menores no século XIII, tendo como fonte a biografia de Frei Elias de Assis / Cortona. Trata-se de uma figura relevante nos primeiros momentos de existência do movimento franciscano e que sempre foi retratada negativamente, pois grande parte dos escritos a seu respeito foi feita por seus adversários. Após as análises, o autor do artigo concluiu que Elias não fundou um partido de leigos, mas, na verdade, participava de um grupo de leigos e frades que almejavam não sucumbir às inovações, mantendo os antigos ideais da Ordem.

Em seguida, podem ser reunidos dois artigos que analisam a questão do gênero relacionada à santidade. O quarto artigo, “Reflexões sobre santidade, gênero e sexualidade nos textos berceanos” (p. 45-60), da Professora Dra. Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva, docente do Programa de Pós-Graduação em História Comparada e do Departamento de História da UFRJ, e o sexto artigo, “Santidade e gênero: Vauchez e o modelo masculino” (p. 81-90), de Carolina Coelho Fortes, doutoranda em História na UFF e docente do Departamento de História da Universidade Gama Filho. O primeiro citado visa a uma análise das hagiografias de Gonzalo de Berceo, investigando “como o gênero se faz presente na significação da santidade feminina e masculina”. Assim, a autora combinou análises lexicográficas e retóricas para o estudo de duas hagiografias: a Vida de Santo Domingo de Silos e a Vida de Santa Oria; para tal, selecionou as palavras deseo, placer, gozo, casto, castidad, virginidad, virgen, fornicio, do castelhano do século XIII, que possibilitassem a discussão de como os textos moldam a sexualidade. Finalmente, a autora conclui que os textos de Berceo apresentam as particularidades do processo de santificação das mulheres quanto ao dos homens, legitimando o controle masculino sobre o feminino. No segundo artigo citado neste parágrafo, analisa-se o modelo de santidade do historiador André Vauchez, segundo uma perspectiva de gênero. Esta análise objetiva revelar que tal modelo não pode ser visto como uniforme. Assim, a autora pretende adequar tal modelo à santidade feminina. Concluindo, reafirma-se a necessidade de se propor uma crítica a tal modelo, que não considera as peculiaridades femininas concernentes a sua santidade, o que revela que ele reproduz uma “história social que vê as mulheres como um complemento”.

O quinto artigo, “A espada, a lança e a cruz: reflexões acerca da presença da militia na Legenda Áurea através das vidas de São Jorge e São Mercúrio” (p. 61-79), foi escrito por Bruno G. Álvaro, mestrando no Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ. Neste artigo, propõem-se reflexões, ainda não concludentes, relativas aos aspectos militares percebidos na vida de tais santos, a partir das respectivas hagiografias presentes na Legenda Áurea. Percebendo a existência de elementos que remetem ao militarismo, o autor afirma que estes elementos, na LA, são explicáveis visto que à época, a Cavalaria era uma “instituição”.

O sétimo artigo, “O fundador da Fraternitas Franciscana despoja-se das vestes: reflexões críticas a partir da Legenda Maior” (p. 91-108), foi composto por Elisabeth da Silva dos Passos, Mestre em História Comparada pela UFRJ. Neste artigo, cujo foco são os dois últimos anos de vida de Francisco de Assis, narrados pela Legenda Maior, pretende-se verificar que significação o hagiógrafo Boaventura atribuiu ao ato de despojamento das vestes pelo fundador da Fraternidade Franciscana. Assim, analisando o processo de monasticização da Fraternidade Franciscana, os múltiplos pertencimentos de Boaventura e a Legenda Maior, a autora conclui que o evento apresenta-se diferenciado de outras hagiografias devido às peculiaridades de sua formação e às suas escolhas do religioso ao retratar um episódio, em um dado momento e com uma finalidade.

O oitavo artigo, “Reflexões sobre a transmissão e a natureza da Vida de Santa Maria Egipcíaca” (p. 109-125), foi elaborado por Fabrícia A. T. de Carvalho, professora substituta do Departamento de História da UFRJ. Aqui, a autora se propõe a responder a questões surgidas quando da investigação da Vida de Santa Maria Egipcíaca (SME), analisando as características da sua divulgação. Inicialmente, há um relato sobre a transmissão manuscrita desta legenda e do seu contexto de produção. Em seguida, inicia-se um questionamento sobre o caráter hagiográfico da SME e conclui-se que, de fato, trata-se de uma hagiografia que relata uma história pertencente a uma “longa tradição hagiográfica”.

O nono artigo, de Jefferson Eduardo dos Santos Machado, Mestre em História Comparada pela UFRJ, intitula-se “Jesus Cristo hoje é vendido por comerciantes…:uma leitura franciscana dos cânones do Lateranense IV” (p. 127-141). Aqui, apresentam-se algumas conclusões da análise de Sermões, de Antônio de Pádua / Lisboa, sob a ótica do IV Concílio de Latrão. O autor objetiva analisar a construção do “religioso ideal” presente no discurso de Antônio de Pádua / Lisboa, a partir da teoria da análise do discurso de Eni P. Orlandi. Segundo o autor, pode-se perceber nesta obra idéias presentes nos cânones, que delineavam o principio religioso da época, e que constituíam o discurso corrente.

O décimo artigo, “Gonzalo de Berceo e o pecado: reflexões sobre a presença dos dez mandamentos na Vida de Santo Domingo de Silos” (p. 143-149), é de autoria de Juliana Ribeiro Bomfim, bacharel e licenciada em História pela UFRJ, que se propõe a analisar a tradição dos “dez mandamentos” na construção das idéias de “pecado” na Península Ibérica medieval, a partir da Vida de Santo Domingo de Silos (VSD), de Gonzalo de Berceo. Tendo em vista que os Dez Mandamentos constituem uma lista de pecados presente no texto bíblico, eles são mencionados frequentemente na obra de Berceo, exemplificando as formas de pecados. Assim, como naquele contexto a questão do pecado e de sua remissão mereceram atenção da Igreja, com sua obra, Berceo participou da difusão destas idéias entre leigos e religiosos que não tinham fácil acesso aos textos canônicos.

O décimo primeiro artigo, de Karina Murtha, bacharel e licenciada em História pela UFRJ, intitula-se “Ensaios de História ‘Desmundo’…Reflexões acerca da relação intertextual entre os discursos literário e histórico” (p.151-196). A autora nos apresenta um artigo bastante irreverente, em que pretende relacionar os discursos literário e histórico, analisando um romance contemporâneo de fundo histórico. Esta análise foi feita, considerando tal romance como fonte histórica em moldes hagiográficos. A autora sustenta que este tipo de texto também pode ser estudado como fonte histórica, já que “assim como o discurso histórico, trata-se de uma reconstrução ideal do passado”.

O décimo segundo artigo, “Tempo da Igreja? Jacques Le Goff e a representação eclesiástica do tempo na Idade Média” (p. 197-215), foi redigido por Leandro Duarte Rust, doutorando em História na UFF. Apresentam-se reflexões concernentes às representações clericais do tempo, a partir dos estudos de Jacques Le Goff. O autor faz uma breve apresentação de alguns artigos de tal historiador, que tratam das representações medievais do tempo, indicando, em seguida, suas novas reflexões, que tratam da reformulação da “temporalidade eclesiástica medieval”, que abrangeu novos aspectos, tornando o tempo religioso “suscetível ao controle” do homem e desvinculando-o de sua concepção de “bem divino”. Em sua conclusão, afirma-se que o postulado de Le Goff revelou uma possibilidade de se admitir diferentes representações temporais eclesiásticas.

O décimo terceiro artigo cujo título é “Indivíduo e consentimento nas Decretais Inocencianas sobre o matrimônio no início do século XIII” (p. 217-235), foi escrito por Marcelo P. Lima, doutorando em História pela UFF. Neste artigo, pretende-se investigar se a questão do consenso matrimonial, revelado explicitamente nas cartas papais, seria uma mostra de individualismo dentro de uma sociedade medieval, cujas relações revelavam um homem inserido no coletivismo moldado pela religião. Em seguida, analisa-se o discurso jurídico nas decretais, a fim de observar a existência de indícios de individualismo nas correspondências oficiais do papado. Finalmente, aponta-se que, neste contexto, era percebida a vontade do casal, na ordem estabelecida pelo papado, mas somente porque se tinha a idéia de “permissão, de licença, algo concedido por uma instância de saber e poder”.

O décimo quarto artigo, “A virgindade segundo Ambrósio de Milão e Clara de Assis – um estudo comparativo” (p. 237-245), de Maria Valdiza R. Soares, Mestre em História Comparada pela UFRJ, visa a comparar a concepção de virgindade apresentada pelos dois personagens citados no título. Inicialmente, desenha-se um panorama do que representava a virgindade; primeiramente, uma diferenciação entre cristãos e pagãos, um valor fundamental de formação de uma nova sociedade; posteriormente, sendo reconhecida legalmente a religião cristã, a sexualidade vinculou-se à vida religiosa e moral. Em seguida, concluindo, indicam-se as diferenças de representações da virgindade para Ambrósio e Clara de Assis; respectivamente: um dom divino e uma escolha pessoal, algo que ultrapassaria os limites do mundo material.

O décimo quinto artigo, “Jacopo de Varazze e a Legenda Áurea: relações entre contexto e produção” (p. 247-266), é de Priscila G. Falci, Mestre em História Comparada pela UFRJ. Pretende-se investigar as relações entre construções de gênero e de santidade a partir das vitae de Santo Ambrósio e a de Santa Eugênia, na Legenda Áurea. A autora visa a analisar de que maneira os elementos extra-textuais influenciaram as escolhas teóricas do compilador da LA e a estruturação desta. Sabendo que a intenção do autor ao compilar a obra foi a instrução e a conversão, pode-se perceber que as peculiaridades de cada vita que a compõe favorecem esse caráter didático. O hagiógrafo reforça a idéia de que qualquer pessoa poderia seguir o ideal de vida cristão, entretanto ficam visíveis as diferenças nas construções de santidade de Santo Ambrósio e de Santa Eugênia, pautadas em gênero.

O décimo sexto artigo, de Thiago de Azevedo Porto, Mestre em História Comparada pela UFRJ, intitula-se “Domingo de Silos e a trasladação de São Vicente e suas irmãs: uma análise sobre o papel do corpo e das relíquias no culto aos santos” (p. 267-276). Aqui, o autor pretende apresentar reflexões a respeito dos usos do corpo e das relíquias no culto aos santos, analisando um capítulo de Vita Dominici Siliensis, e investigando por que estes objetos de veneração destacaram-se no fenômeno da santidade, próprio do medievo. A partir da análise empreendida neste artigo, afirma-se que os restos mortais e as relíquias de santos teriam sido trasladados por motivos relacionados aos valores e significados atribuídos pela sociedade medieval ao corpo e às relíquias, revelando que estes elementos são essenciais para que se compreenda o fenômeno da santidade no referido período.

O décimo sétimo artigo, “A mãe como modelo de espiritualidade: discutindo o papel da maternidade nos escritos de Tomás de Celano” (p. 277-286), é de Valéria Fernandes da Silva, doutoranda em História na UNB e docente da Faculdade Teológica Batista de Brasília. Aqui, analisam-se as representações femininas presentes na Idade Média, especialmente, o modelo de mãe, nas hagiografias de Tomás de Celano. Com o movimento franciscano, a figura da mulher-mãe passa por um processo de valorização e, nos textos de Celano, a figura materna não é somente ligada à mulher, mas à própria Ordem Franciscana, à Igreja e, inclusive, a Francisco. Segundo a autora, este modelo ultrapassa os limites binários de gênero”. Percebe-se, assim, que Celano inaugura novas possibilidades para o estudo do feminino na Idade Média, pois permitiu que mais mulheres se reconhecessem nos exemplos dados, revelando uma maior preocupação da Igreja quanto à sociedade da época.

Finalmente, a partir de uma análise dos dezoito artigos compilados neste volume, pode-se afirmar que este projeto, que se propõe a reunir as mais diversas propostas de estudo de hagiografias revela-se bastante enriquecedor para aqueles que objetivam um estudo ou que apresentam algum interesse no domínio dos estudos medievais em geral e da hagiografia e santidade em particular.


Resenhista

Cristina Deta Cesar de Menezes – Mestranda PPG Letras Neolatinas/UFRJ.


Referências desta Resenha

SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da (Org.) Hagiografia & História: reflexões sobre a Igreja e o fenômeno da santidade na Idade Média Central. Rio de Janeiro: HP Comunicação, 2008. Resenha de: MENEZES, Cristina Deta Cesar de. Revista de História Comparada. Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, 2008. Acessar publicação original [DR]

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