História dos índios / Revista de História / 2006

Este número da Revista de História traz um dossiê de artigos dedicados à “História dos Índios”, temática interdisciplinar por excelência que vem ganhando espaço entre os historiadores no Brasil. Nos últimos tempos, antropólogos, historiadores e arqueólogos têm investido cada vez mais na identificação e análise de fontes arquivísticas, adensando o nosso conhecimento da presença e participação ameríndia na constituição de um Novo Mundo. Não se trata, no entanto, daquele das migrações milenares ou do esplendor precolombiano mas sim do Novo Mundo que nasceu do complexo encontro entre a expansão européia e as transformações indígenas. Do ponto de vista dos ameríndios, esta foi, conforme escreve Pablo Rodríguez em seu estudo, “uma das épocas mais caóticas, cambiantes e dramáticas da história moderna”.

Se é, no plano mais amplo das Américas, uma tendência que vem se aprofundando há décadas, desde o trabalho pioneiro de Charles Gibson, é atual a divulgação de um número cada vez maior de textos escritos por índios ou que, pelo menos, encapsulam narrativas indígenas. Muitas vezes escritos em línguas vernáculas ou traduzidos de depoimentos orais em nahuátl, mixteco, otomi, zapoteco, quéchua, tupi ou em outro idioma indígena, os textos têm sido objetos de análises criativas e inovadoras, as quais requerem um certo grau de especialização. Se, num primeiro momento, a voz indígena era pensada como artefato de um saber milenar e coletivo, as abordagens recentes sublinham não apenas a historicidade da construção das narrativas como também a subjetividade de cada narrador ou escritor indígena, pois afinal de contas as narrativas e os narradores encontravam-se atrelados, em maior ou menor grau, ao contexto colonial que ensejou a produção de grande parte destes documentos.

Os primeiros dois artigos do dossiê colocam em causa o desafio de trabalhar com textos escritos por índios durante o período colonial. Pablo Rodríguez, professor da Universidade Nacional da Colômbia, faz um rico comentário da edição recente de testamentos indígenas redigidos durante o período colonial na Nova Espanha, Chile e Nova Granada, em três publicações independentes. Os testamentos, segundo o autor, permitem compreender “os complexos processos vividos pelas sociedades indígenas sob o domínio espanhol”. Se, por um lado, estes documentos compartilhavam aspectos comuns a todos os testamentos coloniais, enquanto textos que expressavam os últimos desejos incidindo sobre assuntos materiais e espirituais da vida de indivíduos, os testamentos indígenas guardavam uma particularidade, pois também serviam de veículo para a defesa de “direitos antigos”. Rechaçando a tentação de ler nesses documentos apenas a “resistência” dos índios ao domínio dos encomenderos, hacendados ou autoridades coloniais, o autor tem o cuidado de problematizar o modo pelo qual os índios se valeram de instrumentos do mundo jurídico e social da colônia para defender, de maneiras diversificadas e freqüentemente ambíguas, interesses coletivos e individuais. É interessante e revelador o pequeno deslocamento que o autor faz da noção de “aculturação”, termo esse abandonado há muito pelos antropólogos e geralmente mal empregado pelos historiadores: no texto de Rodríguez, ao invés de serem aculturados, os índios “se aculturaram”, assim transferindo o locus (e em certo sentido o logos) da ação histórica para os índios.

O segundo artigo, de Lodewijk Hulsman, pesquisador da Universidade de Amsterdã, apresenta o texto integral das “representações” ou petições apresentadas pela liderança indígena Potiguar Antônio Paraupaba aos Estados Gerais dos Países Baixos na esteira da expulsão dos holandeses do Brasil, publicadas originalmente em Leiden na década de 1650. Alfabetizado em holandês e convertido para o Calvinismo, Paraupaba é um exemplo notável da dimensão Atlântica da história dos índios, onde não apenas idéias e objetos mas também índios de carne-e-osso circulavam. O documento em si é fascinante mas a sua publicação aqui inclui elementos novos e importantes para a pesquisa em história indígena. Conforme mostra o autor, a tradução anterior de Pedro de Souto Maior é incompleta e, em certos aspectos, problemática. Por exemplo, é notável que Souto Maior compromete a compreensão de alguns trechos ao traduzir o termo Brasilianer simplesmente para o genérico “índios”, quando se sabe que os holandeses faziam uma distinção entre os índios de língua tupi-guarani e seus “aliados infernais”, os Tapuyaner ou Tapuias. Ademais, tanto em seu texto principal quanto nas notas detalhadíssimas, o autor fornece um rico contexto para o documento, à luz de trabalhos historiográficos e etnográficos recentes.

Já o terceiro artigo, de Adone Agnolin, professor do Departamento de História da USP, enfoca o “encontro sacramental e ritual” entre missionários jesuíticos e índios Tupi nos espaços coloniais da América Portuguesa durante o século XVI. Se uma grande parte da documentação é conhecida, pois a publicação de cartas jesuíticas remonta ao próprio século XVI, a abordagem do autor lança mão de debates atuais sobre religião, tradução e hibridismo cultural para reenfocar a resposta indígena às iniciativas catequéticas numa luz diferenciada. Ao invés de olhar as diferenças culturais como monolitos opostos e incompatíveis, Adone Agnolin investiga o espaço comum, compartilhado, no qual os “inevitáveis equívocos e mal-entendidos foram sendo ‘ajustados’, na medida em que se construiu um alargamento dos instrumentos conceituais e lingüísticos” necessários para a situação de catequese. A partir desta ótica, os textos jesuíticos – catecismos, vocabulários, autos dramáticos – permitem entrever mais do que as estratégias missionárias, pois codificam também algumas posturas dos índios.

As missões católicas também proporcionam um material importante para o artigo de Marta Rosa Amoroso, professora de Antropologia da USP, que vem estudando cartas, diários, relatórios e outros relatos dos capuchinhos italianos que conduziram uma parte nodal da política indigenista do II Reinado. Transitando entre os sertões e as capitais, entre as missões e os museus etnográficos, o artigo mostra a riqueza da temática indígena no período do Império. Enquanto as autoridades e os cientistas declaravam os ameríndios extintos ou acaboclados em tal grau que não existiam mais enquanto índios, o Império assistiu vários episódios de lideranças indígenas que empreenderam longas viagens dos sertões às cidades, buscando garantir os seus direitos e afirmar as suas identidades. Deste modo, ao passo que se acelerava a objetificação dos índios através do colecionismo, da etnografia e das exposições universais, Marta Amoroso mostra um outro lado desta história. Aparece não apenas a persistência dos índios, no mais das vezes elidida na historiografia referente ao Império, como também é possível enxergar as posturas adotadas por grupos e indivíduos face às políticas enfeixadas no binômio “catequese e civilização”. Lançando mão da idéia do “arcaísmo” projetado sobre os índios enquanto coletividades amorfas e destemporalizadas, a autora sublinha, de maneira provocadora, o quanto este projeto foi subvertido por atores nativos que buscavam, nas palavras da autora, “negociar a modernidade em seus próprios termos”.

O artigo que completa este dossiê é assinado por Susana Matos Viegas, antropóloga portuguesa do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, que refez radicalmente, 500 anos depois, o caminho para o sul da Bahia ao encontro dos Tupinambá. Mas não são os “índios do descobrimento” nem os seus “remanescentes” atuais que comandam a atenção. A autora se interessa, de maneira instigante, em incorporar uma discussão da maneira pela qual os índios “viveram histórias complexas e longas de sujeição a processos civilizatórios, propondo uma visão mais etnográfica da história”. Na melhor tradição antropológica, ilustra este ponto através de um objeto mais específico, neste caso enfocando a relação entre os Tupinambá e a giroba, uma bebida fermentada que permite pensar a “relação dos Tupinambá de Olivença com o passado”. Para tanto, a autora une uma etnografia densa, repleta de observações de campo e de depoimentos “nativos”, a leituras “etnográficas” das fontes históricas. A história póscolombiana dos índios, nesta leitura, não se escreve nos temos de perdas culturais mas antes se busca entender o “complexo de transformações indígenas”, no qual, segundo a autora, “prazer e persistência vão se articulando com rejeição e anulação de certos hábitos do passado”. Exemplo da “história indígena” nos moldes da atual etnologia americanista, o artigo deixa, para os historiadores, o desafio do diálogo interdisciplinar necessário para repensar as idéias vigentes sobre o lugar dos índios na historiografia contemporânea.

Como organizador do dossiê, salientei aqui apenas alguns dos ensinamentos e perspectivas que fazem deste número algo de especial. Entretanto é cada leitor que irá extrair outros aspectos valiosos, pois todos os textos trazem pesquisas aprofundadas, com detalhes documentais saborosos e aportes bibliográficos inusitados para uma revista de história.

John M. Monteiro – Departamento de Antropologia IFCH-UNICAMP


MONTEIRO, John M. Apresentação. Revista de História, São Paulo, n. 154, 2006. Acessar publicação original  [DR]

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