História e Ficção | Em Perspectiva | 2019

Neste número, investigaremos as tramas a envolver ciência e ficção, história e narrativa. O fazer historiográfico passa pela arte do dizer, do criar o passado por meio das palavras, essas, criaturas e criadoras de realidades. Transformar a experiência humana do tempo em narrativa é envolvê-la em um fluxo difuso, isto é, dar vida a personagens, paisagens e cenários de um tempo que se reinscreve em tantos outros. Para além de um exercício estético, conceito por vezes mal compreendido, a relação entre história e ficção permite ao historiador um exame do seu próprio fazer, dos limites e alguns dos alcances que é dizer o tempo.

A narrativa não se reduz aos desdobramentos originários da divisão esquemática entre forma e conteúdo, texto e contexto ou escrito e oral, torna-se válido trabalhar a ficção como parte fundamental das práticas sociais historicamente localizadas. Torna-se legítimo, também, compreender a escrita da história como narrativa articulada em interação com outras disputas pelo sentido do tempo, em dimensões variadas e, por isso, não resumíveis ao ato de pensar em termos de divisões entre passado, presente e futuro. Torna-se legítimo, ainda, pensar numa história da narrativa levando-se em conta a narrativa da história como conhecimento que tem características próprias e cambiantes.

As contribuições para esse dossiê devem ter como finalidade a discussão que envolva a relação história e ficção como uma de suas problemáticas basilares, que tanto pode ser manifestar por meio de uma reflexão epistemológica, fruto de diálogos teóricos, ou de trabalhos que envolvam análises sobre documentações de narrativas, sejam elas: biografias, diários, cartas, entrevistas orais e literatura.

Dessa maneira, Adriana Fraga Vieira discutirá os vínculos entre “verdade” e ficção na literatura de Adelaide Carraro, “escritora maldita”, vista pelo regime civil-militar como esquerdista, comunista e pornógrafa, já que, em sua escritura, relatava a “verdade nua e crua” acerca da realidade social; a narrativa que trata do real, fabrica-o. Também Guilherme da Silva Cardoso objetiva problematizar a autoficção enquanto contranarrativa, a literatura como produtora de subjetividades em meio a experiência-limite da epidemia de AIDS na década de 1980 através do livro Para o amigo que não me salvou a vida (1990), de Hervé Guibert. Haverá fronteiras entre as palavras e as coisas? Que é escrever a verdade?

Que é servir-se da ficção em nome da verdade? Outros autores examinaram de que maneiras uma realidade emerge através dos textos literários, forjando imagens motrizes em nossas consciências. Em “Pequena palestra com uma múmia (1845): do conflito entre a ciência e a consciência da realidade do passado”, Edson Silva de Lima atentou nos elementos da história nacional norte-americana que pululam no conto de Edgar Allan Poe, não como uma representação ou ilustração, mas enquanto refiguração. Também Rafael Belló se debruça sobre um escritor de língua inglesa, Howard Fast, a visar a pesquisa bibliográfica e documental assente na feitura dos seus romances, expressões dos seus ideais de liberdade e democracia, atuantes contra o racismo e o conservadorismo; seria a ficção (re)criando os episódios das guerras indígenas do Oeste norte-americano, além de insistir no presente. Helen Lemos Bregantin, por outro lado, analisa como indivíduos historicamente situados transmutam-se em heróis ou heroínas; no caso, seu estudo centra-se no trabalho escriturário que criou a personagem Anita Garibaldi. As crônicas, diários, roteiros, etc., escritas no momento da expansão portuguesa do século XV foram moldando as feições dos africanos, delineados os seus caracteres e culturas, povoados e reinos, como salienta Paula Sposito Almeida em seu artigo, no qual a força das narrativas é evocada. Mais uma vez, entre o registro documental e o prazer estético, discute-se, em “A representação do feminino na comédia latina O Mercador”, de Edinaldo Gonçalves e Tito Barros Leal, a representação das mulheres na comédia latina de Plauto. Nos cinco artigos, portanto, história e ficção unem-se na criação de sentidos à nossa existência.

Porém, na atribuição desses sentidos, os intelectuais revelam-nos sua concepção de tempo, ou melhor, criam as urdiduras do tempo, as engrenagens temporais a mover as estórias e as histórias. Por isso, Amanda Teixeira da Silva perscruta a “cultura anti-histórica” de Guimarães Rosa, quer dizer, sua tentativa de fugir do tempo, mistura de religião e filosofia, através do conto “Se eu seria Personagem”. Já Aluísio de Azevedo, em O Mulato, apresenta-nos uma outra concepção do tempo, no qual a sociedade maranhense é posta sob escrutínio, como Clarissa Pesente nos indica em seu artigo. Gilberto Freyre, por seu turno, toma as suas investigações históricas como base da seminovela Dona Sinhá e o Filho Padre; Rodrigo Alves Ribeiro, autor do artigo “Forja e ficção”, acorda as “tópicas narrativas” freyreanas, de modo a elucidar a constituição escriturária fundamentada no tempo. Ruan Carlos Mendes esclarece-nos os sentidos e os usos do passado na obra de Airton Maranhão por meio da rememoração dos mortos que vagam entre os vivos. Em “A história como ficção em Alexandre Dumas”, Isabella Noguira lida com o aspecto ficcional e histórico das Mémoires de Garibaldi (1860) e intenta elucidar as concepções de história do romancista.

Não somente tais questões nos intrigam neste número. De que maneiras a literatura auxilia na interpretação dos eventos históricos? Seria a literatura um documento? Que é a literatura realista? Em “Imigração, parentesco e a cidade do Rio de Janeiro na virada do século XX: entre linhas de um processo crime”, Carolina Ferreira e Lucas Werlang investigam como a documentação de um evento trágico constitui personagens e tramas, amalgama de história e ficção. Já Ioneide Maria Piffano, ao problematizar a trilogia da tortura de Heloneida Studart, interessa-se pela reflexão propiciada pela literatura, ou melhor, na possibilidade de compreendermos uma realidade – no caso, a ditadura civil-militar brasileira – através de narrativas que manejam a imaginação. Para além dos textos literários, temos o estudo de Jéfferson Balbino acerca das telenovelas de Glória Perez e Manoel Carlos; aí, veremos como os novelistas instigam discussões sociais no Brasil – e para além do entretenimento. Noutro continente, José Saramago traduziria os escritos historiográficos de ninguém menos que Georges Duby e, nesse movimento, tomaria de empréstimo a “Nouvelle Histoire” na estruturação dos seus romances seminais, como demostra José Dercio Braúna.

Ainda na seção Dossiê Temático, leremos, no artigo de José de Arimatéa Vitoriano, como as fronteiras entre história e literatura, ainda indistintas, sinuosas, foram sendo assentadas através da prática do Instituto do Ceará, nesta província; os intelectuais aí reunidos arrostam contra a imaginação, instituído o “fazer história” legitimo, cientificamente válido. Os escritos, além de prescritivos, estimulam a criatividade; tal é o caso em análise no artigo “A Missão Abreviada do Padre Couto (1859) nas tramas do Juazeiro encantado”, de Roberto Viana de Oliveira Filho, que analisa a circulação e as leituras dessa obra, percebendo as tramas cotidianas e as estruturas de poder em Juazeiro do Norte por entre os leitores e as formas de ler (e ouvir) o breviário. Os conteúdos ouvidos e escritos interessam também à Uelma Alves da Silva, que aborda uma entrevista de Fidel Castro para Ignácio Ramonet, na qual as crises migratórias entre Cuba e Estados Unidos são abordadas, além da legislação existente, que também fora a base do livro Fidel Castro: biografia a duas vozes (2016).

Nesta edição, contamos, também, com a resenha produzida por Luis Alves sobre a obra História da saúde no Brasil, organizada por Luiz Teixeira, Tânia Pimenta e, Gilberto Hochman, a qual reúne uma visão geral sobre os diferentes trabalhos desenvolvidos Fundação Oswaldo Cruz, descortinando, desse modo, uma rede de pesquisadores que têm se dedicado a produções em torno da história e da historiografia da saúde, no Brasil.

A entrevista concedida pelo brasilianista Jerry Dávila ao Prof. Jailson Pereira da Silva, ao mesmo tempo em que fecha esta edição, abre novos horizontes para refletirmos sobre o passado brasileiro e os desafios históricos e sociais pelos quais estamos passando no momento de crise da democracia brasileira. Dávila traça, ainda, os percursos de sua relação com o Brasil.

Desejamos uma boa leitura!


Organizador

Daniel Alencar de Carvalho


Referências desta apresentação

CARVALHO, Daniel Alencar de. Apresentação. Em Perspectiva. Fortaleza, v. 5, n. 1, p.5-8, 2019. Acessar publicação original [DR]

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