História e Historiografia da Ciência: abordagens e Diálogos Possíveis | Temporalidades | 2016

A histografia é uma reflexão sobre a história escrita. Ou seja, a história da história deveria ajudar os historiadores a refletir sobre sua prática. E refletir aqui, significa voltar-se sobre si mesmo. A história das ciências também tem como seu principal desafio fazer com que os cientistas, e toda a sociedade, sejam capazes de refletir sobre essa prática basilar da sociedade moderna que é a ciência.

Thomas S. Kuhn, em 1962, na introdução de sua obra seminal: “A estrutura das revoluções científicas”, apontava tal papel fundamental que a história das ciências pode desenvolver ao afirmar que: “Se a história fosse vista como um repositório para algo mais do que anedotas ou cronologias, poderia produzir uma transformação decisiva na imagem de ciência que atualmente nos domina.” [2]

Em uma época em que a hard science era dominada pelo Positivismo Lógico, a obra de Kuhn teve sucesso em pensar a historicidade das ciências. Antes dele, um conjunto muito grande de autores já haviam tentado tal façanha. E, de fato, muito autores criaram as condições de possibilidade para o sucesso de Kuhn. Autores tão diversificados como: Friedrich Nietzsche (1844- 1900), Gaston Bachelard (1884-1962), Alexandre Koyré (1892-1964), Karl Mannheim (1893-1947) ou Ludwik Fleck (1896-1961), conseguiram – com mais ou menos sucesso – mostrar a historicidade da ciência e tentar tirar a ciência da posição “sagrada”, como algo que está fora do mundo, posição que ela adquiriu, em especial a partir do século XIX. Todavia, por uma série de fatores, que não cabe aqui explorar, foi Kuhn que obteve o maior sucesso em tal empreitada. Demonstração do seu sucesso foi o desenvolvimento que se seguiu da sociologia, da filosofia e da história das ciências que desembocaram nos sciences studies.

O grande alcance dos sciences studies acabou por gerar, na década de 1980, o que foi chamado de “guerra das ciências”. Tentar entender a ciência como uma produção histórica, como parte da produção cultura da sociedade e não como uma produção de uma “verdade” a-histórica, gerou reações acaloradas na comunidade científica. Pois, pensar a historicidade da ciência é reorganizar as relações de poder extremamente enraizadas, não apenas dentro do campo científico, mas entre toda a rede que compõem as ciências contemporâneas: atores e interesses tão diferentes com o complexo industrial-militar, as indústrias de alta teologia, a confiança pública na ciência (em uma “sociedade de risco”), a produção de conhecimento em uma “sociedade da informação”. Ou seja, o grande desafio para a história das ciências é que historicizar e entender a ciência como parte da produção cultura da sociedade é forçosamente repropor a relação entre ciência e senso comum. Boaventura de Souza Santos, afirma, neste sentido, que devemos repropor um novo “contrato social”. Bruno Latour é ainda mais radical em sua “teoria ator-rede” em uma “antropologia simétrica”, pois tal deslocamento nos recursos de poder implicaria em alterar os clássicos “vínculos e nós” (acordo) na relação entre agentes humanos e não humanos.

As palavras de Thomas Kuhn ao afirmar que tomar a história da ciência não como memória dos vencedores (uma crônica linear de erros superados pela verdade da ciência atual), mas com uma forma de entender a historicidade da ciência, geraria uma transformação “decisiva na imagem de ciência que atualmente nos domina”, ainda, são atuais, não porque ele fosse “um home a frente do seu tempo”, mas porque esse é um processo em curso. A imagem de ciência dominante na década de 1960, apesar de todas as alterações, continua a sofrer de uma dificuldade muito grande em sua capacidade de reflexão.

Em parte, isso se deve ao fato de que a ciência contemporânea tomou uma posição de um saber sagrado,[3] que estaria acima da sociedade e no qual não caberia aos não iniciados pronunciar-se sobre. Ou seja, nunca estaria na esfera de ação do cidadão comum. E nem mesmo os “sacerdotes”, os cientistas, deste mundo “sagrado” tem a legitimidade da ação, pois a crescente especialização das tecnociências leva a uma ampliação da incapacidade de se pronunciar sobre situações complexas, o cientista contemporâneo é um especialista em uma área e forçosamente ignorante nas demais, vivemos em uma situação “paradoxal, em que o desenvolvimento […] da ciência significa o crescimento da inconsciência”,[4] como afirma Edgar Morin, em “Ciência com Consciência”. Entender as ciências em sua historicidade e em sua contingência permitiria, em tese, voltar a ser pensadas como parte da esfera de ação da sociedade em geral.

Contudo, correndo o risco de ser repetitivo, alterar a “imagem dominante de ciência” não é mera operação mental, fruto da vontade de pensar diferente. É repropor nossa forma de “Ser no Mundo”. Em tal desafio hercúleo, o papel da história e da historiografia das ciências é de contribuir para que a ciência seja um saber reflexivo. Capaz de voltar-se sobre si mesmo. Contribuindo para a compreensão social da ciência, não como a produção de uma verdade a-histórica, mas como parte da atividade política de construção social da realidade. O que implica na busca de uma verdade e em um diálogo com o mundo natural; e não na negação do mundo natural e da busca da verdade em um relativismo estéril. De tal forma que não negue a dimensão intrinsicamente (e não apenas externamente) política de tal atividade científica.

Buscando contribuir com os desafios contemporâneo da história e da historiografia da ciência, a revista Temporalidades reúne nesse dossiê intitulado “História e Historiografia da Ciência: abordagens e Diálogos Possíveis”, uma série de artigos, vistos a seguir.

Bianca Cruz dos Anjos em “Tratado Único da Constituição Pestilencial de Pernambuco: primeira descrição dos “males” por João Ferreira da Rosa no século XVII” dialoga com a história social da medicina, explorando as concepções de doença e as políticas públicas, a partir de uma fonte primorosa sobre o caso de uma epidemia em Pernambuco, em 1685.

Daniela Casoni Moscato em “Um cientista alemão a serviço do império lusitano: Wilhelm Ludwig von Eschewege e suas descrições dos naturalistas luso-brasileiros (séculos XVIII e XIX)” explora a circulação de conhecimento e a formação de “comunidade de leitores” a partir do caso de um cientista germano que trabalhou para o Império Português.

Deise Simões Rodrigues em “O espírito Gorceix: história e memória do projeto científico da Escola de Minas de Ouro Preto”, perscruta a história e memória da Escola de Minas de Ouro Preto no final do XIX e início do século XX, mostrando como um dado discurso sobre a instituição foi construído.

Elder Al Kondari Messora e André Mota em “Um grandioso inimigo: discursos médicos sobre o câncer em São Paulo no alvorecer do século XX” dialoga com a História Cultural para postular que a emergência da política pública de combate ao câncer em São Paulo, entre 1892 e 1935, esteve associado a um discurso de “paulistanidade”.

Elisgardênia de Oliveira Chaves em “As causas-mortes na freguesia de Limoeiro – CE (1870 a 1880): silêncios, interpretações e sentidos” apresenta um intenso diálogo com a História Demográfica para analisar a causa mortis em Limoeiro, no Ceará, na década de 1870, transitando pela “História da Saúde”, a autora busca entender diferentes estilos de pensamento em seus conflitos, imbricações e apropriações para compreender o que vitimava a população de Limoeiro naquele momento.

Geraldo Barbosa Neto em “História e historiografia da revolução científica: um olhar a partir de uma perspectiva historiográfica dos portugueses” abordando a “Revolução Científica”, e aponta de forma crítica os limites da tentativa de romper com uma narrativa canônica, produzida a partir dos centros hegemônicos. Defende a importância de tal empreitada, mas sem cair no “mito das origens”, que fica perdido na anacrônica busca de um “pioneiro” e perde a oportunidade de entender o real contexto de debate de cada época, com seus horizontes de expectativas.

Gustavo Bianch Silva e Maria Izabel Vieira Botelho em “Ciência, tecnologia e sociedade: apontamentos teóricos” fazem uma revisão de literatura sobre a relação entre ciência, tecnologia e sociedade. O ponto de articulação de tão grande empreitada é a pergunta sobre qual o grau de autonomia que o cientista tem em relação a produção tecnológica e a sociedade? Entre prometeicos e fausticos os autores navegam por uma densa literatura, para chegar as abordagens que negam um determinismo a priori de qualquer um dos três campos, por exemplo, entendo que todos eles são “redes de relações”, como faz Bruno Latour.

Leonardo Querino Barboza Freire dos Santos, na obra “Entre a medicalização da infância e a esterilização dos “indesejados”: medicina e eugenia na Parahyba do Norte (1927)”, usa uma documentação produzida na “Semana Médica”, congresso organizado em maio de 1927 pela Sociedade de Medicina e Cirurgia da Parahyba, para entender a circulação das ideias eugênicas na cidade de Parahyba do Norte.

E, finalmente, compõem o dossiê uma entrevista com Zolt Levay, astrofísico, que trabalha, desde 1983, na equipe do Telescópio Espacial Hubble, sendo responsável pelo tratamento e pela divulgação das imagens do Hubble, algumas das imagens mais bonitas e reveladoras da história natural de nosso universo. Trata-se de um trabalho que busca registrar a memória da atividade científica. E que não fica limitado ao trabalho de memória, pois, quando inserido em um dossiê e em um conjunto de reflexões gera um deslocamento para o contexto de uma reflexão sobre o fazer científico.

O conjunto de textos aqui reunidos é claramente heterogêneo, quanto à abordagem teórico-mitológica, quanto ao tema de estudo, e quanto ao recorte temporal e espacial. Todavia, um elemento está presente no dossiê: a circulação das ideias científicas em especial na relação entre centros hegemônicos e periferias (ou centros canonizados em detrimento do silenciamento de outras “comunidades”); e aqui, circulação está em oposição à ideia de difusão, pois a circulação implica em um permanente processo de apropriação e a possibilidade de relação de mão-dupla e de retroalimentação entre os diferentes lugares sociais.

O conjunto de textos reunidos nesse dossiê busca seguir as práticas científicas em diferentes contextos e, com isso, esperamos contribuir para explicitar sua historicidade e colaborar com a reflexão da prática científica, não apenas no Brasil, mas em nossa sociedade globalizada. Boa leitura!

Santa Cruz, Califórnia, EUA.

Notas

2. KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 10 ed. São Paulo: Perspectiva, 2011. p. 19.

3. BENSAUDE-VINCENT, Bernadette. A genealogy of the increasing gap between science and the public. Public Understand of Science, v. 10, p. 99-113, 2001. p. 108.

4. MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. p. 17.

Ely Bergo de Carvalho1Research Associate at University of Californa, Santa Cruz – UCSC; Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.


CARVALHO, Ely Bergo de. Apresentação. Temporalidades. Belo Horizonte, v.8, n.1, Jan./abr. 2016. Acessar publicação original [DR]

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