História, mídias e culturas políticas | Temporalidades | 2020

Em 20 de janeiro de 2021, vemos o fim de um ciclo da política nacional-populista de direita azeitada pelo, agora, ex-presidente Donald J. Trump. Sem dúvida, um fato a trazer certo alívio aos defensores da democracia, quer estadunidenses quer no mundo. Entre outras mazelas derivadas de sua política interna e externa, o Governo Trump se notabilizou como um dínamo na produção e difusão, via redes sociais virtuais, das chamadas fake news – ou “fatos alternativos”, segundo preferência manifestada por assessora daquele governo em seu início.

Notícias e dados falsos, mentirosos e manipulados difundidos por aquele governo sob a ótica de culturas políticas nutridas em odioso revisionismo e torpe negacionismo, vazados em termos de patriotadas, xenofobia, fundamentalismo cristão, machismo, posições antiecológicas e contrárias ao multilateralismo. Aliás, expediente que já tinha sido empregado por Trump quando da sua campanha eleitoral, cuja consecução contou com estratégias do uso e da manipulação de logaritmos, o que em muito possibilitou a ele ascender à Presidência. Dinâmica comunicacional a ser repetida por políticos em vários países com iguais naipes político-ideológicos ao de Trump, quer em processos eleitorais quer em suas presidências nacionais, como é o caso do atual presidente do Brasil. Assim, a oposição de políticos antidemocratas e reacionários ao fazer da televisão, rádio, jornais e revistas avançava em forma e substância. Como em tempos de guerra, a primeira vítima fora a verdade.

Mas o ineditismo histórico da campanha e do governo de Trump, assim como seus congêneres, não se encontra na oposição ferrenha de governantes à mídia – pelo menos contra aquela que busca atuar com relativa autonomia aos interesses do mando político. A história contemporânea mundial é prenhe de fatos | acontecimentos e processos de tal ordem, quer mediante ofensivas governamentais direta – quando da instalação de regimes totalitários ou ditatórias – quer indiretamente – por meio de jogos escusos a driblar regramentos políticos democráticos; como são os casos recentes de Trump e do presidente brasileiro.

O inédito se encontra no fato de que os governantes na atual e mal-intencionada luta contra a imprensa autônoma não precisam se valerem de mídias congêneres operadas por veículos jornalísticos (jornal, revista, rádio e TV), posto as potencialidades de comunicação direta aberta pelas redes sociais virtuais. Essas a servirem de perfeita correia de transmissão às fake news e interpretações mais que enviesadas que são lançadas diuturnamente por diversos e plurais agentes sociais, individuais ou coletivos, aderidos a governos nacionais-populistas de direita emergidos ultimamente. Agentes sociais a agirem algumas vezes de forma anônima, porém, sempre interessados na defesa do status quo. Defesa reacionária a ser empreendia por conta de ressentimentos políticos ou sócio-classistas às políticas e governos favoráveis à ampliação e consolidação dos Direitos Humanos; cujos princípios se encontram, no caso do Brasil, dispostos na Constituição Cidadã de 1988. Porém, centenas de milhares de incautos e incultos frequentadores desses ambientes virtuais acabam por se constituírem em redes capilares para a disseminação de inverdades, meias verdades, interpretações descabidas, irreais, odiosas, discriminatórias e preconceituosas; mas é preciso notar que esses são, de uma forma ou de outra, dotados de culturas políticas que os levam à adesão ou difusão de maniqueísmos simplistas e desfibrados de conhecimento científico e histórico. Situação a revelar, ademais, os limites e as qualidades da formação escolar da população em geral, em várias partes do mundo e sobremaneira no Brasil.

De qualquer forma, enorme contingente de usuários das redes sociais a servir, concomitantemente, à pretensa legitimidade popular de governantes nacional-populistas de direita e à deslegitimação do operar e fazer das mídias tradicionais (imprensa, rádio e TV) por grupos da direita extremada. E esses não pensam em termos de democratização da mídia, antes, impingi-la subserviência aos seus ditames ou a favorecer donos e concessionários de veículos de comunicação mais do que dispostos a atender aos seus reclames. Embora dentro da situação pandêmica mundial pareça crescer o número de usuários das redes sociais desconfiados e alertas com fake news e assertivas negacionistas. Isto a ocorrer por conta de consequências nocivas derivadas de posições e medidas descabidas tomadas por governantes nacional-populistas de direita em relação à proliferação do Covid-19. A objetividade dos fatos parece ter uma oportunidade de voltar a iluminar a escuridão de absurdos do passado remoto e que, agora, se querem redivivos.

É certo, também, que a expansão da internet e a proliferação das redes sociais virtuais tem permitido ampliar espaços que, além de se prestarem muito bem à disseminação do conhecimento e a profícuos debates, potencializaram meios de comunicação social à divulgação da pluralidade de vozes consonantes a culturas políticas identificadas com a defesa da ampliação e consolidação da democracia e dos Direitos Humanos, da adoção de uma economia sustentável e de proteção ambiental, da supressão de níveis alarmantes da desigualdade social, do vicejar e da manutenção de uma vida social inclusiva, com dinâmicas sociais livres de preconceitos e discriminações de gênero, raça e credo, do multilateralismo nas relações entre as nações e a harmonia dos povos. Fenômeno que não pode ser minorado, uma vez que na história contemporânea não foram poucas as causas e a pluralidade de vozes, fossem individuais fossem coletivas, a serem preteridas pela chamada grande e comercial mídia. Ocorrência apesar de essa apregoar e se dizer pautada pela objetividade e neutralidade no transmitir a informação; ideário a deitar raízes no início da chamada imprensa-empresa nos EUA na passagem do século XIX ao XX.

Quer por força de lei ou de costumes quer por dinâmicas necessárias a provar a sua autoproclamada neutralidade e objetividade com vistas à buscada credibilidade, órgãos da grande mídia comercial souberam contornar, dosar e manipular, por meio de maneirismo e técnicas próprias ao editar, a concessão de espaços em suas páginas, ondas radiofônicas e nas suas telinha de tevê a assuntos, temas, ideias e projetos segundo convergência ou divergência aos interesses dos seus proprietários (jornal e revista) ou concessionários (rádio e TV). Por fim, tal “arte” e | ou técnica pouco percebida pela população menos instruída levou à noção de que um fato | acontecimento somente existiria se focalizado pela mídia; essa, por sua vez, soube muito bem explorar a seu favor aquela falsa percepção popular, sobremaneira a televisão, escudada no poder do audiovisual e do “ao vivo”. Como assevera Pierre Bourdieu, em seu pequeno livro militante sobre a televisão: mais do que ser, o importante é aparecer na TV; máxima bastante fidedigna ao período em que esse meio se manteve como soberano no universo da comunicação social.

Não por acaso partidos, causas, movimentos, organismos não governamentais na luta contra o status quo, segundo acepções desse em cada período, tiveram que lançar mãos, quando possível, da publicação de periódicos próprios, entretanto, comumente enfrentando obstáculos à manutenção consistente e distribuição abrangente deles. Caminho bem mais difícil quando se tratou da consecução de difundir ideias, projetos e ações de igual teor pelas ondas do rádio – quando possível limitando-se a rádios comunitárias ou piratas – e impossível com relação à TV. Afinal, a operação dessas duas mídias sempre foram controladas pelo Estado, no entanto, controle diferenciado de país para país em virtude da efetivação de regramentos legais ou do monitoramento de governos mais ou menos afinados a preceitos democráticos, notadamente ao direito de acesso à informação e o da liberdade de expressão. A internet, em geral, e as redes sociais, em particular, diminuíram potencialmente – quer para o bem quer, infelizmente, para o mal, tal sorte de obstáculos, assim como poderes de proprietários e dirigentes daquelas mídias convencionais. Contudo, após a primeira década de expansão da internet, as expectativas positivas de que a humanidade tivesse alcançado um meio livre e democrático à comunicação social se arrefeceriam, uma vez que dados e informações vinham à tona revelando que a internet se encontrava, também, à mercê de interesses comerciais de grandes corporações do setor. Segredos e usos dos logaritmos iam se tornando conhecidos da população em geral.

Pautado pelo objetivo de reunir subsídios à reflexão e crítica do presente imediato do universo da comunicação social, o Dossiê História, Mídias e Culturas Políticas, publicado no recente número | volume da revista Temporalidades, traz a lume uma série de artigos ocupados com a remontagem e análises de fatos | acontecimentos e processos inscritos ao longo das trajetórias de variadas mídias, englobando recuos temporais diversos, sem, contudo, perderem de vista as intersecções entre a história da mídia e a história política e cultural contemporâneas. Nesse diapasão, o leitor encontrará nos artigos constantes no Dossiê elementos factuais e analíticos sobre as estruturas e dinâmicas das mídias ao longo dos tempos, os quais se constituem, sem dúvida, num fértil manancial ao conhecer e compreender históricos sobre permanências e mudanças, proximidades e distanciamentos, rupturas e inflexões no operar, difundir e, mesmo, consumir conteúdos midiáticos, algumas da nodais interrelações do domínio midiático com os demais a compor a sociedade que o engloba, bem como os relativos às possibilidades e aos obstáculos da grande mídia comercial conceder espaços a vozes plurais e causas diversas que, de antemão, foram e continuam sendo preteridas pelos donos e concessionários da grande e comercial mídia conforme seus interesses imediatos.

Assim, na abertura do Dossiê constam dois artigos ocupados em sistematizar e refletir acerca de elementos teóricos lançados por expoentes da Escola de Frankfurt, ambos os textos desenvolvendo tal objetivo a par do enfoque de outros teóricos a procederem críticas, tal como os frankfurtianos, à chamada indústria cultural. Segue-se artigo voltado para o levantamento de questões metodológicas acerca da definição da propaganda, ao mesmo tempo, como objeto e fonte aos estudos históricos.

Os artigos constantes no segundo bloco guardam em comum estudos sobre as relações e participações de diferentes veículos de comunicação social em destacadas conjunturas da história política brasileira, tanto em tempos de crise – como a relativa ao suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, golpe civil-militar de 1964 e processo de impeachment do presidente Collor -, quanto da Ditadura Militar – com enfoque na cinebiografia de JK, da autoria de Silvio Tendler, a se contrapor as dos mandantes fardados, ou o empenho de jornal do interior mineiro na obtenção de esclarecimentos oficiais acerca do desaparecimento de três jovens durante o ocaso da Ditatura Militar -, ou período de transição desse regime discricionário para a redemocratização política – visto pela cobertura de jornal catarinense dedicada às transformações que se apresentavam ao mundo do trabalho no Brasil entre os anos 1980 e 1990, com denotado destaque ao debate na Sub Comissão do Trabalho da então Assembleia Constituinte.

No bloco seguinte se encontram artigos voltados a estudos sobre relações entre dinâmicas midiáticas e defesa de identidades culturais e da diversidade ao longo do tempo, muitos dessas relações atravessadas por dinâmicas políticas e | ou sob influências de conjunturas políticas. Assim, há artigos com enfoques em questões de gênero – dois abordando material de periódicos brasileiros sobre as mulheres no recuado século XIX, um terceiro com análise sobre memes difundido contra a presidente Dilma Rousseff, e completando o bloco, há artigo dedicado à crítica das representações sobre a mulher veiculadas no filme hollywoodiano Esquadrão suicida. E consta, ademais, artigo trilhando a interseção entre questões de gênero e raciais – com foco em personagem negra integrada à telenovela Amor de mãe, exibida pela Rede Globo e, ainda, a ser concluída. Acompanhado de outro artigo que joga luz sobre o emprego das infovias por comunidade de povos originários do Brasil. E, por fim, o bloco é fechado com artigo voltado à análise de material de jornal gaúcho dedicado à população socioeconomicamente vulnerável e discriminada no correr da década de 1950, em Porto Alegre.

O Dossiê é encerrado com dois artigos dedicados ao tema televisão. Um artigo com foco histórico sobre o meio no Brasil, posto remontar e analisar relações entre a imprensa e a TV na década de 1960, tomadas pelo prisma original da crítica televisiva em jornais e revistas que caminhava em direção à sua especialização, o que seria alcançada na década seguinte. E outro artigo pautado pela análise de material divulgados pelo telejornal Hoje, da Rede Globo, a focalizar os setenta anos da criação de Israel, destacando elementos da matéria a reiterar certa memória sobre Israel e Palestina.

Que a leitura do Dossiê reforce em todos o sentimento da necessidade mais que urgente da democratização da mídia no Brasil. Boa Leitura.

Áureo Busetto – Doutor em História Universidade Estadual Paulista. E-mail: [email protected]


BUSETTO, Áureo. Apresentação. Temporalidades. Belo Horizonte, v.12, n.3, set./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]

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