Il cerchio e l’elisse: I fondamenti dello Stato costituzionale | Maurizio Fioravanti

Giorgio Vasari (1550) conta, em suas Vidas dos Artistas, que certo dia o Papa Bonifácio VIII2 decidiu decorar a sacristia da Basílica de São Pedro em Roma. Nomeou um cortesão como emissário e lhe determinou que buscasse artistas aptos a realizar a tarefa.

No final do século XIII o procedimento já era conhecido: os emissários do papa deveriam visitar os principais ateliês da Itália, solicitando aos melhores pintores e escultores disponíveis que fornecessem amostras de seus trabalhos para que fossem avaliados em Roma. As obras eram dadas à Igreja como presentes, sem qualquer pagamento ou garantia de contratação – o que desagradava os artistas convidados, que apesar disso se submetiam à prática contando com a possibilidade de uma comissão.

Tendo recebido amostras de diversos mestres seneses, o cortesão nomeado chegou certo dia a Florença e se dirigiu à oficina de Giotto, já então reconhecido pelos trabalhos que havia realizado em Florença, Assis e Arezzo. Explicou as intenções do papa e solicitou um desenho para que lhe fosse enviado. Vasari conta que em um gesto nobre Giotto pegou uma folha de papel e, com o pincel que tinha em suas mãos, já sujo de tinta vermelha, desenhou em movimento rápido um círculo perfeito. Entregou a folha ao emissário e lhe disse, com um sorriso: “Eis o desenho”.

Incomodado com o que parecia uma brincadeira de mau gosto, e preocupado com o possível desrespeito ao sumo pontífice, o cortesão insistiu: “Você vai me entregar algum outro desenho?”; ao que Giotto respondeu: “Este já é bastante suficiente: envie-o com os outros e veremos se será reconhecido”.

Giotto tinha razão. Apesar da insatisfação do emissário, o desenho foi enviado ao Papa junto com os demais, acompanhado da explicação sobre o modo como havia sido realizado, sem que o artista utilizasse o compasso ou sequer movesse o braço. O papa e os seus intendentes imediatamente reconheceram a excelência da habilidade de Giotto, e o contrataram para que executasse a pintura da sacristia. Vasari conclui o seu relato observando que o episódio deu origem à expressão toscana “più tondo che l’O di Giotto” (“mais redondo que o O de Giotto”) – apreciada por sua ambiguidade já que, apesar da referência à beleza e à perfeição, em razão da simplicidade da forma circular é também associada à lentidão e à falta de inteligência.

Essa anedota inspirou a metáfora que dá título à mais recente obra de Maurizio Fioravanti (2020): O Círculo e a Elipse. Publicado pela Editora Laterza em 2020, o livro dedica suas pouco mais de 100 páginas a uma densa análise, em perspectiva histórica e teórica, dos principais fundamentos do Estado constitucional contemporâneo. O estudo é realizado em três capítulos, que se complementam como faces de um prisma.

O primeiro capítulo, intitulado O Estado moderno e o Estado constitucional, propõe uma abordagem de caráter mais teórico e conceitual. Apesar de não descartar completamente a perspectiva histórica, busca “comprimir em esquemas definidores gerais e simplificantes” (Fioravanti, 2020, p. 3) a pluriforme realidade histórica do Estado Moderno na Europa, com o objetivo de tentar esclarecer se o Estado Constitucional do século XX representa uma ruptura em relação à experiência do Estado Moderno.

O segundo capítulo, intitulado As Constituições Democráticas dos Novecentos, apresenta características mais típicas de um texto de história do direito. Nele Fioravanti volta a examinar o Estado Constitucional do século XX, não mais com o objetivo de estabelecer a sua categorização conceitual, mas de compreender o processo histórico que conduziu à sua formação desde as primeiras constituições revolucionárias do século XVIII.

Por fim, o último capítulo é um breve ensaio de micro-história. Em A Verdadeira História da Primeira Sentença da Corte Fioravanti se debruça sobre a primeira sentença proferida pela Corte Constitucional italiana: em dezembro de 1955 dois operários da indústria têxtil de Prato recorreram ao pretor Antonino Caponnetto (tornado célebre nos anos 80 por sua participação no pool antimáfia de Palermo) para invalidar a prescrição constante do art. 113 da Lei de Segurança Pública do regime fascista, que desde 1931 proibia a distribuição de panfletos sem prévia licença da autoridade3 . Embora a Constituição Democrática datasse de 1948, dez anos após a execução de Mussolini a legislação fascista continuava sendo aplicada, conforme o entendimento de que a norma constitucional somente poderia derrogar a lei infraconstitucional quando contivesse um preceito capaz de substituir integralmente o contido na lei. A decisão proferida pela Corte Constitucional em junho de 1956 reverteu essa posição e declarou inconstitucional a lei fascista, marcando a verdadeira data de nascimento da Constituição Democrática na Itália.

Apesar das perspectivas variadas, os três capítulos têm em comum o fato de promoverem o confronto entre duas concepções opostas de constituição. Nos termos da primeira, a constituição poderia ser bem representada pela imagem de um círculo: para essa perspectiva, como para Giotto e Vasari, o círculo evocaria o ideal de perfeição; assim como o círculo assegura a equidistância de todos os pontos de sua circunferência em relação ao centro, também a constituição representaria a garantia de paz entre as forças operantes no território sob sua regulação, por assegurar a existência estável de três condições: um centro titular exclusivo das funções de direito público; a disposição igualitária das diversas forças sociais e políticas na circunferência; e a completa absorção da política pelo centro, que irradia em direção à periferia. Nessa perspectiva tudo o que se encontra entre o centro e a periferia permanece liso e uniforme, transmitindo a ideia de um vazio que nos consola porque confirma que somos todos realmente iguais como pontos da circunferência, de modo que ninguém tem o direito de percorrer por conta própria o caminho que nos separa do centro para ficar mais próximo do soberano (Fioravanti, 2020, p. viii).

Essa é a perspectiva usualmente adotada pelas constituições do “Estado de Direito” do século XIX. Nesse modelo a constituição é compreendida como expressão soberana da vontade geral, que se afirma como “lei suprema” do ordenamento jurídico positivo na mesma medida em que se afirma como “lei política” desse ordenamento – estabelecendo o núcleo fundamental dos poderes do Estado, a forma de governo, o processo legislativo. Ocorre que ao se caracterizar como “lei política” a constituição se abstém de dialogar com os aplicadores do direito e os cidadãos; dirige-se unicamente ao legislador, determinando-lhe que se atenha aos limites da lei política durante o exercício de sua atividade legislativa. E o controle dessa relação é realizado pelos próprios agentes políticos: como não existe diferença ontológica entre a constituição e a lei, sendo ambas manifestações da vontade geral soberana, não há razão que justifique o movimento ativo dos seus destinatários no sentido de proteger o texto constitucional de eventuais violações pelo legislador – pois não existe violação da vontade soberana pela própria vontade soberana. Essa concepção leva a que se atribua à constituição uma posição semelhante à ilustrada no diagrama abaixo (Fioravanti, 2020, p. 13):

Nessa perspectiva a constituição é de fato o centro de um círculo, que remete os cidadãos à sua periferia. A força da lei ordinária reduz o juiz a mero executor dos seus comandos; as flechas demonstram que existe diálogo constitucional, mas este se estabelece somente entre a lei e a constituição, na medida em que a constituição estabelece os limites intransponíveis pelo texto legislativo, e a lei interpreta os conteúdos do texto constitucional. O diálogo não envolve os juízes responsáveis pela aplicação do direito, e nem os cidadãos aos quais os seus comandos se destinam.

Como argumenta Fioravanti (2020, p. x), porém, ainda que o princípio da unicidade do soberano seja o mais explícito elemento de distinção entre a era moderna e a era medieval, é difícil aceitar que o moderno se limite à construção monística de um governo sobre um território. Afinal, o direito moderno não se funda somente em um princípio da autoridade, mas também em um conteúdo de racionalidade que busca assegurar a mediação equitativa dos interesses dos sujeitos que existem no território em que ele se aplica. A observação desse fato expõe os limites da perfeição do círculo, e nos ajuda a compreender as razões pelas quais recebe o duplo sentido que lhe é atribuído pelo adágio toscano – de simplicidade, falta de engenho e estultice.

Consideradas essas circunstâncias, a metáfora do círculo se torna excessivamente simplória para ilustrar as complexidades da constituição moderna. Se o direito moderno representa um esforço de conciliação entre o princípio da autoridade e o princípio da racionalidade, mais adequado seria adotar uma imagem que representasse com precisão a duplicidade de sua natureza, e a tensão que caracteriza a relação entre esses dois polos: a figura da elipse. 435 História do Direito História do Direito: RHD. Curitiba, v.1, n.1, p. 430-437, jul-dez de 2020 Figura 3. A constituição como elipse.

Como explica Fioravanti (2020, p. 30), na elipse não há estabilidade ou imobilidade. Trata-se de uma figura geométrica essencialmente dinâmica, na medida em que os seus dois focos se encontram em uma relação de contínua e recíproca tensão. De fato, a oposição entre os dois elementos nucleares da elipse nunca pode se resolver em favor de um deles, ou mesmo em um elemento intermediário de consenso; se o fizesse, anularia a tensão da forma, que voltaria a ter um núcleo único e se estabilizaria na simplicidade do círculo. O modelo da elipse depende da existência dessa oposição essencial, o que a torna não somente contraditória, mas também complementar.

Compreende-se, então, por que a metáfora da elipse se mostra mais adequada a ilustrar o funcionamento do Estado Constitucional contemporâneo. Afinal, a modernidade jurídica está fundada na afirmação do princípio da unicidade da soberania, mas também no da inviolabilidade dos direitos – mesmo contra a unicidade da soberania, e de um modo que, no final das contas, contribui para assegurar a própria ideia de soberania popular. Nas palavras de Fioravanti (2020, p. 39): de um lado, toda a inviolabilidade de direitos possível, até o ponto em que ela não se torne uma retomada do direito natural, pois isso seria contrário à essência do direito democrático; de outro lado, toda extensão do princípio democrático possível, até o ponto em que ela não viole os princípios fundamentais da República, pois isso seria contrário à racionalidade de preservação dos direitos.

Nessa perspectiva a “Constituição-Garantia” é substituída pela “Constituição-Programa”, concebida não só como proteção soberana de direitos individuais, mas também como associação para o estabelecimento dos fundamentos e das finalidades da vida em comum – não só como preservação da ordem, mas também como criação da ordem. Isso explica a nova relação que os juízes e cidadãos estabelecem com o texto constitucional, nos termos do diagrama a seguir (Fioravanti, 2020, p. 13).

Como se infere do diagrama, no modelo do Estado Constitucional não existe mais relação de verticalidade. A supremacia da constituição não decorre da sua superior autoridade como lei, mas de sua capacidade intrínseca de representar os princípios fundamentais de justiça que caracterizam uma coletividade histórica. Ao sintetizar os ideais de justiça de uma comunidade de cidadãos a constituição passa a permear todas as relações sociais dessa comunidade, colocando-se não mais acima, mas no centro do próprio ordenamento jurídico – de onde pode ser alcançada não só pela lei, mas também pelos juízes e pelos cidadãos, que dela extraem a racionalidade fundamental que permite a vida em comum na República por ela fundada.

Ocorre que nesse novo panorama não é possível definir de antemão quem terá razão em caso de prescrições contraditórias – se o legislador ou o juiz. Se o primeiro expressa a soberania popular e o princípio democrático do qual ela decorre, o segundo expressa a tutela dos direitos fundamentais da pessoa, e da racionalidade que funda o próprio ordenamento da vida comum. Na concepção de Fioravanti (2020) este não é um defeito, mas uma qualidade do Estado Constitucional contemporâneo: é justamente essa tensão jamais resolvida entre os polos opostos da elipse que torna possível o equilíbrio estável entre os dois princípios aparentemente opostos, mas essencialmente complementares, que fundam o Estado Moderno.

Essa é uma posição que deve ser compreendida em seu específico contexto histórico e social. A teoria constitucional pressuposta por Fioravanti (2020) obviamente pretende enfrentar os problemas específicos do constitucionalismo democrático italiano durante a transição para o século XXI. E esse é um constitucionalismo que tem algumas especificidades: parte de um texto constitucional sólido, promulgado há mais de 70 anos, e que formaliza o pacto social democrático celebrado após a queda do regime fascista ao final da segunda guerra mundial; estrutura uma democracia liberal estável, apesar de todas as dificuldades enfrentadas pela República Italiana nas últimas décadas; e tem hoje como principal desafio a sua integração ao sistema regional mais abrangente da União Europeia, de matriz igualmente liberal-democrática.

É compreensível que nessas condições seja vista com otimismo a perspectiva de movimento e instabilidade gerada pela contradição bipolar entre o princípio de autoridade e o princípio de racionalidade. De fato, não há porque optar pela democracia ou pelos direitos quando ambos tendem a caminhar juntos em um amplo consenso democrático-liberal que, se ainda não foi capaz de eliminar completamente, parece ao menos ter contribuído para reduzir consideravelmente o risco de aventuras institucionais.

Não é essa, contudo, a realidade do Brasil. Temos uma constituição recente, de pouco mais de 30 anos de idade, e insuficientemente sólida; o pacto social que ela formaliza não se fez com a exclusão dos grupos autoritários da sociedade brasileira, mas entre eles e os grupos democráticos, em uma solução de compromisso negociada sob a tutela do próprio regime autoritário; e a condição periférica do Estado brasileiro aumenta sua sensibilidade a movimentos de conjuntura, tornando sempre real e presente o risco de emborcamento de nosso sistema político-constitucional.

Nessas condições o princípio de autoridade e o princípio de racionalidade do ordenamento jurídico-constitucional brasileiro parecem ter nos últimos anos degenerado em focos pestilentos de um constitucionalismo degradado, o que nos tem colocado entre a cruz autoritária dos arroubos populistas da extrema-direita e a espada vanguardista do tenentismo togado liberal – ambos riscos igualmente graves tanto à preservação de um consenso básico de direitos que possa fornecer um programa comum de vida comunitária, quanto à preservação de um sistema político de deliberação democrática apto a sustentar a continuidade da participação popular na vida da nação soberana.

Se a elipse brasileira permanece sob o risco de degenerar em círculo, as reflexões teóricas de Fioravanti nos oferecem ao menos alguma esperança: a de indicar a possibilidade de harmonia entre os dois polos aparentemente incompatíveis; a de demonstrar que essa contradição não é perniciosa em seus próprios termos, mas integra a essência do Estado Constitucional contemporâneo; e a de estabelecer um alicerce sólido e indicar um objetivo que podemos almejar.

Com essa esperança vem o consolo de que não somos obrigados a escolher entre democracia e direitos. O trabalho consiste, pelo contrário, em renovar e aprofundar nossa democracia, em fortalecer nossa rede de direitos e em buscar, pela sua convivência mútua e reforçamento recíproco, o preenchimento das fissuras que hoje abalam e adiam o Estado Constitucional brasileiro.

Oxalá o alcancemos.

Notas

2 Vasari faz referência ao papa Bento XII, mas provavelmente se equivocou. O pontificado de Bento XII se iniciou em 1335 em Avignon, apenas dois anos antes da morte de Giotto, em 1337. Já o Papa Bonifácio VIII, cujo nome de batismo era Benedetto, foi pontífice em Roma entre 1295 e 1303, e de fato foi patrono de Giotto durante esse período.

Referências

FIORAVANTI, Maurizio (2020). Il cerchio e l’elisse – I fondamenti dello Stato costituzionale. Editori Laterza.

VASARI, Giorgio (1550). Le vite de’ più eccelenti architetti, pittori, et scultori italiani, da Cimabue insino a’ tempi nostri. Lorenzo Torrentino


Resenhista

Walter Guandalini Junior – Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Centro Universitário Uninter.


Referências desta Resenha

FIORAVANTI, Maurizio. Il cerchio e l’elisse: I fondamenti dello Stato costituzionale. Roma/Bari: Laterza, 2020. Resenha de: GUANDALINI JUNIOR, Walter. As tensões do Estado constitucional. História do Direito. Curitiba, v.1, n.1, p. 430-437, jul./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]

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