Imprensa estrangeira publicada no Brasil: primeiras incursões | Tania Regina de Luca e Valéria Guimarães

A internet proporciona a interessante experiência de romper as barreiras espaciais e estar, mesmo que de maneira virtual, em mais de um lugar ao mesmo tempo. Portanto, permite o rápido acesso a notícias de países estrangeiros tanto no seu idioma original quanto na quase imediata tradução compartilhada por outros sites. Essa é uma conjuntura diferente daquela experimentada pelas comunidades imigrantes dos séculos XIX e XX, que, antes da agilidade e do alto alcance dos meios digitais, tinham na imprensa periódica uma importante ferramenta de comunicação e integração com seu país de origem, sem estar indiferentes às vivências numa nova comunidade. Assim, jornais e revistas publicados em língua estrangeira no país imigrante atuavam como um “entre-lugar” de povos em movimento entre experiências e culturas (LUCA; GUIMARÃES, 2017, p. 9).

Tendo como foco as particularidades dessa imprensa que se comunica em outro idioma, exceto o português, o livro Imprensa Estrangeira Publicada no Brasil, sob organização das historiadoras Tania Regina de Luca e Valéria Guimarães, contribui para a composição de um quadro da história da imigração no Brasil por meio da análise de impressos em língua estrangeira que circularam no país e, ao mesmo tempo, proporciona um avanço nos estudos sobre o espaço da cultura midiática em perspectiva transnacional – debates proporcionados pela abordagem da história cultural que pensa conceitos de transferências culturais, agentes e mediadores.

Com o subtítulo de Primeiras incursões, a obra é resultado das pesquisas iniciais do projeto coletivo Transfopress-Brasil (Grupo de Estudos da Imprensa em Língua Estrangeira Publicada no Brasil),1 sediado pela Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) sob a coordenação das pesquisadoras Tania e Valéria. Esse grupo se vincula à rede internacional de pesquisa Transfopress (Transnational Network for the Study of Foreign Language Press),2 idealizada e coordenada pela pesquisadora Diana Cooper-Richet, do Centre d’Histoire Culturelle des Sociétés Contemporaines – Université de Versailles SaintQuentinen-Yvelines (CHCSC-UVSQ).

Ao partir da questão atual da mundialização, o projeto Transfopress tem como objetivo estimular os estudos de impressos em língua estrangeira numa óptica transnacional, opção teórico-metodológica que possibilita conceber uma história da globalização da imprensa. Tal tarefa é possível graças a esta rede de pesquisadores e instituições de diversos países que colaboram para compor esse amplo quadro. Paralela à divulgação das pesquisas pelos sites do projeto, dos congressos e das publicações de artigos e livros, foi criada uma base de dados que reúne uma série de jornais e revistas em língua estrangeira que circularam no Brasil, além de informar os acervos com a coleção dos títulos cadastrados.3

Imprensa Estrangeira Publicada no Brasil é composta de um prefácio de autoria de Eliane de Freitas Dutra, uma introdução assinada pelas organizadoras e 14 artigos que abordam variadas línguas, períodos e temas. A obra segue a delimitação cronológica da história da grande imigração que vai dos primeiros grupos imigratórios em meados do século XIX até os debates políticos de imigração no século XX. É desse período que o livro aborda, com base em distintos periódicos e línguas, o próprio desenvolvimento da imprensa no Brasil e a história da imigração.

Sob essa temporalidade, os artigos são ordenados e segmentados por idioma, com primeira ocorrência e maior quantidade os periódicos franceses. Embora, se comparada às outras nacionalidades, a imigração francesa tenha sido pouco significativa no Brasil, o predomínio se justifica pela presença fundamental dos franceses na formação de um mercado de impressos no período imperial, além do fato de essas publicações serem conservadas e mantidas por coleções, muito em razão do domínio da língua francesa pela diplomacia brasileira.

O artigo de Isabel Lustosa, “O papel dos franceses na imprensa do Primeiro Reinado”, acompanha o início da imigração francesa em 1816, pós-derrota napoleônica, e demonstra que a imprensa foi um importante fator de integração da comunidade francesa no Brasil. Ao destacar nomes como Jean-François Despas, Pierre Plancher, Jean-Baptiste Aymé de Loy, a autora apresenta a atuação desses jornalistas com intensa participação na política brasileira no Primeiro Reinado.

Já Priscila Renata Gimenez, partindo de uma análise sobre a materialidade dos impressos, demonstra, em seu artigo “As Variétés e a literatura nos jornais franceses do Rio de Janeiro nos anos de 1830”, como a imprensa brasileira se desenvolveu seguindo um modelo francês de imprensa “periódica, midiática e coletiva”, ao estudar as rubricas literárias e de entretenimento nos jornais franco- -brasileiros Le Messager e L’Écho Français. Gimenez tece análises a respeito dos espaços de experimentação editorial que orientaram o estabelecimento do gênero folhetim, fruto das trocas culturais de uma matriz francesa e as experimentações desses jornais franceses no Brasil.

Com um recorte mais extenso da imprensa franco-brasileira, Valéria Guimarães, em “Imprensa franco-brasileira e mediação: Rio de Janeiro e São Paulo, séculos XIXXX”, revela a importância dos mediadores culturais (passeurs culturels) responsáveis pelas publicações periódicas em perspectiva transnacional, acompanhando a trajetória desses “homens duplos” (CHARLE, 1992) atuantes nessa “civilização do jornal” (KALIFA; RÉGNIER; THÉRENTY; VAILLANT, 2011), na qual agem na complexidade de instâncias que envolvem produção, circulação e recepção de periódicos na perspectiva transatlântica.

Ao fim do artigo, Valéria Guimarães compartilha, anexa, uma extensa tabela contendo um levantamento exaustivo dos periódicos franceses que circularam no Brasil no período de 1854-1924. Essa é uma importante contribuição do livro aos pesquisadores em geral interessados em estudar a imprensa franco-brasileira.

São dedicados dois artigos a respeito do estabelecimento do gênero humor nos periódicos franco-brasileiros no período dos Oitocentos. Monica Pimenta Velloso, em “Circulações do humor franco-brasileiro: a revista Ba-Ta-Clan (1867-1871) na imprensa carioca”, tece discussões a respeito das leituras do gênero humorístico no imaginário brasileiro e explica como a revista Ba-Ta-Clan se situa no campo do humor em sintonia com as demandas de modernização. Entre as questões levantadas por Monica, está a relação entre o humor e as polêmicas dispostas nessas páginas, algo que só pode ser compreendido no diálogo com outras publicações.

Nesse mesmo sentido, Tania Regina de Luca investiga, em “Le Gil-Blas (1877- 1878): humor e política em prol do ideal republicano”, as conexões entre humor e política, bem como as polêmicas travadas no jornal, sobretudo do cenário francês, embora também se dedique aos debates em torno de questões brasileiras, em especial sobre a defesa de um ideal republicano.

Em “Nota sobre os impressos periódicos em língua francesa”, Tania Regina de Luca e a bibliotecária Margaret Alves Antunes trazem uma generosa contribuição ao disponibilizar um levantamento dos exemplares que efetivamente sobreviveram à ação do tempo e indicar o local para seu acesso, sendo, assim, disponíveis para consulta de pesquisadores interessados em novas fontes de pesquisa. Esse incentivo aos estudos de periódicos na perspectiva transnacional é um dos propósitos do grupo Transfopress, e tal esforço é constantemente atualizado na base de dados de periódicos em língua estrangeira disponibilizado no site da Transfopress Brasil.

A respeito da imprensa anglófona, numericamente menos significativa e pouco estudada, os pesquisadores Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos e Dino Tsonis demonstram como os responsáveis por esses jornais estavam bem inseridos na sociedade brasileira, intervindo ativamente no debate político e cultural. Em “Imigração e a imprensa: jornais em inglês no Rio de Janeiro no século XIX”, os autores selecionaram duas publicações importantes e influentes nas questões de imigratórias e abolicionistas no Brasil: o The Anglo Brazilian Times (1865-1884), criado pelo jornalista e comerciante inglês William Scully; e o The Rio News (1874-1901), sob direção do britânico O. C. James e do norte-americano Andrew Jackson Lamoureux.

O periodismo ítalo-brasileiro foi abordado e explorado em várias vertentes no livro, já que essa imprensa é bastante expressiva no país e corresponde à também numerosa comunidade imigrante que aqui se estabeleceu. No capítulo “A escrita dialógica da imprensa libertária em italiano publicada em São Paulo no início do século XX”, Vera Chalmers analisa dois periódicos do jornalismo anarquista, o Guerra Sociale e La Battaglia, para demonstrar de que maneira editores, colaboradores e leitores desenvolveram uma estreita relação que conferiu à imprensa italiana a configuração de uma linguagem jornalista própria. Desta maneira, o jornalismo libertário se configura como um importante gestor de trocas intertextuais e transnacionais. Já Terciane Ângela Luchese, em “Educar para a catolicidade e a italianidade: o jornal Il Corriere d’Italia, RS, Brasil (1913-1927)”, reflete sobre o papel dos mediadores culturais na promoção de uma educação pautada nos ideais de catolicidade e italianidade.

Dois capítulos são dedicados à questão do fascismo na imprensa italiana no Brasil. Em “Até que o vendaval passe, ‘acreditar, obedecer, combater’: o Fanfulla e o Duce (1922-1941)”, Teresa Malatian discorre sobre a importância da imprensa como ferramenta na propagação de ideias e doutrinas, analisando um processo de “fascistização” da imprensa italiana que acaba por configurar uma nova conjuntura do jornalismo ítalo-brasileiro, adequado aos interesses de Mussolini no Brasil.

Embora o cenário brasileiro fosse favorável aos regimes autoritários do período, tal característica não reflete uma aceitação massiva dos ideais fascistas entre a comunidade imigrante, como afirma Ângelo Trento, no artigo “A imprensa antifascista no Brasil, 1922-1936”, ao demonstrar a presença de uma imprensa contrária à doutrina do Duce, ao mesmo tempo que estabelecia a idealização de um “exemplar italiano” que combate o fascismo sem negar a italianidade.

Ao tratar da imprensa e da imigração polonesa, a pesquisadora Maria Stephanou, numa linguagem que alia a sensibilidade da literatura, empresta duas expressões de Mia Couto para descrever o ofício do historiador e as dificuldades de acessar as opacidades do passado, principalmente quando o acesso às fontes e a má conservação dos acervos se tornam obstáculos nessa jornada de “afinar silêncios” e conhecer o “Lado de Lá”. Dessa forma, além de contribuir para as análises a respeito da pouco debatida imigração e imprensa polonesa circulante no Brasil, o artigo “Afinar silêncios de uma imprensa quase invisível: impressos em língua polonesa no Brasil desde finais do século XIX” toca em questões importantes sobre a conservação e a manutenção de acervos públicos e privados.

A intensa e longeva imprensa de língua alemã publicada no Brasil foi importante no processo de adaptação da comunidade imigrante à nova terra, como demonstrado pelas autoras Isabel Cristina Arendt e Marluza Marques Harres, no capítulo “Deutsches Volksblatt: entre os jornais de língua alemã publicados no Rio Grande do Sul (1870 e 1940)”.

Ao contrário da imigração alemã, a oficial imigração japonesa ocorreu apenas no início do século XX, tema que encerra o volume com o texto de Monica Setuyo Okamoto, “Ultranacionalismo, educação e mídia: a atuação dos impressos nipo- -brasileiros Burajiru Jihô e Nippak Shimbun (1916-1941)”. Num período de tensão da imigração asiática conhecida como “perigo amarelo” e a consolidação do Estado Novo, esses impressos acabaram por reforçar uma ideologia de “superioridade da raça” e “lealdade ao imperador”.

Os jornais em língua estrangeira ainda são publicados no Brasil, como no caso do Jornal Chinês para a América do Sul, que circula semanalmente na cidade de São Paulo, portanto é uma história em desenvolvimento que trará outros desafios aos pesquisadores, como os novos suportes eletrônicos.

A obra coletiva Imprensa Estrangeira Publicada no Brasil: primeiras incursões traz uma relevante contribuição aos estudos sobre a imprensa ao apoiar-se numa perspectiva transnacional dos periódicos que, por circularem no país em língua estrangeira, foram relegados ao limbo pela tradicional historiografia nacionalista. Sendo esse o primeiro fruto destas pesquisas, o livro não tem a pretensão de estabelecer conclusões estanques, e sim abrir possibilidades de análises com outros arranjos e articulações. Dessa maneira, resta a expectativa de novos debates e abordagens despertadas pelo projeto Transfopress, em âmbito internacional e nacional.

Notas

1 Mais informações sobre o projeto estão disponíveis no site: http://transfopressbrasil.franca.unesp.br/. Acesso em: 7 fev. 2019.

2 Para informações sobre o projeto em rede internacional, ver: http://transfopresschcsc.wixsite.com/ transfopress . Acesso em: 7 fev. 2019.

3 Para consulta da base de dados: http://transfopressbrasil.franca.unesp.br/dspace/ . Acesso em: 7 fev. 2019.

Referências

CHARLE, Christophe. Le temps des hommes doublés. Revue d’histoire moderne et contemporaine, Paris, v. 39, n. 1, p. 73-85, jan.-mar. 1992.

KALIFA, Dominique et al. La civilisation du journal: histoire culturelle et littéraire de la presse française au XIXe siècle. Paris: Nouveau Monde éditions, 2011.

LUCA, Tania Regina de; GUIMARÃES, Valéria. Introdução. In: LUCA, Tania Regina de; GUIMARÃES, Valéria (org.). Imprensa estrangeira publicada no Brasil: primeiras incursões. São Paulo: Rafael Copetti Editor, 2017.


Resenhista

Luciana Francisco – Graduada. Mestranda. Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Departamento de História, Assis, SP. https://orcid.org/0000-0002-1809-2068  E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

LUCA, Tania Regina de; GUIMARÃES, Valéria (Orgs.). Imprensa estrangeira publicada no Brasil: primeiras incursões. São Paulo: Rafael Copetti Editor, 2017. Resenha de: FRANCISCO, Luciana. Um “entre-lugar” na história da imprensa: periódicos estrangeiros publicados no Brasil.  Esboços. Florianópolis, v. 26, n. 42, p. 447-452, maio/ago. 2019. Acessar publicação original [DR]

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