(In) Tolerâncias Religiosas: práticas Modernas e problemáticas Contemporâneas | Temporalidades | 2016

Por que, afinal, e ainda, a Intolerância? Ou de como pode ler a História as fraquezas humanas diante da fé…

Passados quinhentos anos, comemorados neste calendário cristão de 2017, desde que Martinho Lutero afixou suas 95 Teses na porta da igreja do castelo de Wittenberg, um dos momentos-ápice que marcam o advento da Reforma Protestante, talvez nem o próprio monge agostiniano pudesse imaginar os rumos doravante tomados pelo cristianismo e os desdobramentos de sua proposta.

Também, pudera: a História nunca se caracterizou por ser ciência do “se”, afirmando-se mais pelo que julga tangível do que embasada por suposições mais ou menos críveis, nem tampouco aventurou-se seriamente a concluir sobre o que ainda não ocorreu, apesar do interessante título de uma das mais famosas obras de outro religioso de renome e muitíssimo conhecido entre nós – a História do Futuro, do Padre António Vieira – esta, apesar da designação, não era o que entendemos em essência como obra de História, voltada para questões outras, preocupada com o Quinto Império, que teria Portugal como raiz de uma árvore de infinitos galhos, potência cristã a disseminar o Evangelho pelo mundo. Um sonho que não se cumpriu.

A credulidade, aliás, esta mesma noção em que se constroem fidelidades religiosas e enaltecem ideais, alimentam certezas e reverenciam deuses, é a mesma credulidade que, por vezes, no lado oposto, faz com que se encontrem justificativas para rejeitar o diferente por este pertencer a um outro rebanho, de uma fé entendida como menos abençoada ou verdadeira, de um desconhecimento pecaminoso da verdade que só os insensatos, defendem, não podem ver. Não aceitar o que não é igual, não querer permitir sua existência, afinal, é um primeiro e firme (tanto quanto equivocado) passo em direção à intolerância… Mas, por que, se, em geral, na origem, as religiões pregam valores tão próximos? Estará a intolerância nas escrituras sagradas, nos cultos ou nos homens que os praticam?

Ter fé, seja ela qual for, é, de certo modo, um avesso do “ver para crer” de São Tomé, um “crer sem precisar ver”, um enxergar com os olhos da alma mais do que com os limites impostos pelo corpo físico, para, a partir da entrega religiosa, “crer para ver”.

A Reforma, sabemos bem, teve e tem consequências muitíssimo maiores e abrangentes. Seu alcance não pode ser pensado apenas pelas críticas luteranas aos abusos do Catolicismo vigente e dos que o apoiaram. (Muito) Antes e (bem) depois da publicação das 95 teses não foram poucos os que pensaram na necessidade de mudar a Igreja, fosse por dentro, esperando sua transformação – Agostinho, António, Francisco de Assis, Jan Hus, John Wycliffe, Giordano Bruno são exemplos ao longo da milenar História do Catolicismo –, fosse desistindo dela, criando e propagando outras igrejas e formas de vivenciar o cristianismo. Assim, deve ser entendida pelo impacto imediato e centralizado causado pelas novidades que chegavam de Wittenberg, mas igualmente pela circulação de suas ideias, pelo aparecimento generalizado e | ou pontual de desejos de mudança, em vários espaços e idiomas.

A própria Igreja Católica buscou estratégias para refrear a sangria de fiéis para as igrejas protestantes, e as decisões tomadas em Trento (mais amargo o remédio conforme a gravidade da doença…), no contra-ataque católico, dão o tamanho da ferida interna causada em Roma pelas afiadas ideias de Martinho Lutero, Thomas Müntzer, Martin Butzer, João Calvino, Ulrich Zwinglio, John Knox, Henrique VIII … Reformas, afinal, muito mais do que Reforma, que marcaram o século XVI e deram novos sentidos ao modo como os cristãos de todos os matizes se relacionavam e enxergavam-se, perante Deus, perante eles próprios, perante o mundo. Colaboraram, Reforma e Contrarreforma, para a mudança nos costumes e moralidades vigentes no Ocidente, e tiveram influência direta ou indireta em todo o globo.

Não foram, contudo, suficientes para estrangular os fanatismos. A Igreja Católica reagiu, em Trento, com medidas coercitivas, ratificando o poder papal, criando tribunais de consciência e arquitetando vigilâncias, como a famigerada Inquisição. Os protestantes também agiram com vigor. Apesar de não estabelecerem tribunais similares aos do Santo Ofício, usaram estratégias de controle da fé nos locais em que o protestantismo era dominante, como o Consistério, que funcionou em Genebra, e zelava pela disciplina religiosa entre os seguidores da Igreja Presbiteriana de Calvino, ou as perseguições movidas contra os Anabatistas na Alemanha de Lutero. Se havia conflitos entre católicos e reformados, que dizer então de judeus e mouros, perseguidos e expulsos seguidamente de diversos reinos, especializando-se em constantes diásporas e acusações que lhes eram imputadas, acusados de deicidas, incrédulos, infiéis.

Em uma das entrevistas que fecham esse Dossiê, a historiadora portuguesa Maria de Deus Beites Manso, especialista num outro braço de rearticulação do poder católico frente a ameaça protestante – a Companhia de Jesus, peça fundamental no processo de expansão cristã e missionação católica na Modernidade –, chama ainda a atenção para o fato de que estas disputas existentes vão além dos limites do mundo cristão: “protestantes, judeus, hindus, muçulmanos e outras religiões têm também um olhar fidedigno da sua história? Será que não narram identicamente um discurso propagandista sobre as suas culturas e maneiras de proceder?”. O jeito como olham para a sua própria história também tem implicâncias na forma como enxergam as demais realidades…

Mas segue ainda uma imensa distância entre a crença inabalável e a cegueira que não se dispõe a aceitar o que não é igual. Não apenas na fé. A contemporaneidade dá mostras de que a eliminação do outro é vista, não raro, como condição sine qua non para o sucesso. Somos bombardeados o tempo inteiro com exemplos neste sentido: os movimentos pelo direito à igualdade de gênero; o respeito às manifestações sexuais; a luta pelo fim da cultura do estupro e das mutilações femininas; a batalha pela negação da limpeza social que prega que “bandido bom é o bandido morto” e aplaude linchamentos, genocídios, massacres e carnificinas invariavelmente atingindo as camadas mais desprivilegiadas; as imposições culturais, sexuais, comportamentais e religiosas; o (muitíssimo mal) disfarçado racismo contra todos que não são (alguém é?) puramente brancos; o desconforto e indiferença perante os refugiados que tentam recomeçar suas vidas longe das desgraças movidas pelas catástrofes naturais e pela ambição humana, como a fome, as guerras, o terrorismo e extremismo religiosos; o fechamento de fronteiras e a construção de muros para impedir a livre circulação de pessoas; a apatia perante os desmandos governativos e as formas generalizadas de corrupção; a muralha social e econômica que busca impedir o acesso ao ensino dos que estão nas franjas da sociedade; as políticas que pregam o fim de direitos sociais, trabalhistas e educacionais que resultam de décadas (séculos, para ser mais exatos, em muitos dos casos) de luta e resistência; a política do ódio e o ódio político ao que pensa diferente, alimentados por uma mídia inescrupulosa que tenta impor que notícia é o mesmo que informação de qualidade, engabelando a todos que parecem se satisfazer com a sua própria ignorância. Tudo regado a um mundo que, nos idos atuais – Brasil e fora dele –, tem cada vez mais tombado à direita no que o significado do termo, mal compreendido, tem de pior, demonizando as vozes contrárias, num novo ambiente bipolarizado e dicotômico, embora muito longe de qualquer consciência efetiva do que se vive. O que falta, em suma, é respeito pelo humano (e amar ao próximo não é destas importantes balizas religiosas?), e a sensibilidade de colocar-se no lugar do outro.

Mas, não resta também dúvida, se, por um lado, a Reforma de já meio milênio e tudo que teve origem a partir dela, tem cumprido (por vezes a contento; por muitas outras vezes, não) seu papel questionador de uma fé que se deseja crítica e consciente, nunca, por outro lado, se ganhou tanto dinheiro em nome de Deus, em suas mais diversas traduções e interpretações! Afinal, o mundo que condena o extremismo de alguns islâmicos, generalizando seu comportamento como se fosse de todo o grupo, é o mesmo que se cala e fecha os olhos frente a outras tragédias e intolerâncias cometidas um pouco por toda a parte para celebrar as manifestações divinas em suas distintas convicções, materializações e significados. A equivocada leitura religiosa, em variadas religiões, ainda é, mundo afora, motivo para muitas das guerras e conflitos que segregam, perseguem e matam milhares de indivíduos, em pleno terceiro milênio. Exemplo disso é o tratado Dos Judeus e suas mentiras, Von den Juden und ihren Lügen, escrito por Lutero em 1543, e que, descontextualizado, acabou servindo de combustível para perseguições aos judeus da Modernidade aos nossos dias, inclusive perante o Nazismo, e que teve edição no Brasil, em 1993, proibida de circular, pelo temor de uma exploração tendenciosa da obra em seu cariz antissemita.

O próprio comércio aprendeu a conviver com a fé: se Cristo, conforme relatado no Novo Testamento, indignou-se com os vendilhões do Templo, e Lutero, milênio e meio mais tarde, condenou a venda de indulgências e o mercado de relíquias sacras, como pedaços do Santo Lenho, ossos de mártires, lágrimas, sangue e leite de Maria, e tudo mais que pudesse ser reverenciado, ainda hoje vemos o sonho da salvação eterna através da compra de produtos que ganham a estatura de sagrados, ou a inversão marota da parábola do óbulo da viúva, quando o sacrifício do fiel é julgado pela grandeza da contribuição financeira. A “ética protestante”, tão bem definida por Max Weber, virada de ponta-cabeça. E o que dizer do Natal, principal celebração cristã, transformada em ápice do consumismo desenfreado, aquecendo o comércio de fim de ano inclusive em países não-cristãos, onde a última das preocupações, não poucas vezes, encontra-se em festejar o real motivo da festa? Transformou-se o nascimento de Cristo numa comilança hipercalórica e troca de presentes que geram prazeres momentâneos e endividamentos duradouros.

A imagem que ilustrou a chamada deste Dossiê é mostra de que as questões de fé continuam cada vez mais atuais, e na moda – um boneco de Lutero, feito por uma das mais importantes e conhecidas fabricantes de brinquedos do mundo, a Playmobil, fundada na mesma Alemanha que foi berço da Reforma de outrora. O brinquedo, diga-se de passagem, esgotou-se para venda em tempo recorde – anacrônico: todos a querer manter em casa, ironia das ironias, uma imagem justamente daquele que condenava o culto às imagens…Desde cedo, a começar na infância, moldam-se as mentalidades para a religião. Mudaram os tempos, mas cinco séculos após o cisma cristão do início da Modernidade, o poder das Igrejas ainda é forte e manipula fortunas incalculáveis. Faz pior: domina mentalidades, impõem valores, proíbe e molda comportamentos, influencia ideais, amplia poderes, elege governantes.

Mais grave, só para ficarmos no caso brasileiro, que apregoa a tolerância e a liberdade de crenças como reflexos de nossa própria formação histórica miscigenada e plural, não são poucos os exemplos de perseguição e desrespeito que atingem (de distintas formas e em diferentes graus) todos os credos e também descrentes: religiões de matriz africana, católicos, evangélicos, espíritas, judeus, muçulmanos, ateus…Um ataque generalizado, em suma, à própria liberdade religiosa e de expressão.

As liberdades religiosas, o bom convívio entre representantes de credos distintos, a união de religiões no combate comum a mazelas sociais e no esforço por uma sociedade mais justa são exemplos de que se pode ir além. A participação do atual representante supremo do Vaticano, o carismático Papa Francisco, tanto na condenação a violências e intolerâncias, bem como nas comemorações dos 500 anos da Reforma Luterana, mostra que é possível – e desejável – o respeito e a convivência fraterna entre as diferentes religiões e suas manifestações de fé. Mas há, claro, ainda muito por fazer. Diariamente ainda recebemos notícias de ataques e desrespeitos a símbolos religiosos e seus seguidores, destruindo templos e ceifando vidas.

Neste número, vigésima segunda edição da Temporalidades, a Revista brinda aos seus leitores com um Dossiê sobre as variadas intolerâncias religiosas e suas consequências nas relações sociais e de poder. A escolha do tema não poderia vir em melhor hora: (In) Tolerâncias Religiosas: práticas Modernas e problemáticas Contemporâneas, matéria que norteia o Dossiê, é o mote que une os diversos trabalhos aqui apresentados. O “in” no título, entre parênteses, mostra que o diálogo é possível, e que o olhar sobre o outro pode também ser positivo, se a tolerância for colocada em primeiro plano.

No intuito de dialogar com as experiências de (in)tolerância em espaços e épocas variadas, os artigos aqui reunidos pretendem analisar as especificidades dos conflitos resultantes das expectativas de mudança e tentativas de permanência da onda de transformações gerada pelas Reformas e como algumas destas questões desembarcam na Contemporaneidade. Como se pode ver, um rico, variado e instigante banquete de temas que circundam e são circundados pela ideia da (In) Tolerância, em seus diversos âmbitos e pontos de vista. Múltiplos, como a análise histórica deve ser, por vezes discordantes, mas sempre complementares.

Que assim também possam ser os diálogos entre as crenças e os fiéis, em respeito mútuo, para que o “(In)” do título vire História, e não mais presente.

Angelo Adriano Faria de Assis – Universidade Federal de Viçosa.


ASSIS, Angelo Adriano Faria de. Apresentação. Temporalidades. Belo Horizonte, v.8, n.3, set./dez. 2016. Acessar publicação original [DR]

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