Instituto de Menores Artesãos (1861-1865): informação, poder e exclusão no Segundo Reinado | Douglas de Araújo Ramos Braga

Resultado de uma pesquisa de iniciação científica que se tornou tema de trabalho de conclusão de graduação, o livro é fruto da monografia de Douglas de Araújo Ramos Braga- graduado em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), mestre em História das Ciências e da Saúde pela Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz (COC-FIOCRUZ) e atualmente doutorando em História pela Universidade de Brasília (UNB) 1.

Instituto de Menores Artesãos (1861-1865): informação, poder e exclusão no Segundo Reinado concede centralidade às noções de “criança”, “infância” e “menor”, numa análise que busca entender a experiência institucional do instituto de vida efêmera que exerceu profundo impacto sobre os indivíduos que para ela foram enviados-retirados das ruas ou mandados por familiares que não tinham condições de criá-los. O que eram crianças? O que eram menores? Como e porque eram inseridos junto a outras figuras – homens, mulheres, livres, escravos, imigrantes, africanos livres de diversas idades – nas chamadas “classes perigosas”? O que era ser criança, o que era infância? São algumas das perguntas que norteiam as reflexões do autor, que insere sua problemática no debate maior acerca das políticas públicas de controle e esquadrinhamento social pelo Estado Imperial.

Em torno do argumento de que houve a ultrapassagem arbitrária por parte do Estado Imperial, na condição de poder máximo que autorizava e regia o funcionamento da instituição, do objetivo de educar indivíduos sob a égide da valorização do trabalho para um futuro que ia além dos muros daquele instituto correcional, Douglas Braga divide sua obra em cinco capítulos, acrescidos de um interessante anexo contendo breve cronologia de políticas e instituições voltadas à infância no Brasil.

No primeiro capítulo, intitulado Introdução, Douglas Braga contextualiza a pesquisa que resultou no livro em questão, bem como explicita sua metodologia de trabalho e apresenta categorias fundamentais as suas reflexões, ressaltando autores com os quais dialoga. O autor explica que as categorias de “criança” e “infância” têm de ser consideradas como partes de um contexto maior, onde junto aos ideais de progresso, civilização e modernização, também ganham destaque as classes pobres, que eram tidas como problema social do Estado, principalmente na segunda metade do século XIX – momento em que a urbanização e o crescimento demográfico seguiam linha crescente e rápida. Autores como Phillippe Ariès (1981) e Peter Stearns (2006) são mencionados para a discussão referente ao oitocentos brasileiro como momento de consolidação de novas ideias acerca das categorias referidas. Douglas Braga enfatiza sua concordância com o pensamento que as considera como construções históricas e sociais, não conceitos dados per se.

Em consonância com autores como Adriana de Resende B. Vianna (1999), o conceito de “menor”, para o século XIX, é apresentado como nova categoria jurídica e social e alvo das ações do Estado. Assim sendo, foi questão central para formulação de políticas públicas de intervenção e controle social do período. Nesta parte do livro, aparecem debates acerca da importância de trabalhar o conceito de “informação” sob uma perspectiva histórica, afinal “a informação já tinha uma importância estratégica para a realização de políticas institucionais do Estado em uma cidade escravista, que se queria moderna” (BRAGA, 2019, p. 16).

Evocando Peter Burke (1995), Douglas Braga afirma o valor para o trabalho histórico da consideração do escopo informacional produzido em âmbito institucional. Dos modos de produção aos modos de silenciamento e divulgação de informações, o historiador encontra rico campo para estudar fenômenos sociais dos mais diversos. As informações produzidas no âmbito do Instituto de Menores Artesãos (nos livros de matrícula, por exemplo) permitem perceber facetas do objetivo maior – que envolvia diversos saberes e poderes, como a medicina e a polícia –, de esquadrinhamento populacional pelo Estado Imperial.

No segundo capítulo, A criança e a ideia de infância – história e historiografia, é feito um breve panorama historiográfico acerca das ideias de “criança” e “infância”. O autor apresenta obras nacionais e estrangeiras que abordam as questões centrais já referidas. Alguns pontos tratados nesta parte são: diferenciação de aspectos naturais e históricos das categorias “criança” e “infância”; importância e transformações das noções e relações de “família”, “escola”, “adulto”; a separação das crianças por idades e classes; taxas de natalidade e mortalidade relacionadas a transformações nas concepções de ligações emocionais, dentre outros pontos que demonstram diferentes representações da infância, da criança e da juventude ao longo dos séculos (ao menos desde o medievo). Douglas Braga explica que considera como diferentes os conceitos de “criança” e “menor” e fornece algumas breves palavras, ainda que tal tema não seja objeto focal do livro, sobre as crianças escravas no Brasil do XIX e alguns anos antes.

Em Informação e controle social no Rio de Janeiro oitocentista, terceiro capítulo do livro, o historiador analisa relações entre transformações urbanas ocorridas no Rio de Janeiro do século XIX e o surgimento das ditas “classes perigosas”. O papel da informação como instrumento imprescindível para as medidas de controle social implementadas pelo Estado Imperial ganha, também, centralidade nesta parte do livro. A partir de uma extensa bibliografia – Michel Foucault (sobretudo com o conceito de “sociedade disciplinar”), Michele Perrot, Irene Rizinni, Luiza Ribamar de Carvalho, Alessandra F. Martinez de Schueler, Peter Stearns, Adriana de Resende Vianna, Icléia Thiesen, dentre outros –, Douglas Braga percorre um caminho que compara processos de industrialização e modernização ocorridos na Europa e no Brasil do século XIX, bem observando como categorias a exemplo de “menor”, “indivíduo” e “crime” estavam também em movimento.

No Brasil do século XIX, o “menor”, junto aos vadios, bêbados e loucos, é inserido pelas elites nas chamadas “classes perigosas”, que punham em risco a visão do Estado Imperial Brasileiro, que almejava consolidar a nação brasileira daquele momento como moderna e civilizada. Transformações tecnológicas eram acompanhadas por transformações econômicas, socioculturais e políticas. A concepção de “menor” e seus estatutos acompanhavam as mudanças na dinâmica social, enquanto a educação disciplinar primária comandada pelo Estado era uma das políticas centrais de governança.

Compactuavam com o intuito do Estado Imperial outras elites profissionais, a exemplo de médicos e juristas. Polícia, escola, prisão e outras instituições são pensadas como instrumentos de manutenção da ordem social, a partir do controle e exclusão – da sociedade, da família e de outros espaços –, das classes perigosas. Além da punição e recuperação dos membros pertencentes a tais grupos, as mencionadas instituições e profissionais, a serviço do Estado e também de seus próprios anseios por lugar exclusivo e autorizado de atuação, preconizavam a prevenção contra a degeneração moral.

Em parte, substancial do capítulo aparecem importantes discussões sobre papel e essencialidade de um “sistema de informações”, conceito que Braga toma de empréstimo de Icléia Thiesen (2006), para manutenção da ordem desejada por elites imperiais, sobretudo o Estado. Produzir informação sobre um indivíduo era forma para melhor conhecê-lo e dominá-lo. Trata-se de uma relação direta entre saber e poder. A centralidade dos discursos médicos higienistas, a relação entre progresso, modernização, doença e desordem, informações sobre a Casa de Correção da Corte, o Asilo de Meninos Desvalidos e outras instituições que tinham o trabalho como princípio fundamental do controle e da ordem, também são tópicos abordados no longo capítulo, que bem demonstra que a ideologia do trabalho era, além de estratégia de controle dos menores e demais integrantes das classes perigosas, forma de afirmação da autoridade do Estado acima da própria família, bem como maneira de disciplinarização das classes populares a partir da educação de suas crianças.

O capítulo 4, O Instituto de Menores Artesãos (1861-1865) e a constituição de um sistema de informações, é o mais específico e relacionado diretamente à temática central – a existência do Instituto de Menores Artesão como instituição a serviço do Estado. Douglas Braga refere-se a tal ambiente correcional como a primeira instituição não-militar fundada na Corte com objetivo de recepção de menores e sua futura reinserção na sociedade como força de trabalho. Partindo da concepção de que nenhuma instituição surge do nada, o autor aponta a criação do Instituto como resposta à demanda, premente no século XIX, de criação de novos locais para recebimento de menores vistos como ameaças sociais em potencial. O grande propósito era corrigi-los e torna-los hábeis ao trabalho, logo úteis à sociedade. O objetivo relacionava-se, dentre outras motivações, à abolição do tráfico em 1850 e consequente urgência por mão-de-obra qualificada.

Ao longo do capítulo, o historiador nos conta sobre a estrutura e o funcionamento do Instituto, conceitualmente abordado como “instituição total”. Quanto à sua estrutura física, Douglas Braga nos conta que é possível observar alguns princípios do panóptico de Bentham: vigilância constante, internalização a valorização do trabalho, disciplina, religião, correção pelo trabalho, limpeza e manutenção da saúde faziam parte dos objetivos firmados para a instituição. O autor nos fala, ainda, sobre o regime de funcionamento que, em teoria, contava com separação de menores por sexo, idade, classes comportamentais e outros tipos de classificação. Explica, também, sobre a alimentação regrada, finalidade e vagas disponíveis, a disposição e hierarquia de internos e funcionários, além de outros aspectos regulatórios, a exemplo da proibição de castigos físicos, das idades e formas de admissão definidas pelo Decreto n. 2745 de 13 de fevereiro de 1861. O capítulo nos informa, ainda, que existia a possibilidade de que menores fossem devolvidos aos pais e tutores ou encaminhados como força de trabalho às forças militares e outras instituições imperiais ou a particulares.

Ainda no quarto capítulo são preconizadas as dificuldades de administração do Instituto. Segundo Douglas Braga, uma consistente evidência do problema eram os livros de matrícula preenchidos de maneira incompleta, o que demonstrava, além das referidas dificuldades, que a informação sobre os internos era fundamental para o controle dos menores, inclusive para casos de fuga e recaptura. Utilizando-se sobretudo de relatórios produzidos pelo diretor da instituição, o autor discute o funcionamento da mesma relacionando-o à produção sistemática de informações sobre os menores ali matriculados. Além disso, pondera sobre a circulação destes informes produzidos entre diversas instituições imperiais, a exemplo do Ministério da Marinha, do Ministério da Justiça e da Polícia. Os percalços da instituição também apareciam na grande imprensa. Problemas internos da instituição – que iam desde fugas e rebeldias até assassinatos – figuravam nas notícias diárias da Corte. Ponto central defendido por Douglas Braga é que os relatórios, que não raras vezes ressaltavam a necessidade de separação entre menores corrigíveis e incorrigíveis, produziam uma identidade social específica ao menor, um tipo de estigma (e aqui o autor se baliza nas perspectivas de Goffman – 1987 e Maria Julia Goldwasser – 1985) que ultrapassava o âmbito do Instituto de Menores Artesãos, perpassando pelas diversas administrações imperiais.

O autor apresenta documentação que evidencia que a despeito das diversas intempéries enfrentadas pelo Instituto, em seus primeiros anos de vida este recebia constantes pedidos de admissão por parte de pais esperançosos de que os filhos aprendessem a trabalhar e pudessem tirar a família da miséria em que se encontravam. Tal panorama foi substancialmente alterado com a chegada da Guerra do Paraguai, onde as dificuldades de contingente fizeram emergir a política de recrutamento forçado e esses menores, que não só em épocas de guerra poderiam ser encaminhados à Marinha e outras instituições, foram vistos como braços de auxílio da nação em sítio, muitos deles de fato enviados ao Cone Sul. Além da Guerra, os problemas administrativos habituais e a disparidade entre altas despesas e resultados efetivos resultaram na extinção do órgão em 1865.

Como colaborações principais do capítulo e do livro, notam-se dois apontamentos. O primeiro é o de que, diferente do que sugere parte da historiografia tradicional, foi o Instituto de Menores Artesãos (1861) e não o Asilo dos Meninos Desvalidos (1875), a primeira instituição não militar diretamente ligada ao Estado a receber menores tidos como ameaça em potencial. O segundo evidencia discrepâncias entre o objetivo do Instituto no papel e na prática. Muitos dos menores eram vistos como incorrigíveis, muitos não foram devolvidos ao seio de suas famílias e grande parte, antes de ser educada pelo viés do trabalho, foi enviada aos campos da Guerra, despreparada e sujeita aos perigos do campo de batalha.

Como partes derradeiras do livro, encontramos uma brevíssima conclusão – onde o autor reafirma seus principais argumentos e reflete sobre possibilidade e necessidade da continuidade de pesquisa sobre o tema trabalhado, e um anexo que resume de forma sucinta a cronologia de políticas e instituições voltadas à infância no Brasil (1734-1990). O livro de Douglas Braga carrega, dentre outros, o mérito de ser um trabalho inicial que além de destacar interessante temática de pesquisa, aponta questões e caminhos para prossegui-la. O autor bem demonstra que o Instituto de Menores Artesãos, a despeito de sua existência relativamente efêmera, produziu um sistema de informações que nos permite inseri-lo no arsenal das ações postas em prática pelo Estado Imperial com objetivo de controle social, a partir do esquadrinhamento da sociedade. Nas análises do historiador, a categoria de “menor” foi alvo específico do olhar definidor das políticas estatais.

Os argumentos do autor chamam atenção para a necessidade de cuidado no tratamento de categorias como “infância”, “menor” e, em última instância, “Estado” e “classes perigosas”. Tais conceitos devem ser vistos como categorias diretamente ligadas às dinâmicas sociais, culturais, políticas e econômicas dos contextos nos quais eram construídas, e também ajudavam a construir. A questão da infância no século XIX brasileiro, como tratada por Douglas Braga, é interessante para a constatação de que as definições legais, morais e culturais sobre o assunto “infância” não apenas definiam seus alvos mais imediatos – crianças, menores –, mas definiam também ações estatais que evidenciavam uma sociedade hierarquizada para além das categorias de adulto e criança. A riqueza e a pobreza eram também atributos fundamentais para as definições de perigo e lugar social. Além do Estado, médicos, juristas, professores, jornalistas, famílias e outras figuras apareciam nos amplos debates que envolviam infância, informação, controle social e outras facetas do problema.

As questões levantadas na obra de Douglas Braga retomam, sob um outro olhar – semelhante, porém não igual –, interessantes reflexões já propostas por obras clássicas, a exemplo de Roberto Machado et al no livro Danação da Norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil (1978)2, em que os autores bem discutem a medicina social como parte resultante e atuante na rede de poderes e saberes que buscavam disciplinar a sociedade brasileira do século XIX a partir da hierarquização e normatização de indivíduos e espaços (a exemplo da escola, da prisão e do próprio hospital). A bibliografia utilizada se movimenta entre livros mais antigos e mais recentes, o que colabora para a realização de uma das contribuições mais importantes do trabalho historiográfico que é a retomada, revisão e incremento de posicionamentos consolidados ou não, que circulam sobre as temáticas propostas.

Por fim, merece destaque a forma pela qual o autor considera a informação como conceito histórico que necessita de ser contextualizado por significar várias coisas diferentes. “Sistema de informações” nos dias de hoje e no século XIX indicam coisas diversas. Toda informação é produzida por pessoas com intuitos específicos, bem como circula e costuma ser recebida de maneiras variadas. Analisar esses processos é rico caminho para compreender lógicas de funcionamento social. Contudo, existem limites, sobretudo quando pensamos que as principais fontes utilizadas pelo autor eram documentos escritos. Com alguma concisão, exemplos de tais limites são ressaltados por Douglas Braga ao longo do livro, a exemplo da explicação (p. 19) de que as informações sobre as crianças eram produzidas por olhares adultos.

Mais do que uma boa descrição da primeira instituição imperial não militar a receber crianças com objetivo correcional pelas vias do trabalho, Instituto de Menores Artesãos (1861-1865): informação, poder e exclusão no Segundo Reinado é uma leitura que fornece importantes apontamentos iniciais de uma questão cuja trajetória histórica é ainda importante e não resolvida nos dias atuais. Trata-se de pensar como o Estado formula e administra as ações voltadas ao tratamento de crianças pobres e abandonadas. Além disso, como e porque essas figuras recebem determinado lugar social.

Notas

1 O autor é ainda: especialista em Aplicações Complementares às Ciências Militares pela Escola de Formação Complementar do Exército e professor do Colégio Militar de Brasília.

2 MACHADO, R., et al. Danação da Norma: medicina social e constituição da Psiquiatria no Brasil, Rio de Janeiro, Graal, 1978.

Resenhista

Vanessa de Jesus Queiroz – Doutoranda em História pela Universidade de Brasília (UnB); bolsista de Doutorado do CNPq. E-mail: [email protected]

Referências desta Resenha

BRAGA, Douglas de Araújo Ramos. Instituto de Menores Artesãos (1861-1865): informação, poder e exclusão no Segundo Reinado. Curitiba: CRV, 2019. Resenha de: QUEIROZ, Vanessa de Jesus. Revista de História da UEG. Morrinhos, v.8, n.2, jul./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]

GREEN James Naylor (Org), QUINALHA Renan (Org), CAETANO Marcio (Org), FERNANDES Marisa (Org), História do Movimento LGBT no Brasil (T), Alameda (E), PINTO Rhanielly Pereira do Nascimento (Res), História – UEG (Hsr), História do Movimento LGBT, América – Brasil, Séc. 20-21

No ano de 1978 nascia o movimento homossexual brasileiro (MHB). Iniciado no contexto dos anos de chumbo1, o movimento emergia da renovação cultural e problematização do pensamento da esquerda brasileira. Aliando-se aos movimentos de mulheres e feministas, ao movimento negro, à pauta ecológica e a alguns setores da chamada “nova esquerda”, o movimento surgia num processo de contestação proveniente ao movimento de liberação homossexual iniciado na Argentina em 1967 e nos Estados Unidos em 1969 2.

A coletânea de artigos organizada por Marisa Fernandes3, James Green4, Renan Quinalha5 e Marcio Caetano se esforça em preencher uma lacuna historiográfica que tem se desanuviado nos últimos anos. Em forma de 30 capítulos partindo da perspectiva de que o movimento homossexual no Brasil surgia através da emergência do Lampião da Esquina (1978-1981) e do grupo Somos paulista, os ensaios debatem as contradições dos discursos de memória sobre o período e reacende pontos até então esparsos em obras como Além do Carnaval (2000) e Devassos no Paraíso (2018).

Contendo 30 artigos a coletânea coloca em evidência relatos de ativistas-pesquisadores do movimento que hoje denominamos como LGBTI+6. Desse conjunto de textos, 10 discutem especificamente a arena política e cultural da primeira década do movimento. As narrativas sobre o período e as perspectivas políticas do grupo Somos são discutidas nos textos de João Silvério Trevisan, James Naylor Green, Edward MacRae, Rita de Cassia Colaço Rodrigues e Ronaldo Trindade estabelecendo as características do início do movimento sob o prisma de um rizoma identitário que aos poucos começava a estabelecer uma crítica ao padrão bofe/bicha (MACRAE,1990).

Estes textos efetuam uma discussão complexa dos aspectos liberacionistas do movimento, isto é, de sua cooptação ou não por alguns setores da esquerda do período. Além disso, Trindade em sua contribuição A invenção do ativismo LGBT no Brasil: intercâmbios e ressignificações, contesta a ausência do diálogo entre as influências dos movimentos latino-americanos na trajetória brasileira e a maciça discussão sobre a influência do Gay Power norte-americano, sem de fato minimizar a sua presença.

Sua crítica surge como um ponto fundamental entre historiadoras e historiadores que nos últimos anos vem ampliando a lupa interpretativa sobre aqueles primeiros anos. É neste sentido que os textos de Renan Quinalha, Rafael Freitas Ocanha, Michele Pires Lima, Patrícia Melo Sampaio, Helena Vieira e Yuri Fraccaroli amplificam a dimensão interpretativa sobre a relação entre as violências sofridas e as resistências protagonizadas por estes sujeitos historicamente subalternizados. Estes últimos trabalhos evidenciam, sobretudo, a continuidade da agência do aparato repressivo do Estado, seja em sua ação direta ou através de sua ausência seletiva, no período consideravelmente mais “calmo” da ditadura.

Desse modo, novas narrativas começam a ser incorporadas ainda sobre esse período, mesmo que ainda muito pequenas frente aos inúmeros textos que discutem amplamente a homossexualidade masculina como tema central do debate. Marisa Fernandes, ao discutir o protagonismo das mulheres lésbicas neste mesmo período histórico, deixa evidente a urgência de ampliação sobre os estudos dos ativismos lésbicos e feministas-lésbicos no Brasil trazendo sobretudo o aspecto da dupla militância em evidência.

É a partir dessa ideia de múltiplas militâncias que o texto de Benito Bisso Schmidt emerge. Intitulado de “João ama Pedro! Porque não?”: a trajetória de um militante socialista em tempos de redemocratização, o historiador dá visibilidade à experiência vivida por Zezinho, homossexual e socialista, deixando evidente as dificuldades da abordagem e da experimentação da convergência entre o debate sobre sexualidades e a esquerda política no período de redemocratização no Partido dos Trabalhadores (PT) de Porto Alegre. Em certa medida, seu trabalho nos lembra também a excepcional trajetória de Herbert Daniel7 publicada no mesmo ano dessa obra.

Herbert e Zezinho podem nunca ter se encontrado, mas partilhavam os reflexos e as ambiguidades da velha e da pretendida nova esquerda no Brasil. Através destas dinâmicas de continuidades e descontinuidades que Cristina Câmara, Luiz Mott e Rodrigo Cruz avançam temporalmente o debate. Câmara coloca a agenda política do grupo Triângulo Rosa em destaque enquanto Mott traça sua própria trajetória paralelamente ao surgimento do Grupo Gay da Bahia. As contribuições destes dois grupos se conectam e interseccionam à medida em que mergulham na política institucional brasileira que é habilmente descrita por Rodrigo Cruz ao evidenciar as eleições de 1982.

Presente também nesses autores está a discussão focalizada no trabalho de Marcio Caetano, Claudio Nascimento e Alexsandro Rodrigues. Os autores, ao discutirem o papel da epidemia de AIDS e seus efeitos nos movimentos, se conectam à trajetória do decano do movimento LGBTI+, o Grupo Gay da Bahia e de seu interlocutor mais próximo, o já mencionado Triângulo Rosa. A discussão sobre os efeitos do surgimento do vírus HIV e da epidemia de AIDS na segunda metade da década de 1980 parece ser fundamental para trabalhos que pensem a trajetória do movimento LGBTI+ no Brasil.

Estes autores deixam evidente a necessidade de ampliarmos as linhas de interpretação sobre os significados e as experiências históricas de sujeitos que atravessaram os anos do trauma ainda não superados pela comunidade LGBTI+ brasileira e também pela ausência e contínua estigmatização dos sentidos sociais que o vírus ganha no debate público até o presente. Ao mesmo tempo os regimes de visibilidade sobre as questões da comunidade parecem nos últimos anos ter se alterado através da inclusão de narrativas não hegemônicas dentro do próprio movimento e também fora dele.

Deste modo, Ana Cristina Conceição coloca em evidência as especificidades das mulheres negras e lésbicas dentro do movimento. Em seu texto estas dinâmicas intragrupo saltam à história. Nessa mesma tendência, Elias Ferreira Veras traz à tona o regime de visibilidade das travestis através do debate do tempo farmacopornográfico. Seguindo sua narrativa historiográfica de acomodação desses sujeitos históricos em um espaço e tempo específicos, as narrativas de Jaqueline Gomes de Jesus, João W. Nery, Alexandre Peixe e Fabio Morelli viabilizam a discussão das trajetórias políticas de travestis e pessoas trans na história do movimento LGBTI+ brasileiro, incorporando uma temática espinhosa dentro da própria comunidade e do movimento.

Agrupadas as especificidades históricas de parte da sopa de letrinhas, o debate de Moacir Lopes de Camargos marca o processo de transição entre a primeira geração e o reacender do movimento LGBTI+ utilizando e repensando as paradas como um elemento fundamental para tal virada. O texto de Camargos se articula diretamente com as propostas de aproximação com o presente através das discussões propostas nos últimos anos.

Tais discussões se alargaram através da agenda política atual do movimento, isto é, da luta em companhia ao Estado para uma construção de uma lei pela criminalização da homofobia e transfobia. Este debate é transcrito no ensaio de Paulo Roberto Iotti Vecchiatii e alargado nas discussões de Lucas Bulgarelli, Luma Nogueira de Andrade e Bruna Andrade Irineu. Ambos os autores trabalham a partir de um estabelecimento da agenda atual de luta do movimento.

Irineu traz consigo as últimas disputas e tensões dentro do movimento com um recorte temporal que tem como pano de fundo o início da crise política da qual ainda estamos inseridos. Bulgarelli e Andrade se organizam discutindo este mesmo panorama, seja através do espectro da conjuntura nacional, seja pela atuação da Associação Brasileira de Estudos da Homocultura.

De forma geral, os efeitos deste livro se articulam e apresentam outras agendas possíveis, apontando os últimos trânsitos entre a academia e a política ao estabelecer a discussão sobre o crescente questionamento colocado dentro dos estudos queer e suas possíveis pontes dentro de um movimento LGBTI+. Essa articulação ainda parece ser tímida, como apresenta Leandro Colling, mas pode garantir algumas leituras de maior efetividade do quadro necropolítico ao qual os(as) LGBTI+ estão inseridos(as).

Dessa forma, a obra História do Movimento LGBT no Brasil é uma obra que se pretendeu ambiciosa e que se articula no lugar da intersecção entre o passado e os desafios do presente. A coletânea de artigos sugere que o debate sobre sexualidades e gênero precisa ainda se complexificar nos próximos anos caso queira de fato falar através da sigla LGBTI+. Compreender as violências simbólicas referentes à bissexualidade dentro da dinâmica intragrupo ou ainda evidenciar a dura batalha médico-judicial na qual historicamente a trajetória de intersexos deve adensar e diversificar o debate.

Notas

1Aqui estamos delimitando como os “anos de chumbo” a ditadura militar que se iniciou em 1964 no Brasil. Ver: FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.24, n.47, 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-01882004000100003&script=sci_arttext. Acesso em 2 ago. 2019.

2 Aqui, nos referimos ao processo iniciado em 1967 com a formação do grupo Nuestro Mundo e posteriormente em 1969 com a formação da Frente de Liberação Homossexual na Argentina. Já no contexto norte-americano estamos nos referindo à revolta de Stonewall e a formação do Gay Front Liberation.

3 Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo, a pesquisadora e ativista tem efetuado contribuições aos estudos lésbicos e participou ativamente do Grupo Somos, o primeiro grupo de liberação homossexual no Brasil.

4 Professor na Universidade de Brown nos Estados Unidos, o brasilianista tem inúmeros trabalhos sobre História da Homossexualidade no Brasil.

5 Professor do Departamento de Direito da Universidade do Federal de São Paulo tendo como sua pesquisa de doutoramento as dinâmicas da censura e violência a população LGBT no período ditatorial.

6 Diferente dos autores do livro utilizamos a nomenclatura para abarcar o grupo de dissidentes das normas de gênero e sexualidade impostas em nossa sociedade. São eles: lésbicas, bissexuais, gays, transexuais, travestis, intersexuais, queers. Para um aprofundamento sobre a sigla ver: REIS, Toni. (Org.). Manual de Comunicação LGBTI+. Curitiba: Aliança Nacional LGBTI/GayLatino, 2018.

7 Ver: GREEN, James Naylor. Revolucionário e gay: a extraordinária vida de Herbert Daniel – pioneiro na luta pela democracia, diversidade e inclusão. 1ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

Referências

FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.24, n.47, 2004. Disponível em:< http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-01882004000100003&script=sci_arttext >. Acesso em 2 ago. 2019.

GREEN, James Naylor. Além do Carnaval: a homossexualidade do século XX. 1ed. São Paulo: Editora UNESP, 2000.

____________________. Revolucionário e gay: a extraordinária vida de Herbert Daniel – pioneiro na luta pela democracia, diversidade e inclusão. 1ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

MACRAE, Edward. A construção da igualdade: igualdade sexual e política no Brasil da “abertura”. Campinas: Editora da Unicamp, 1990.

REIS, Toni. (Org.). Manual de Comunicação LGBTI+. Curitiba: Aliança Nacional LGBTI/GayLatino, 2018.

TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil da colônia à atualidade. 4.ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018.


Resenhista

Rhanielly Pereira do Nascimento Pinto – mestrando em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG). E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

GREEN, James Naylor; QUINALHA, Renan; CAETANO, Marcio; FERNANDES, Marisa (Orgs.). História do Movimento LGBT no Brasil. São Paulo: Alameda, 2018. Resenha de: PINTO, Rhanielly Pereira do Nascimento. Revista de História da UEG. Morrinhos, v.9, n.1, jan./jun. 2020. Acessar publicação original [DR]

 

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