La macchina imperfetta. Immagine e realtà dello Stato fascista | Guido Melis

Os interessados na história institucional e jurídica da ditadura encontram no livro de Guido Melis uma preciosa ferramenta de trabalho.

O volume dedicado aos vinte anos da ditatura fascista (1922-1943) propõe um estudo dos arranjos institucionais do estado italiano. No período no qual ocorreu uma profunda revolução no plano constitucional com um viés fortemente autoritário, permanecendo intocadas a Carta Constitucional (o Statuto Albertino) e a forma monárquica. As instituições representativas que compunham o estado liberal durante o século XIX foram sendo progressivamente enfraquecidas, o nascente sistema de partidos políticos de massa foi desmantelado, graças aos intervenção na lei eleitoral e, sobretudo, através de novos medidas policiais e formas especiais de repressão, visando neutralizar a dissidência política e o aniquilamento do que era reconhecido como inimigo político. O novo sistema se baseava na figura do Duce, Chefe do governo e, juntos, do partido político único, o Partido Nacional Fascista, auxiliado por um novo órgão constitucional, o Gran Consiglio del Fascismo. Ao mesmo tempo foi determinada uma nova reorganização das instituições públicas que redesenha em um sentido mais centralista as relações entre Estado e território, no sentido intervencionista as relações entre Estado e economia, e no sentido corporativo as relações entre Estado e sociedade.

A qualidade desse livro se dá por uma série de características originais, além da eficaz mão de um historiador, que dedicou grande parte da sua vida científica a estudos sobre o século XX2.

O primeiro aspecto a se destacar, é a abordagem da pesquisa e suas escolhas metodológicas. O livro se desenvolve através de uma grade analítica focada nos principais perfis do sistema institucional (o governo, o partido, as instituições estatais e seus atores, as instituições econômicas e sociais) e tem como objetivo desenvolver uma história dinâmica. Tal abordagem visa compreender dentro do tecido institucional o «ativismo secreto no qual podem ser registradas as constantes» e dessa forma «determinar as leis de fundo». (p. 567) Isto produz uma análise riquíssima de um estudo multifacetado que inclui também as questões de história legislativa, da cultura e do pensamento jurídico-político.

É a escolha da macchina como chave de leitura, que favorece a construção original do objeto de estudo. O uso de tal chave de leitura permite a emancipação daquela outra, que vê o Estado como forma de vida, uma constante na dimensão discursiva do direito e da política do século XX. Narrar o projeto e o processo de construção da ditadura na Itália como uma história de implementação de uma ideia de Estado – daquela ideia organicista e sincretista que combina o Estado pessoa, como o resultado final da Staatslehre, com a invenção do Estado corporativo – mantém uma indiscutível relevância historiográfica. Tal abordagem, no entanto, se mostra funcional sobretudo para descrever os processos verticais internos à fenomenologia do direito e das instituições, sejam esses reconstruídos a partir da dimensão teórica a fim de observar seus reflexos na dimensão das práticas, ou até mesmo no sentido oposto ao indagar processos de hipostatização nos conceitos jurídicos da diferenciação do direito e das instituições que surgem de baixo.

De forma diversa, observar a macchina estatal a partir do viés do seu funcionamento para além de um olhar apenas da sua idealização – Melis está interessado em estudar como se articula «o circuito decisório no regime fascista» sem limitar-se ao «debate teórico» (p. 494) – permite considerar horizontalmente os níveis de convergência entre a vida das instituições e o programa político-jurídico da ditadura. Esses nos mostram, por um lado, o processo de atração/ normalização das instituições no programa fascista, mas por outro, evidenciam uma dinâmica de apropriação do programa fascista por parte das instituições3.

Essa descoberta é repleta de consequências. A primeira é que tal capacidade de apropriação, característica da máquina institucional (mas também se aplica ao discurso jurídico), torna-se um elemento essencial para obter a perspectiva de sentido de um fenômeno histórico como a ditadura. A segunda consequência é que o fenômeno histórico da instauração de uma ditadura, mesmo quando se propõe, como no caso do fascismo, em termos radicais, deve ser interpretado como o resultado de um processo de transformação das instituições estatais. E isto se reverbera, a terceira delas se daria nos instrumentos analíticos que utilizamos para observá-lo, uma vez que demonstra uma certa insuficiência do par conceitual tradicional de continuidade/ruptura.

Os ensaios dedicados a história, seja de instituições políticas, seja do pensamento jurídico adotam recorrentemente o esquema conceitual que justapõem continuidades e rupturas para poder classificar aspectos individuais de complexa história institucional da ditadura. Guido Melis também se confronta com esse problema da continuidade/ruptura, e o faz, agudamente, seja no sentido de mobilizar o par oposto como instrumento analítico4, seja como considerá-lo nas fontes, nas estratégias discursivas durante as duas décadas da ditadura, como um aspecto que contribui para qualificar a configuração do objeto de pesquisa.

O estudo dinâmico da máquina institucional, vai além, trazendo à tona uma nova face daquela experiência histórica, na qual a sua interpretação não se resolve através do par de opostos continuidade/ruptura. Trata-se, de fato, de considerar o campo de tensão que a máquina institucional produz, como resultado em conjunto da inserção do novo e da resiliência do antigo – que seria talvez melhor observado através do par heurístico inovação-transição5 – e o efeito atributivo que isto produz na configuração histórica assumida pela ditadura e sobre suas condições a serem pensadas.

A emersão de tal campo de tensão produz reflexos relevantes sobre a interpretação que podemos dar ao fenômeno da ditadura. Do ponto de vista historiográfico nos permite sair de um discurso raso sobre o “limite” na implementação do programa ditatorial e no estabelecimento da ditadura (que em última análise serviria para determinar se o fascismo teria tido ou não sucesso em seu projeto). A máquina “imperfeita”, de fato, em vez de indicar um perfil de incompletude na realização da ditadura na Itália, descreve a experiência a qual esta deu vida. Nos afastando de qualquer simplificação revisionista, nos explica o modo como se produziu a experiência da ditadura, entendida como um fenômeno histórico completo. Em outras palavras, a máquina imperfeita não serve para qualificar o grau de intensidade da ditadura, mas a compreender o modo com o qual a sua ação se desenvolveu.

As vantagens desse tipo de interpretação se refletem no modo com o qual o livro aborda grandes temas que a historiografia vem se questionando há anos, como o da relação entre o fascismo e o totalitarismo. O fascismo, de fato, é redescoberto como «um fenômeno muito mais complexo do regime totalitário do que como a historiografia frequentemente o apresentou»; nas estruturas por ele geradas, junto à “força motriz” representada pelo Duce, «permanece sempre uma dialética mais ou menos incisiva» (p. 567-568). Melis consegue evidenciar essa característica em todos os gânglios dessa complexa estrutura institucional do Estado, seja ao tratar das grandes instituições centrais, como o Conselho de Estado, seja os reflexos nos novos âmbitos de expansão das instituições do Estado, como a economia, seja que se interesse no partido político, seja os reflexos na relação entre poder central e instituições locais. É sempre importante adotar uma abordagem que, sem buscar soluções gerais, saiba distinguir em relação as áreas de intervenção, os objetivos perseguidos, aos interesses mediados, as características dos atores etc.

Além disso, como é bem abordado (pp. 526-543) o próprio conceito de totalitarismo, é em certo sentido um produto da discussão doutrinal sobre a categoria de “Estado” durante as duas décadas, antes de se tornar uma ferramenta historiográfica de classificação da experiência autoritária. Logo, pode ser considerado mais um resultado de um debate sobre a forma do Estado fascista que uma categoria metalinguística para fazer a história do mesmo.

É nessa perspectiva e com essa sensibilidade, que é abordado outro grande tema do posicionamento dos juristas durante aquelas duas décadas. A obra é muito atenta à reconstrução do papel dos atores, em particular no entrelaçamento entre o aspecto biográfico, o compromisso institucional, a contribuição ao desenvolvimento do pensamento jurídico e tem pleno sucesso na sua intenção de apreender a articulação de atitudes em relação ao velho e ao novo. Assim sendo, ao lado das ações dos juristas revolucionário fascistas, o livro desenvolve com eficácia abordagens e estratégias diferentes: uma destinada a defesa das pedras angulares da escola italiana de direito público do final do século XIX a ponto de ler, na transformação do Estado em curso, uma confirmação da própria visão antiga de Estado (pp. 257-262); além da estratégia, com a qual «o morto agarrava o vivo», orientada a garantir a continuidade nos métodos, nos princípios, nas linguagens, embora por trás da máscara da «forma moderna» (p. 265)6 ; e também a estratégia destinada a compreender o alcance das transformações institucionais além do horizonte indicado pelo fascismo (se pensarmos a Constantino Mortati que identificou a «zona cinzenta» entre política e direito ou em Massimo Severo Giannini que descobriu a multiplicidade dos sujeitos institucionais (pp. 270-273); e por fim a estratégia de liderar e guiar as grandes reformas (embora com o objetivo de alcançar as mudanças legislativas já previstas, independentemente dos programas do fascismo). Como é o caso de Piero Calamandrei, ao qual são dedicadas páginas densas, que têm como base o seu diário (pp. 286-292).

De um modo geral a análise dos resultados desta colaboração com o regime também é cuidadosa em restituir a sua complexidade; por exemplo, no que diz respeito à produção dos novos códigos civis e de processo civil7 encomendados pelo ministro Grandi, a tese dos códigos que eram apenas nominalmente fascistas, é enriquecida e relativizada, evidenciando «o clima de colaboração ambígua» (p. 293) e a presença de diferentes interesses e estratégias como base da produção de uma mesma reforma.

A máquina imperfeita também nos leva a considerar o problema igualmente relevante do consentimento da Magistratura ao regime. Aqui o cenário em movimento é reconstruído com a chave analítica que distingue a cultura fascista e a cultura dos juízes (p. 344). Isto permite distinguir entre os magistrados que exercem a carreira no interior do Judiciário e a uma distância de segurança da política e os magistrados nos vértices que atuam no governo. Nesse caso se destaca a figura de Mariano D’Amelio (Primeiro Presidente da Corte de Cassação única, e responsável por importantes iniciativas editoriais como a realização do Nuovo Digesto Italiano); o livro ilustra bem a importância que D’Amelio teve em favorecer o estabelecimento de uma concepção de jurisdição, por exemplo, desenvolvendo o papel da Corte de Cassação finalmente única, como um lugar equilibrador da jurisprudência no quadro desordenado e, às vezes, causal na vida institucional entre «inovação e tradição». (p. 347)

A obra não deixa de abordar aspectos de interesse direto para a história jurídica ao considerar a distinção entre direito fascista e direito durante o fascismo. Entretanto, a análise não se preocupa tanto em distinguir ou isolar esses dois aspectos no interior das configurações que o direito assumiu concretamente durante aquelas duas décadas; a perspectiva sugerida pelo livro parece ser outro: compreender o fator dinamizador que, a existência dessa dupla alma, tem representado na vida institucional e no sistema jurídico.

Dessa forma, a chave de leitura da máquina permite um exame aprofundado dos fenômenos políticos e jurídicos determinados naquelas duas décadas. Essa chave poderia também ser aplicada de forma útil a questões que a obra não abordou, mas que seriam interessantes de considerar, como a questão colonial. Este parece ser um terreno potencialmente significativo para observar a dialética (ou se quisermos, a aparente contradição) entre configurações autoritárias das instituições estatais e a imperfeição da máquina. Muitas das questões abordadas no livro (se pensarmos no problema da relação entre juristas e o regime, ou ao problema do monismo estatal entre as metrópoles e os territórios coloniais, ou ainda na construção do Estado racista) encontram diante do problema colonial uma articulação importante. Outro tema que poderia ser abordado com a chave heurística da máquina imperfeita é aquele da inserção do Estado fascista na dimensão institucional transnacional. Essas são apenas algumas possíveis projeções temáticas, que podem ser consideradas a partir da abordagem interpretativa original da obra de Guido Melis.

O livro é riquíssimo em referências à temas pontuais, ao mesmo tempo em que aborda os problemas gerais em plano de fundo, que servem para vislumbrar um ponto de vista crítico sobre a fenomenologia histórica da ditadura na Itália. Ainda neste equilíbrio, a obra que comentamos constitui uma referência para futuras pesquisas.

Notas

2 Podemos mencionar dentre as suas inúmeras obras: Due modelli di amministrazione tra liberalismo e fascismo, Roma, Ministero per i beni culturali e ambientali 1988; Burocrazia e socialismo nell’Italia liberale, Bologna, il Mulino, 1990; Storia dell’amministrazione italiana (1861-1993), Bologna, il Mulino, 1996 (nuova edizione 2020); Fare lo Stato per fare gli italiani, Bologna, il Mulino, 2014 e a edição dos volumes Il Consiglio di Stato nella storia d’Italia, Milano, Giuffrè, 2006, 2 voll.; Lo Stato negli anni Trenta. Istituzioni e regimi fascisti in Europa, Bologna, il Mulino, 2008; (con Giovanna Tosatti), Le parole del potere. Il lessico delle istituzioni in Italia, Bologna, il Mulino, 2021.

3 Um resultado semelhante é encontrado em pesquisas recentes, como por exemplo aquelas dedicadas as leis raciais, como Gentile (2013) ou Meniconi e Pezzetti (2018).

4 Sobre isso ver as observações de Stolzi (2019, pp. 776-777).

5 Para essa análise, ver os comentários feitos em Meccarelli, Paixão, Roesler (2020).

6 E em relação à persistência do formalismo de Melis, verificamos seus ecos na tese apresentada por Cassese (1971), que observa como muitas vezes dependia de uma incapacidade de ver as transformações imponentes que haviam ocorrido na sociedade, em vez de uma forma de resistência a uma transformação do direito em um sentido fascista.

7 A este respeito, destacamos que no mesmo ano de La macchina imperfetta também foi publicado a obra Pietro Calamandrei e il nuovo Codice di procedura civile (1940), editado por Guido Alpa, Silvia Calamandrei e Francesco Marullo, Bologna, il Mulino, 2018, no qual contribuiu o próprio Guido Melis.

Referências

ALPA, Guido; Calamandrei, Silvia; Marullo, Francesco (2018). Pietro Calamandrei e il nuovo Codice di procedura civile (1940). Bologna, il Mulino.

CASSESE, Sabino (1971). Cultura politica e diritto amministrativo. Bologna, il Mulino.

GENTILE, Saverio (2013). La legalità del male. L’offensiva mussoliniana contro gli ebrei nella prospettiva storico-giuridica (1938-1945), Torino, Giappichelli.

MECCARELLI, Massimo; Paixão, Cristiano; Roesler, Claudia (2020). Innovation and Transition in Law. Experiencces and Theoretical Settings, Madrid, Dykinson.

MELIS, Guido (1988). Due modelli di amministrazione tra liberalismo e fascismo, Roma, Ministero per i beni culturali e ambientali.

MELIS, Guido (1990). Burocrazia e socialismo nell’Italia liberale, Bologna, il Mulino.

MELIS, Guido (1996). Storia dell’amministrazione italiana (1861-1993), Bologna, il Mulino.

MELIS, Guido (2006). Il Consiglio di Stato nella storia d’Italia, Milano, Giuffrè.

MELIS, Guido (2008). Lo Stato negli anni Trenta. Istituzioni e regimi fascisti in Europa, Bologna, il Mulino.

MELIS, Guido (2014). Fare lo Stato per fare gli italiani, Bologna, il Mulino.

MELIS, Guido (2018). La macchina imperfetta. Immagine e realtà dello Stato fascista. Bologna, Il Mulino.

MELIS, Guido (2021). Le parole del potere. Il lessico delle istituzioni in Italia, Bologna, il Mulino.

MENICONI, Antonella; Pezzetti, Marcello (a cura di) (2018). Razza e inGiustizia. Gli avvocati e i magistrati al tempo delle leggi antiebraiche, Roma, Consiglio Superiore della Magistratura – Consiglio Nazionale Firenze.

STOLZI, Irene (2019). Un’irriducibile complessità? Il fascismo fra immagini e realtà. In: Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno, 48, 2019, pp. 767-784.


Resenhista

Massimo Meccarelli – Università degli studi di Macerata. ORCID: 0000-0003-3246-9797


Referências desta Resenha

MELIS, Guido. La macchina imperfetta. Immagine e realtà dello Stato fascista. Bologna: Il Mulino, 2018. Resenha de: MECCARELLI, Massimo. O fascismo em ação: As dinâmicas institucionais na história de uma ditadura. História do Direito. Curitiba, v. 2, n. 3, p. 344-349, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]

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